A Complexidade do Cotidiano

[Fernando Perlatto] Se à literatura, dentre outros desafios, cabe a tarefa de desvendar a complexidade da alma humana e destrinchar de forma poética as epifanias e as agruras da vida cotidiana, o mercado editorial brasileiro pode celebrar – e este termo não é, neste caso, exagerado – a publicação, pela Companhia das Letras, da tradução…

Do Relato ao Arranjo: vista rasa na capital do mergulho

[Danielle Magalhães] rua de nome travessa. muito mais que travessa: peixe. travessa dourado, urros de amor, sexo vadio na casa da frente, beco estreito de paredes ressonantes. aqui até as pulgas ouvem. cadê a lua? pontal do atalaia, nudez azul acasalando com o infinito negro. gota que desce no rosto ultrapassando linhas, sulcos, limites, respeitando…

A Vida é um Eterno Amanhã

[João Ubaldo Ribeiro*] As traduções são muito mais complexas do que se imagina. Não me refiro a locuções, expressões idiomáticas, palavras de gíria, flexões verbais, declinações e coisas assim. Isto dá para ser resolvido de uma maneira ou de outra, se bem que, muitas vezes, à custa de intenso sofrimento por parte do tradutor. Refiro-me…

Bar

[Ivan Ângelo] A MOÇA CHEGOU COM SAPATINHO baixo, saia curta, cabelos lisos castanhos arrumados em rabo-de-cavalo, sorriu dentes branquinhos muito pequenos, como de primeira dentição, e falou o senhor me deixa telefonar? de maneira inescapável. O homem da caixa registradora estava olhando o movimento do bar, tomando conta de maneira meio preguiçosa, sem fixar muito…

O Marquês de Sade e a Tomada da Bastilha

[Georges Bataille*] Poucos acontecimentos têm mais valor simbólico que a tomada da Bastilha. Por ocasião da festa que a comemora, há muitos franceses que, ao verem avançar na noite as luzes de uma retirada de archotes sentem o que os une à soberania de seu país. Esta soberania popular, que é inteiramente tumulto, revolta, é…

“As Marias”

[Dalton Trevisan] Maria, FILHA DE MARIA, a filha de Maria, tem trinta e um desgostos. Lava a roupa, lava a louça, varre que varre, e a patroa —Jesus Maria José! — a patroa ralhando. Aos sete anos, foi dada pela mãe, à primeira patroa. Mulher cheia de filhos, não podia com mais um: deu a pobre…

Bukowski: Kid Foguete no Matadouro

[Charles Bukowski*] me vi de novo na lona e desta vez nervoso demais de tanto tomar vinho; o olhar desvairado, caindo de fraqueza, tão deprimido que nem podia pensar em recorrer ao quebra-galho de sempre, à minha pausa para recalibrar, topando qualquer serviço em departamento de expedição ou almoxarifado. por isso resolvi ir ao matadouro.…

O Carnaval morreu, viva a quaresma!

[Machado de Assis] Quando digo que o carnaval morreu apenas me refiro ao fato de haverem passado os seus três dias; não digo que o carnaval espichasse a canela. Se o dissesse, errava; o carnaval não morreu; está apenas moribundo. Quem pensaria que esse jovem de 1854, tão cheio de vida. tão lépido, tão brilhante,…

O Homem que Licenciou o Mundo

[Ozorio Gagantua]      Forjei meu melhor sorriso, apertei sua mão e comecei o caminho de volta para casa. Não. Não eu. Segue o relato de Ozorio: Para o Azeredo, funcionário graduado, mas já um pouco ostracizado, há dois tipos no trabalho: os grunges e os psicodélicos. Os psicodélicos eram mais antigos, mais efeminados, e…

Mineirinho

[Clarice Lispector*] É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no…

o kafka de borges

[Denise Bottmann] [N.E.] a Revista Pittacos pinçou do perfil facebookiano de Denise Bottmann o post que reproduzimos aqui. Ficamos contentes por sua permissão para reproduzi-lo, e mais contentes em publica-lo tal e qual foi esboçado, com a agilidade da escrita de uma postagem, sem edições. vejam que quebra-cabeça. em 1937, saiu a suposta tradução de…

Um Tapa no Tapete

[José Guilherme Vereza] Primeiro foram as luzes. Depois as mãos e os pés, simultaneamente. Marita gostava de ser rainha. Súditos acariciando seus dedos longos e bem feitos, seus calcanhares macios, sua cútis bem tratada, seus ombros e escápulas receptivas a cremes reconfortantes. Gostava de relaxar. Não de trabalho em si, mas do stress invisível, ocioso…

Encouraçado de Sol

[Nelson Rodrigues, 1964] Amigos, ao contrário do que se pensa, o Brasil nem sempre foi um país tropical. No tempo de Machado de Assis, ou de Epitácio Pessoa, ou de Paulo de Frontin, o sujeito andava de fraque, colete, colarinho duro, polainas, o diabo. As santas e abomináveis senhoras da época se cobriam até o pescoço. Em suma: —…

O Sábio Sabe que Não Sabe

[Rui Barbosa, 1914] O saber moderno, espaçando incomensuravelmente as estremas do universo acessível à sonda humana, rasgou ao estudo páramos encantados, revelou à curiosidade imprevistos fabulosos, armou a observação de instrumentos estupendos, variou-nos ao infinito campo do trabalho. Mas, por isso mesmo, o adscreveu a uma prudência, a uma temperança, a uma humildade, que encerram a cada…