[Georges Bataille*]
Poucos acontecimentos têm mais valor simbólico que a tomada da Bastilha. Por ocasião da festa que a comemora, há muitos franceses que, ao verem avançar na noite as luzes de uma retirada de archotes sentem o que os une à soberania de seu país. Esta soberania popular, que é inteiramente tumulto, revolta, é irresistível como um grito. Não há sinal mais eloquente da festa que a demolição insurrecional de uma prisão: a festa, que não existe se não é soberana, é em essência o arrebatamento de onde procede a soberania inflexível. Mas sem um elemento de acaso, sem capricho, o acontecimento não teria o mesmo alcance (é por isso que ele é símbolo, por isso ele difere das fórmulas abstratas).
Diz-se da tomada da Bastilha que ela na verdade não tinha o sentido que lhe emprestam. É possível. Nesta prisão, no dia 14 de julho de 1789, só existem prisioneiros de pouco interesse. O acontecimento seria, afinal de contas, apenas um mal-entendido. A se crer em Sade, seria efetivamente um mal-entendido: um mal-entendido que ele próprio teria suscitado! Mas poderíamos nos dizer que a parte de mal-entendido dá à história este elemento cego sem o qual ela seria a simples resposta à lei da necessidade (como na fábrica). Acrescentemos que o capricho não só introduz na figura do 14 de julho o desmentido parcial do interesse, mas um interesse adventício.
No momento em que se decidia, mas obscuramente, no espírito do povo um acontecimento que iria sacudir, assim como em breve libertar, o mundo, um dos infelizes que os muros da Bastilha encerravam era o autor de Justine (este livro cuja introdução de Jean Paulhan afirma que ele punha uma questão tão grave, que não era suficiente um século inteiro para respondê-la). Ele estava então encarcerado há dez anos, na Bastilha desde 1784: um dos homens mais rebeldes e mais irascíveis que alguma vez falaram de rebelião e de raiva; um homem, numa palavra, monstruoso, que possuía a paixão de uma liberdade impossível. O manuscrito de Justine ainda estava na Bastilha em 14 de julho, mas abandonado num cárcere vazio (assim como o dos Cento e Vinte Dias de Sodoma). É certo que Sade, às vésperas da sublevação, discursou para a multidão: ele se armou, parece, a título de porta-voz, de um cano que servia para esvaziar suas águas sujas, gritando entre outras provocações que se “degolavam os prisioneiros”. O feito corresponde precisamente ao caráter provocador que a vida inteira e a obra manifestam.
Mas este homem que, por ter sido a própria fúria, estava há dez anos preso e que, após dez anos, esperava o momento da libertação, não foi libertado pela “fúria” da sublevação. É comum que um sonho deixe, na angústia, entrever uma possibilidade perfeita, que ele oculta no último instante: como se a resposta confusa fosse sozinha suficientemente caprichosa para satisfazer o desejo exasperado. A exasperação do prisioneiro retardou nove meses sua libertação: o governador exigiu a transferência de um personagem cujo humor se conciliava tão bem com o acontecimento¹. Quando a fechadura cedeu e a sublevação libertadora encheu as cores da praça, o cárcere de Sade estava vazio e a desordem do momento teve este efeito: os manuscritos do marquês, dispersados, se perderam, o manuscrito dos Cento e Vinte Dias de Sodoma (de um livro que em algum sentido domina todos os livros, sendo a verdade do arrebatamento que o homem no fundo é e que ele teve de conter e calar), desapareceu: este livro que em si mesmo significa, pelo menos significou o primeiro, todo o horror da liberdade, a sublevação da Bastilha cm vez de libertar-lhe o autor, extraviou-lhe o manuscrito. O 14 de julho foi verdadeiramente libertador, mas à maneira oculta de um sonho. Mais tarde, o manuscrito foi encontrado (foi publicado na nossa época) — mas o próprio marquês continuou despossuído. Ele o acreditou para sempre perdido, o que o oprimia: era “a maior infelicidade”, escreve ele, “que o céu pôde lhe reservar”; morreu ignorando que na verdade o que ele imaginava assim perdido devia tomar lugar, pouco mais tarde, entre os “monumentos imperecíveis do passado”.
¹[N. A.] Eis o que, numa carta ao notário Gaufridy, sem data, mas logicamente de maio de 1790, o marquês de Sade diz dele mesmo: “A quatro de julho, por ocasião de um pouco de algazarra que fiz na Bastilha pelos dissabores que se me provocavam ali, o governador se queixou ao ministro. Eu inflamava, dizia-se, o espírito do povo, cu o exortava a pôr abaixo esse monumento de horror… Tudo isso era verdade…” (Correspondance Inédite du Marquis de Sade…, publicada por Paul Bourdin. Pará, 1929, p. 269). E numa carta ao presidente do Clube da Constituição de Lacoste, datada de 19 de abril de 1792: “Se o senhor se informar lhe dirão se não ( universalmente reconhecido, se não está autenticamente impresso, que foram as reuniões do povo feitas por mim e sob minhas janelas na Bastilha que de repente me levaram a ser preso como um homem perigoso e cujas moções incendiárias fariam derrubar este monumento de horror. Faça que lhe dêem as cartas do governador da Bastilha ao ministro e aí o senhor lerá estas palavras: “Se M. de Sade não for levado esta noite da Bastilha, não respondo pelo lugar do rei”, o senhor verá se está lá o homem que é preciso molestar” (lbid., pp. 314-5). Enfim, num projeto de petição “aos legisladores da Convenção”, que data de 1793: “… eu ainda estava na Bastilha no dia 3 de julho de 1789. Eu vulgarizava a guarnição; revelava aos habitantes de Paris as atrocidades que se preparavam contra eles neste castelo. Launay me acreditou perigoso; possuo a carta pela qual ele solicitava ao ministro Villedeuil para me afastar de uma fortaleza de que eu queria impedir a traição a qualquer preço que fosse” .
* Extraído de ” A Literatura e o Mal” de George Bataille (tradução de Sueli Bastos), Editora LP&M, 1989.
Georges Bataille: http://pt.wikipedia.org/wiki/Georges_Bataille
Marquês de Sade: http://pt.wikipedia.org/wiki/Marquês_de_Sade