Quem julga o Mensalão, Imprensa ou STF?

[Antonio Engelke]*

Na capa do jornal O Globo deste domingo (5/8) lia-se: “Julgamento do Mensalão. Tropa de 150 advogados vai tentar salvar os réus”. Ao olhar desatento, parece uma manchete “normal”, meramente descritiva: afinal, há um julgamento em andamento, com advogados e réus. No entanto, se atentarmos para as metáforas utilizadas – a “tropa” de advogados que tenta “salvar” os réus –, veremos que a imagem que resulta da descrição oferecida pelo jornal não é a de um julgamento, e sim de uma guerra. Para entender porque isto importa, façamos uma breve porém instrutiva visita aos domínios da economia, psicologia e lingüística.

Uma versão do chamado “Jogo do Dilema do Prisioneiro”, criado e estudado por economistas, consiste basicamente no seguinte: o pesquisador divide os participantes em dois grupos, A e B. Quem está no grupo A tem a prerrogativa de fazer a proposta inicial. Quem está no Grupo B pode aceitar ou rejeitar a proposta – nesse caso, todos voltam para casa de mãos abanando. Funciona assim: o pesquisador dá 100 dólares para o Grupo A, que fará uma proposta ao grupo B, como por exemplo: “Nós ficamos com 80 dólares, vocês com 20”. Se o grupo B aceitar, acordo feito. Se não, os Grupos A e B saem do jogo sem dinheiro algum.

O “Dilema do Prisioneiro” ganhou notoriedade por provar que as pessoas não se comportam do modo como os economistas supõem. Mas isso não importa aqui. Mais interessante é observar as conclusões que o psicólogo social Lee D. Ross (Stanford) extraiu ao adicionar uma variável nova ao Jogo. Para um conjunto de pessoas pesquisadas, Ross e seus assistentes disseram que tratava-se do “Jogo da Comunidade”; para um outro conjunto, que era o “Jogo de Wall Street”. O objetivo era observar se a maneira de nomear o jogo influenciaria o comportamento dos participantes. Os resultados surpreenderam. De cada 10 propostas feitas pelo grupo A no “Jogo da Comunidade”, 7 eram aceitas pelo grupo B. Já no “Jogo de Wall Street”, somente 3 eram aceitas. Como se explica a diferença? Os participantes do “Wall Street” fizeram propostas mais agressivas, como a 80/20, o que era visto pelos integrantes do grupo B como uma atitude gananciosa, injusta – daí a recusa em aceitá-la. Ross e outros psicólogos referem-se a este fenômeno como framing (“enquadramento”): o modo como uma determinada situação é rotulada ou descrita influencia decisivamente no modo como as pessoas vão se comportar em relação a ela. “Comunidade” evoca cooperação, compartilhamento, sensações de empatia; “Wall Street” evoca ganância, ambição, espírito competitivo. Simples assim.

Uma das maneiras mais eficientes e sutis de produzir “enquadramentos” é através do uso de metáforas. O poder das metáforas está em nos levar a entender um tipo de coisa (realidade, situação etc.) nos termos de outra, isto é, como se fosse outra coisa. Cada metáfora que usamos para descrever uma situação engendra um conjunto de disposições ou atitudes correlatas. E assim voltamos à manchete do Globo: ao dizer que os advogados formam uma “tropa” e, mais ainda, que estão tentando “salvar” os réus – e não “defendê-los”, o que corresponderia à descrição literal da realidade –, o Globo leva seus leitores a entender o julgamento do Mensalão como se fosse uma guerra. Aí o espanto: pois a guerra é a suspensão temporária do Direito, ou o mais próximo que se pode chegar de sua ausência completa ou negação. Descrever o desenrolar natural de um julgamento no Supremo Tribunal Federal como se fosse uma guerra é duplamente problemático, para não dizer equivocado, porque 1) ajuda a criar uma atmosfera de conflito, na medida em que estrutura a opinião pública sobre o assunto em termos beligerantes, e não em termos de ponderação e debate racional, sem os quais nenhum julgamento razoável é possível; e 2) contribui, ainda que inadvertidamente, para desacreditar o próprio STF enquanto instituição, dado que uma guerra é por definição o espaço do vale-tudo, da baixeza, da animalidade que não conhece limites.

Seria possível objetar, lembrando que metáforas como “batalha judicial” já se encontram por demais difundidas. É verdade, mas isso não esvazia o argumento. Que uma metáfora tenha sido assimilada pelo senso comum como se descrição literal fosse é um motivo a mais, e não a menos, para que reconheçamos a força e o alcance do enquadramento que ela opera. Mas o principal é que, ao afirmar que a “tropa” de advogados vai tentar “salvar” os réus, a manchete do Globo está deslegitimando de antemão a defesa: a mensagem é que os generais do exército inimigo estão dispostos a usar todo tipo de armas sujas para conseguir a vitória, e não que os advogados dos acusados estão apenas fazendo o seu trabalho, indispensável à justiça do processo como um todo. A diferença é expressiva. Resta evidente que o Globo, antes de informar os leitores, procurou na verdade “eletrizá-los” – o que aliás se coaduna perfeitamente com o seu slogan, “Muito além do papel do jornal”.

Sabemos que a imprensa brasileira condenou os réus do mensalão muito antes do julgamento do STF, e que agora “não admite a revisão de seu veredicto”, como observou Marcos Coimbra, presidente do Instituto Vox Populi. Trata-se de um modus operandi preocupante, este – tão preocupante quanto uma imprensa completamente cooptada pelo poder central, incapaz portanto de exercer seu ofício com a liberdade necessária. Que O Globo tenha a intenção não-declarada de influir nos rumos da política, é algo questionável, porém compreensível desde que o jornal se mantenha fiel aos fatos tanto quanto for possível. Mas que, neste processo, acabe contribuindo para o descrédito de uma das principais instituições da democracia brasileira, é algo muito mais sério, cuja crítica não poderia passar em branco.

* [N.A]Agradeço a Sérgio Bruno Martins os comentários sempre instigantes, que me ajudaram a ampliar e refinar os argumentos.

7 comentários sobre “Quem julga o Mensalão, Imprensa ou STF?

  1. É interessante notar como o autor esqueceu que a maioria dos juízes foram indicados pelo PT (Lula/Dilma), que tem um Ministro que tem como namorada uma advogada de mensaleiro, e que fazer caixa 2, como alguns já reconheceram, é crime tanto quanto a acusação de suborno em troca de apoio eleitoral.

    A palavra tropa também remete a um grupo grande de pessoas com mesmo uniforme, ideal e comportamento, o que cabe bem ao caso porque são todos engravatados, tentando medidas protelatórias, inclusive retomando a já vencida questão do desmembramento do processo.

    E como republicano que sou, não tenho nenhum receio que tenhamos atenção da mídia ao processo do Mensalão, seja desse governo, seja o do mineiro que esta parado. O fato é que discordo do autor, quando afirma que estão buscando o descrédito do STF, na forma de tratar o tema.

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  2. É isso aí, Louis Allanic. Já na segunda linha o prenúncio do q viria em seguida (ai q preguiça…), “ao olhar desatento…”, alguém viria à galope nos salvar da nossa ignorância. Mais uma, o autor não entendeu o q é o “dilema do prisioneiro” (ai q preguiça 2).

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  3. Louis, obrigado pelo comentário.

    Penso que se deve criticar um texto (ou um filme, um livro) pricipalmente pelo que ele se propõe a alcançar — por aquilo que ele de fato diz –, e não por aquilo que o crítico gostaria que ele dissesse. Digo isto porque não foi minha intenção examinar o julgamento em si. Em momento algum me propus a avaliar os problemas que atravessam um julgamento tão complicado como este do Mensalão. Aliás, creio que não estou qualificado para isso. Portanto, afirmar que eu “esqueci” de abordar questões como a indicação de ministros não diz nada sobre o argumento que procurei expor. Para preencher esta lacuna que você aponta, eu teria que escrever um outro artigo.

    Como você, eu também não tenho nenhum receio de que tenhamos os holofotes da imprensa voltados para o Mensalão. Teria, isto sim, receio do inverso, pois acredito que “a luz do sol é o melhor detergente”, como bem disse um juiz norte-americano cujo nome agora me escapa. Mas o fato de enxergar com bons olhos a liberdade de imprensa não me cega para os abusos que ela eventualmente pode cometer. É um poder enorme, o da imprensa. Acho que merece ser vigiado, assim como o poder daqueles que foram eleitos para administrar a res publica.

    Perceba: em momento algum eu escrevi que o Globo “estaria buscando o descrédito” do STF, como vc afirma. Não imputei ao Globo a intenção de desacreditar o STF. — mas sugeri que o jornal acaba fazendo justamente isso, sem que tenha se dado conta disso. Releia: “Descrever o desenrolar natural de um julgamento no Supremo Tribunal Federal como se fosse uma guerra é duplamente problemático, para não dizer equivocado, porque (…) contribui, ainda que inadvertidamente, para desacreditar o próprio STF enquanto instituição…”.

    Um abraço,

    Antonio Engelke

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  4. JP, tens razão. Fiz confusão: trata-se na verdade do “Jogo do Ultimato”. Li sobre estes experimentos de behavioral economics faz algum tempo, e acabei trocando as bolas. Obrigado. Abraço

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  5. Essa tese seria até plausível se o lado que tem interesse em desacreditar o STF, o judiciário e as provas desse caso não fosse exatamente o lado dos réus, que convém lembrar, são todos eles governistas, aliados do poder central e beneficiados por todo o poder de fogo que só o governo possui no momento da guerra do financiamento e do patrocínio da mídia.

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