[Gabi Marques]
“Os homens são como as moedas;
devemos tomá-los pelo seu valor,
seja qual for o seu cunho.”(Andrade, C.D.)
Não vê quem não quer. Um escândalo de corrupção no mínimo cem vezes mais caro aos cofres públicos do que o escândalo que derrubou Collor, não derrubou Lula porque “eles” não quiseram. Pouco importa quem de fato são “eles” nessa estória, mas a história sabe muito bem que foram “eles”, aqueles que seguraram a barra do Lula quando o tal mensalão veio a público. Agora que Lula se safou e voltou para São Paulo para eleger o abençoado dele, do Maluf e do Crivella, em uma manobra para despistar a opinião pública que só ele seria capaz de conceber, sobrou a AP470 sendo julgada no STF e a cabeça dos operadores que toparam levar essa pancada para salvar o chefe. Alguns desavisados foram pegos em caixas eletrônicos por aí, mas isso é cosmético. É a cabeça do Zé e do Delubio que a galera quer ver se vão ter a coragem de cortar. Marcos Valério é transitado e julgado. Juiz que tentar livrar este não anda mais nem de automóvel por aí. Motorista não leva.
A turma do Zé que orbita no Largo São Francisco foi convocada à missão. Isso significa a nata dos advogados ricos do Brasil, excetuando um ou outro que opera com base no Rio. De imediato, um problema. O afilhado jurídico do Zé, agora juiz no STF tem que votar. Consenso. Mas como esconder o menino do vexame de votar pra livrar a cara do chefe? Não. Ele vota contra. Problema dele. É vaidoso, vai ter que pagar a conta agora. Virou juiz de graça; tentou duas vezes por concurso e não conseguiu. Mas os holofotes da imprensa estão apontados para ele, tadinho. Foi o Largo que pôs lá… hmm…conversa com o Dick.
Dick Lewandowski, o galã do Rio, nosso colega de docência no Largo, indicado por Lula, é claro não sem antes ouvir o Márcio, aquele mesmo: o que nunca se sabe se está falando pelo governo ou contra ele, em favor de algum bandido. Agora Márcio defende um dos réus da AP470, e seus dois “indicados” sentam ali, decidindo no tribunal. Márcio abre os trabalhos com uma questão de ordem sobre o desmembramento do julgamento, tese derrotada no próprio STF seis vezes antes da sétima e derradeira. Quem acolhe? Dick, é claro. Os olhos do Brasil, ou pelo menos da minoria obcecada com TV Justiça e coisas assim, como eu, se voltam para o grandiloquente carioca uspiano, que dá o pontapé inicial nas táticas guerrilheiras de postergação dos grandes conflitos e de acobertamento da vergonha novelesca que as instituições jurídicas podem comportar. Entra em cena, silenciosamente, enquanto Dick chama para si os holofotes com o tema requentado do desmembramento, o Dr. Dias Toffoli, que sem nada ranger se senta no assento do qual não se levantará mais durante o julgamento da AP470.
Corta. Cena dois. Tendo criado no dia anterior suspense acerca de seu voto quanto às acusações contra o deputado Cunha, Dick passa a quinta-feira inteira embolando e chamando a atenção para si. Com os holofotes postados, anuncia seu voto pela absolvição. Muitos, como o que vos fala, pensavam que o distinto ia seguir o relator, não havendo portanto a necessidade de estender o voto até a quinta (e passar ela inteira votando), não se fosse para absolvê-lo. Ganhariam tempo, é verdade, mas chamariam os holofotes da opinião pública para o seu voto.
Rá! Aí é que reside a inteligência que “eles” têm, e este é o poder que detêm para introduzir elementos novos no script deste enredo caminhando para o óbvio. A turma do São Francisco bancou a do Zé porque ele bancou o Lula. A turma “escolheu” o Dick pra cadeira no Supremo, e agora o escolheu para ser a vedete do julgamento. Eles observaram e estudaram cuidadosamente o enredo do julgamento de O.J. Simpson nos Estados Unidos, talvez o maior evento midiático que a justiça penal já conheceu no mundo. O resultado surpreendeu a opinião pública, mas a tática da defesa não passou despercebida aos milionários escritórios que defendem criminosos no Brasil. Se tem mídia, tem que ter vilão. Constrói um pra ela e para a “opinião pública”, e todos dirigirão seus ódios primitivos e preliminares na direção deste constructo. O vilão, Dick Lewandowski, está a postos. Até bonitão ele é. Agora é com a turma do Largo, que tá do outro lado da banca. Deixe que me odeiem. O importante é livrar o Zé. Só não vê quem não quer.
Uma entrevista ao Merval — juiz do supremo, em meio ao que alguns chamam de o maior julgamento do século, dando entrevista a colunista de grande mídia — foi a comprovação de que conspirava a turma do Largo. “Olhem. Estou nu!”. Sim, fazer mídia é parte do plano. Explicar o voto. Esclarecer a opinião pública. Reputar sobriamente (sic.) uma versão diferente da verdade contida nos autos. Esta pedagogia está a cargo do Dick. Boa, Márcio. Um a zero para os conspiradores.
Corta. Cena três. Segunda-feira de votação. Vota a mais nova, conforme a norma. Ária para a soprano. Rosa tira o dela da reta rapidinho e abre passagem pro outro bonitão do Rio, o que não pode ser vilão porque tem inteligência de galã. Pérolas de retórica mergulhadas em referências bibliográficas que ignoram o contato com a realidade, entediando a incauta plateia. Segue o script. Vota contra Cunha e os pequenos crimes do valerioduto. Tanta ladainha por causa de cinquenta mil na boca do caixa e um assessorzinho contratado pra ajudar um deputado. Tá vendo? Eu não disse que este bonitão não era de confiança.
Na mesma cena, antes de adentrar a terça-feira, o Dr. Dias Toffoli, o nosso garoto, contracena o seu papel de estafeta, e contrabandeia o seu voto na esteira de Dick, o Bonitão pra valer. Vejo os noticiários noturnos, anunciando o placar do fim de mais um dia: 4 x 2 contra o Cunha. Ou se preferir, quatro a dois contra os paulistas. A outra moça também votou pela condenação de todos. Amanhã tem mais TV Justiça. Já disse para o Nassif parar de passar. Pega mal.
Cena quatro. Terça-feira. Vespertai Brasil, cá vem mais uma tarde deste law and order tropical. Xi… Terça não tem mensalão.
Bom dia, quarta-feira. A Cezar o que é de Cezar! O voto, a aposentadoria e o tempo que quiser para falar. O Cunha já sabe o destino que lhe espera. Aos quarenta do segundo tempo é muito difícil virar um placar de quatro a dois. Especialmente quando tudo o que o menino de Osasco conseguiu foi colocar São Paulo do seu lado na corte. Nenhum sinal de que a vontade dos votantes restantes contrariará a vontade da maioria provisória ora reinante no tribunal. As galeras aguardam, aguardam também os camarotes. A orquestra afina os instrumentos para a trilha sonora quase silenciosa que acompanhará os barítonos que ainda se pronunciarão. As sopranos cantaram suas árias tímidas e saíram de cena. Os tenores desafinaram, mas tudo bem, era de se esperar.
Dia que parecia curto ficou cheio de votos nesta quarta-feira. Peluzo aposentou, e jogou apenas um novo ingrediente ao incêndio. Antecipou em seu voto a dosimetria das penas aplicadas no voto. Seis anos para o deputado Cunha, o terceiro homem na linha sucessória da república do mensalão. Absolveu-o, entretanto, da acusação de lavagem de dinheiro. O placar desta votação será apertado até o fim. Aparentemente. Uma das sopranos não votou neste item. Absteve-se ou votará em próximo ato? Deixou pra depois.
Gilmar foi Gilmar. O pragmatismo lhe corre nas veias. Não sabe adjudicar de outro modo. Semeou histeria. É tudo um escândalo, menos eu, aqui, só. E Marco Aurélio foi Marco Aurélio. Causa incômoda sua arguição sórdida contra a necessidade do ato de ofício para tipificar o crime de corrupção. É possível a corrupção ativa sem a aceitação dos benefícios por parte do presumido corrompível. Que horror. Condenem o Cunha. Afinal foram cinquenta mil reais do erário público. Mas não me diga que este argumento vale. Se for assim, para tipificar homicídio só vai ter que demonstrar a presença de intenção e tentativa de matar? Desculpe-me, mas ou bem se consegue matar ou bem não houve homicídio. Isso aqui não é a vida real, não, douto jurista. É teatro.
Celso, a reserva do positivismo moralista na corte, também votou. Quase. Divagou e votou. E pronto. Nem bonitão ele não é.
Amanhã tem mais. Dormir de quarta pra quinta, para quem acompanha o teatro de mensalão, tem sido uma experiência curiosa de modulação dos padrões do sono. Como em um jogo de críquete, dorme-se com o resultado parcial na cabeça. O sono sente, pressente e acaba conturbado. Hoje será uma noite diferente. A primeira parte da brincadeira terminou com tamanha vantagem para um dos lados, que o sono será tranquilo. Ou talvez não.
Cena cinco. Quinta-feira calma. Ressaca sem porre. Ayres Britto é presidencial e procedural ao acompanhar os votos vencedores e resolver o problema do deputado Cunha com lavagem de dinheiro. Culpado. O cunho do Cunha não vale nada. Importou apenas seu valor. Mas ele é moeda pequena. Nuvem passageira.
Começou o segundo do voto do relator. Barbosinha não vai salvar o Banco mais fraudulento da Nova República. As costas não aguentariam.
Entrará a Segunda-feira e todos ainda estarão tentando lembrar onde mesmo tinha parado a novela da semana passada. Pouco importa. Nesta pescaria ninguém procura bagrinho. Moeda pequena é bobagem. O Cunha, infelizmente para ele, felizmente para todos nós, não joga mais nesse jogo. A Liga de Críquete de Osasco agradece? Não sei. Mas tenho pena do Cunha. Afinal, como dizia Pessoa, “a única atitude intelectual digna de uma criatura superior é a de uma calma e fria compaixão por tudo quanto não é ele próprio. Não que essa atitude tenha o mínimo cunho de justa e verdadeira; mas é tão invejável que é preciso tê-la.”