Reino de paz se um homem só a conquista: Sexismo e racismo nas interpretações da penetração humana na América

 [Beto Vianna]

Caetano gravou canção de Péricles e Augusto, que traduziu poema de John. O original de John Donne e suas recriações merecem as maiores considerações, mas não as minhas, que a praia aqui não é a literatura. Peço licença a meus colegas de Letras e uso “Elegia: indo para o leito”, a versão brasileira de Augusto de Campos, como fio e motivo para este artigo.

Vem, Dama, vem que eu desafio a paz;
Até que eu lute em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.

Sou americano desde criancinha, como um bilhão de outras pessoas nascidas e criadas nesta terra. A fartura atual de gentes, equiparável à do segundo continente mais populoso, a África, mascara o mais assombroso caso de genocídio continuado do planeta. Filme de terror que estreou dia 12 de outubro de 1492, com o desembarque da esquadra colombiana, e permanece macabro, ainda que a brutalidade tenha arrefecido nas últimas décadas. Faz sentido o dia das crianças ser data inaugural da América. A despeito de tantas tradições, continuamos a chamar de Novo Mundo o caldeirão geopolítico onde fervem as duas massas continentais unidas pelo istmo do Panamá.

Mundo permanentemente novo, para sempre vir a ser o que a tradição do outro dita. Mais que o novo subversivo, o novo submetido, onde o outro é livre, não para fazer o novo, mas para fazer tudo de novo. Apesar dos brados esperançosos do pan-americano Whitman, do pós-europeu Pessoa ou do pós-africano Selassie, e outras vozes de oriente a ocidente que cantam o destino manifesto, a marcha para o oeste cumpre o desejo de alargar o mesmo ocidente e profetizar o mesmo passado. 

Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado,
Feito para deter o olhar ousado.
 

A criança que não cresce tem correspondentes moralmente condenáveis. O selvagem, o débil mental, o inculto, o bandido, o preto, a mulher. De veias e pernas abertas, fornecemos cada um desses tipos ao Velho Mundo, ditados em suas cartilhas literárias e científicas: a perversidade infantil de Caliban, o infantil cérebro feminino de Broca, o infantil cérebro idiota de Goddard, o infantil cérebro indígena de Morton, o criminoso cérebro atávico de Lombroso e o atual engodo da meritocracia, ainda mais sedutor, por inconfessado. Enredos culturais que renovam o tratado de submissão americana. A abertura do continente-mulher ao encanto (a subordinação do continente-criança ao modelo) invasor é o caminho da salvação. Processo civilizatório (no dizer de Darcy Ribeiro) tenebrosamente claro na empresa colonial e que sobrevive nas relações sociais racistas e sexistas que estabelecemos com nós mesmos, até hoje.

Mas tal como outras terras, a América tem, além de uma genealogia moderna, um passado profundo. Um buraco úmido e escuro, penetrado com igual cobiça na história da nossa contação de histórias.

Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda quieto, tão de perto.
 

O povoamento original da América é assunto controverso, motivo de disputas mal-humoradas e inimizades acadêmicas perpétuas. O branco véu dos descobrimentos, há 500 anos, revela-se menos intrigante que o desnudamento da América pelos próprios americanos, há 12 ou – quem sabe ao certo? – 30 milênios. Mas há um ponto comum entre a saga dos navegantes do Velho Mundo e a dos primeiros americanos: as duas traem o olhar colonialista, que sustentamos, mesmo na face de colonizados. O mistério da ocupação original da América justifica-se por uma incapacidade da gente antiga de “dizer” a história, tal como custamos a escutar, impacientes, os balbucios do selvagem de hoje (ou da criança e do inculto). Cabe a nós, civilizados, investir a parafernália acadêmica – a arqueologia, a genética, a linguística, a etnografia – para fazer falar a terra muda. Muda, mas não nua. O silêncio, estado natural do selvagem de ontem e de hoje, é o espartilho que oculta uma verdade luxuriante, e deve, para seu próprio bem (assim cremos), ser arrancado.

Dizemos que o americano nativo (agora nem tão nativo, se nossa pergunta é sobre como ele chegou à terra natal!) tem mitos de origem, com licença ficcional para vagar pelas brumas do tempo. Mas em nossa cultura, a mesma indagação impõe um início, dado pelo primeiro olhar europeu. Reza a lenda que o jesuíta José Acosta, em sua Historia natural y moral de las Indias, de 1590, antecipou o atual consenso de que os primeiros americanos vieram da Ásia, muito antes de nos darmos conta de Bering, a ligação mais estreita entre os dois continentes.

O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.
 

O que significa dizer que os americanos não são originalmente americanos? O colonizador europeu não duvidava (pergunto-me se hoje duvidamos) de que o humano aqui encontrado era inferior, mental e moralmente. A questão era saber se foi semeado neste chão ou migrou de outras terras. Um jardim do Éden ameríndio (defendido por racistas poligenistas) punha sob suspeita os direitos do usurpador. Na hipótese legitimando a conquista (defendida por racistas monogenistas), o selvagem é um Adão decaído – em Eva ou serpente -, maçã podre da semente original que tanto podia ser o povo bíblico de Canaã como sobreviventes de Atlântida, deuses astronautas ou, como ainda se crê, pioneiros asiáticos, todos razoavelmente civilizados numa escala do-selvagem-ao-europeu.

Antes de rir dos racistas de antanho, sugiro pensar na continuidade entre a formulação quinhentista de Acosta e as imaginações da ciência moderna. Lamentamos a fragilidade do índio em seu estado presente, e lhe imputamos um estigma adicional, a decadência cultural. Seus antepassados ergueram antigas civilizações, ou, pelo menos, empreenderam a “marcha para o leste”. Os ameríndios seriam gente nova no pedaço, sem direito pétreo à terra que reivindicam.

Se um passado heroico é ofensivo, considere outra opção: os índios nem mesmo descendem de gigantes do Velho Mundo. São uma leva migratória tardia, gente que nunca desenvolveu uma cultura superior, estagnados na pré-história. A alternativa rompe de vez a ligação umbilical do ameríndio com a terra em que vive. Além de criança – legalmente incapaz -, destituído do privilégio da herança.

Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu anjo, és como o Céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
O que o meu Anjo branco põe não é
O cabelo, mas sim a carne em pé.

A indagação (e a resposta ocidental padrão) sobre os primeiros americanos veste sob medida a infância eterna da América. Esta terra não só foi a paragem derradeira na epopeia civilizadora dos europeus, mas de toda a raça humana.

O consenso científico sobre a aventura humana na Terra pinta um quadro mais ou menos assim (há detalhes controversos, que o espaço não permite comentar): enquanto espécie, o humano surge na infância original da África, há uns 200 mil anos; há 50 mil aprende a ser gente no desabrochar da arte e na diáspora global pela Eurásia até a Austrália; já homem feito, adentra na América há, digamos, 12 mil anos (eis outra controvérsia, que comento adiante).

A América é novamente, ou desde sempre, Novo Mundo. Cio perpétuo da terra, receptiva à dispersão última da semente humana, tal como à dispersão última da semente europeia. A roupagem racista e sexista da narrativa revela mais do que tapa: destinado a ser o macho dominante entre os seres vivos da Terra, o humano brota de linhagem simiesca e, plenamente maduro, termina por se assenhorear do último refúgio natural do planeta. As pontas do percurso são feminilizadas e desumanizadas: o homem, herói da odisseia, nasce da África e penetra na América.

Deixa que minha mão errante adentre
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra à vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista.

A arqueologia e sua irmã mais velha (em profundidade geológica e objeto de estudo), a paleoantropologia, a exemplo da prima antropologia em mirar o selvagem, contribuíram para canonizar interpretações chauvinistas, que ainda comungamos, sobre o não civilizado (mesmo quando, ao escutar a terra, esta tenha lhes contado uma história bem diferente). Apesar da descoberta e aceitação dos fósseis de Australopithecus nos anos 30, dos mais antigos artesãos do gênero Homo nos anos 60, e do mais antigo sapiens nos anos 70 – todos na África -, a disposição dos cientistas é ver o despertar da humanidade na Eurásia, de preferência a Europa. O truque é sempre mudar o conceito de humano, até a alegação mais recente de que “o que faz do humano, humano” é a cultura como a conhecemos. A terra respondeu fazendo desenterrar, da mesma África, nossas primeiras elaborações artísticas.

Parece que toda inovação comportamental – para o bem ou para o mal -, todo êxodo original – pré-humano e humano -, toda revolução fundadora – do “grande salto à frente” à agricultura do neolítico – deu-se (se a terra nos tem contado direito essa história) na Mama África, fêmea nada passiva. Ao lado das descobertas arqueológicas, os estudos genéticos e linguísticos colocam firmemente a África como ponto nodal em toda trama da tessitura humana.

Mas a vontade de conformar o mundo a um ideal de progresso civilizatório é tão grande que, apesar do que a terra, os ossos, os genes e as próprias línguas nos dizem, até hoje os manuais de evolução humana ensinam que há uma “hipótese multirregional”. Eis a velha poligenia eurocêntrica vestida de isenção científica: antigas raças diferentes evoluindo em paralelo nos quatro cantos do globo (umas, você adivinhou quais, mais diferentes que outras).

Minha Mina preciosa, meu império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo.

Pairando acima de teorias conflitantes, o mais contundente instrumento da ciência para continuar a desenterrar preconceitos, com trocadilho, é a ferramenta de pedra. Dividiram-se os humanos originais (africanos ou eurasianos, não importa) segundo os estágios evolutivos de seu comportamento evidenciável, não perecível: a indústria lítica, fazendo surgir o homem das cavernas: Brucutu, Piteco, o Poderoso Mightor (curiosamente, todos personagens brancos). Machos essenciais, meio apatetados, arrastando as fêmeas escolhidas pelos cabelos, como se tivessem inventado a roda da supremacia masculina. Uma imagem absurda, mas não gratuita: é-nos sugerida pela leitura dos modos de vida antigos somente através dos implementos de pedra, e a classificação das culturas pré-históricas com base no aprimoramento dessas ferramentas, sempre para a caça ou a guerra. Ou para fazer outros instrumentos de pedra. Coisa de menino.

E o que foi bom para a África original é bom para a América tardia.

Nudez total! Todo o prazer provém
De um corpo (como a alma sem corpo) sem
Vestes. As joias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atalanta:
O olho do tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.
 

A America (sem acento) chama os demais americanos de latinos. E a história da arqueologia e da antropologia (e da genética e da linguística), as ciências do “antigo” e do “outro”, nos Estados Unidos, reflete essa opção preferencial por si mesmos. A busca pelo americano original traía a inveja dos europeus, pródigos em descobrir fósseis humanos na África, na Eurásia, e até na própria América (do Sul, principalmente). No início do século XX, arqueólogos buscavam desesperadamente o homem do gelo americano, a exemplo do cro-magnon. E acharam (em ciência, sempre se encontra o que se quer com fervor).

Nos anos 30, nasce a cultura Clóvis, que há 11 mil anos dominava originalmente a América. À imagem dos primeiros humanos, o povo Clóvis fabricava instrumentos de pedra (pontas de lança, tipicamente) com o que se fez senhor da natureza bravia, incluindo a fantástica megafauna da idade do gelo – o mamute, o tigre dentes-de-sabre, a preguiça gigante – e, ao que parece, a mulher.

Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe.

A ideia norte-americana de pioneirismo é bem particular. Desdenhar a velha Europa e imitar sua sanha colonizadora, com desprezo ainda maior pelos próprios nativos. Assim, a versão clovisiana do povoamento da América inclui a marcha para o leste desde a Ásia (pela ponte de terra que surgia nos períodos de glaciação, sobre o estreito de Bering), mas os holofotes são jogados sobre o drama interno: a conquista da terra virgem pelo intrépido povo Clóvis e suas pontas de lança. Cowboys da Era do Gelo, genuinamente pioneiros e sem índios a oeste para dizimar, marcham rumo ao sul numa blitz avassaladora, responsável, segundo algumas teorias, pela extinção dos mamíferos gigantes, do Alasca à Patagônia.

 A semelhança entre esse arrastão norte-sul e a hegemonia yankee na América não é acidental. Tom parecido é usado nos relatos sobre o “grande intercâmbio faunístico”, que ocorreu há três milhões de anos ao surgir o istmo unindo as Américas. Animais cruzaram a ponte nos dois sentidos, mas a literatura científica anuncia, ao som de trombetas, o massacre que os mamíferos superiores do Norte impuseram aos pobres bichinhos do Sul. O inverso é relativo. A preguiça gigante (filha do Sul e colonizadora do Norte) é descrita como desajeitada, estúpida, e sabe Deus por que não estava extinta quando os caçadores Clóvis desferiram o golpe final (se acha que eu exagero, repare no personagem Sid, de “A era do gelo”).

A primazia Clóvis não é mais consensual, nem nos EUA. Sítios arqueológicos nos dois lados do continente atestam presença humana mais antiga, e tradições diversas e menos viris que as dos caçadores de mamute. Um período de 12, ou mesmo 15 mil anos, é curto demais para um povo, não importa quão ousado, chegar e se impor em 15 mil quilômetros de América e se diversificar nos milhares de línguas índias atuais. Mas permanece, como pano de fundo, a narrativa enviesada de conquista e desbravamento de uma América selvagem. 

Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.
Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante.

E surge a primeira brasileira, desnudada há pouco pelas mãos do compatriota Walter Neves, mas desenterrada bem antes, no início dos anos 70, pela arqueóloga franco-russa Annette Laming-Emperaire (Annette lutou na resistência francesa, adicionando mais feminismo revolucionário à personagem).

O esqueleto de 11 mil anos ganhou o nome Luzia e uma cara preta, afro-ascendente, perfil inesperado para a imagem que temos do índio atual e no contexto das teorias Out of Asia. A descrição é ainda mais inusitada por basear-se na morfologia craniana, filha dos carros-chefes do racismo científico, a craniometria e a antropologia criminal (com adeptos ilustres no Brasil, como meu conterrâneo Tobias Barreto, o baiano Nina Rodrigues e o alienista de Machado de Assis). Crania americana, de Samuel Morton, é uma ode científica à (des)classificação das raças humanas, baseada na medição de cabeças ameríndias. Mas a ciência (assim ela diz) tem utilizado critérios melhores para comparar restos esqueletais de povos e tempos diferentes, e o resultado foi uma originalíssima americana.

Mulher (certamente), negra (em tese) e americana mais antiga (apesar das pontas de lança, não foi desenterrado um só osso humano com mais de 10 mil anos nos EUA), Luzia não saía pelos sumidouros de Lagoa Santa carneando preguiças gigantes. O que não faz dela mais ou menos americana. E não é com o crânio de Luzia nas mãos que iremos contestar o direito de povos às terras que coabitam, com outros seres, por milênios incontáveis.

Li que os maxacalis, habitantes atuais das Minas de Luzia, sabem lascar e polir pedra, e usam as lâminas para cortar madeira, desencavar raízes, fazer fogo e até tirar veneno de cobra. O que não define a sua cultura material. Há cestaria, cerâmica e outras finezas, perecíveis ou não, que antes não eram, e hoje são, obra e arte maxacali. O antigo e tradicional no modo de vida compartilhado por gerações e o incorporado e modificado no contato com outros povos (incluindo o civilizado) redefinem a identidade maxacali, a todo momento. Por certo assim se movia, movediça, a identidade do misterioso povo de Luzia ou do misterioso povo Clóvis. Humildade diante do diferente nunca foi péssima ciência, bem como a coberta de um homem nem sempre é bastante, ou bem-vinda.

luzia

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BEto

10 comentários sobre “Reino de paz se um homem só a conquista: Sexismo e racismo nas interpretações da penetração humana na América

  1. Saúdo a forma como “costurou” tais questões em texto. Afinal diversos foram os “retalhos” para criar a unidade da colcha, por sua vez alinhavada pela metáfora, não tão subjacente da cópula, a qual atravessa tanto o poema guia quanto a própria escritura no que concerne às imagens evocadas. Não é literatura, mas dela não foge – as fronteiras desta nunca estiveram tão fugidias. Quanto a Elegia, é como se a lesse pela primeira vez. Nunca me pareceu tão violenta – até agora. Gracias pela nueva mirada!
    Bem, do racismo não reflito aqui, quanto ao sexismo, talvez seja bem mais anterior à “penetração do humano na América” ou em qualquer outro lugar. Parece que é sexista a própria interpretação do processo de evolução humana. Coincidência ou não – e aqui não estou “caetaneando” a coisa – este texto me fez lembrar um outro “texto” que me chamou à atenção para este possível fato. Contudo, não comentarei os humanos diretamente, ou pelo menos, não em primeira instância, mas seus parentes próximos: os chimpanzés. Pois tanto numa espécie quanto na outra, o desenvolvimento ou a evolução de sua forma de vida, parece sempre partir do movimento do macho – segundo as ciências que compõe o argumento científico.
    A despeito de meu feminismo não etiquetado, mas vivenciado desde que me entendo por gente, tendo em vista o chauvinismo que cerca o mundo de qualquer mulher [a começar, muitas vezes, pelo macho mais próximo, o pai] me surpreendi com o documentário Chimps Nearly Human [“Os chimpanzés do Senegal” em português]. Nele se discutia, a partir da observação do comportamento de nossos primos em loco, os velhos dilemas do surgimento da bipedia no gênero homo, bem como o desenvolvimento de ferramentas, sobretudo àquelas ligadas a comida. E, por mais surpreendente que pareça, uma das hipóteses iluminadas pelos antropólogos dizia respeito ao possível fato de que foram as fêmeas as principais responsáveis pela precipitação de ambas. Isso porque o macho não lhe facilitava a vida. Simplificando bem a coisa: se aproveitando de sua força física, o macho colhia a comida que estava próxima, não alimentava e nem ensinava aos filhotes a fazerem isso de forma engenhosa – estava ocupado demais em lutar com outros machos, passear pelas florestas ou “comer” outras fêmeas disponíveis – tipo coisas de menino. Diante disso, a fêmea foi obrigada a modificar a sua configuração corporal para colher a comida que se encontrava nas alturas. Assim como era ela quem fabricava e ensinava aos filhotinhos a fazer o mesmo. Insetos e mel estavam protegidos, respectivamente pela arquitetura emaranhada do cupinzeiro e da colmeia – e quantas ferramentas diferentes eram necessárias para essas e outras expedições!
    Portanto, além de habilidades cognitivas, a fêmea parece ter demonstrado sempre mais “empatia emocional” (?) que o macho. Se essa interpretação, científica ou não, é verdadeira, do ponto de vista dos fatos – ou vestígios, quem é que o pode dizer. No mínimo é uma narrativa. Sendo assim, prefiro então acreditar numa hipótese mais “feminina” de evolução, não porque o macho seja abjeto. Não, ele é parte fundamental do processo, afinal sem o cromossomo Y não seríamos o que somos, mas por uma razão simples e “econômica”: a contingência da contraparte encarnada na cria obrigou a fêmea a agir de outro modo. No entanto, a “história” oficial é outra, “caetaneando” a coisa: é “o macho adulto branco sempre no comando (…) / riscar os índios, nada esperar dos pretos”, quanto à fêmea, nem um ou poucas linhas.

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  2. se eu entendi, você toma o discurso da ciência, construído em 3.000 anos de sociedade de machos brancos, como uma luz sobre 7 milhões de anos de evolução, nossa e dos chimpanzés. eu escuto mal essa voz paternal.

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  6. Perdoe-me, professor, não colocaria a questão nesses termos. A coisa é bem mais complexa. Os dois textos tratam de narrativas alternativas nas quais aqueles que são subjugados recebem outro tipo de função na trama da história. Isso é legal. Quanto ao discurso da ciência, é difícil falar dele sem de alguma forma nele tropeçar. A cisma pode surgir aí. Além disso, a ciência pode ter um discurso hegemônico (dos machos brancos do Trópico de Câncer) , mas ele não é o único – ainda bem! Mais uma vez, parabéns pelo texto, tanto no que concerne ao conteúdo quanto à forma.

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