[Wilson Gomes, CEADD]*
1. Protestos de rua, mobilização de multidões na cena pública e até ocupação de espaços e obstrução de vias são formas de comunicação política. É justamente por isso, porque são comunicação, é que são chamadas de “manifestações” ou representação pública de uma posição política.
2. Por meio de manifestações, pessoas e grupos atingidos, afetados por alguma situação que consideram injusta, inadequada ou insatisfatória – e outras pessoas a elas solidárias – fazem saber ao grupo ou à instituição responsável pela situação em tela, e à sociedade em geral, que não estão de acordo com isso e que requerem mudanças urgentes.
3. Na democracia, é legítimo que pessoas e grupos lutem por interesses próprios e que usem manifestações como meio de luta. Mas nem todos os interesses são generalizáveis nem toda a satisfação de reivindicações merecerá a solidariedade dos não afetados pela situação em tela. Num universo de recursos finitos, quase sempre quando um conjunto de interesses é satisfeito isso diminui a possibilidade de que outros interesses possam ser atendidos. Por isso mesmo, o grupo portador de reivindicações via manifestações precisa captar o máximo de simpatia do resto da sociedade, não apenas porque os outros podem exercer pressão favorável ao grupo em questão, mas, sobretudo, para evitar a sensação de este grupo está avançando pretensões indevidas e egoístas sobre o patrimônio comum, em prejuízo dos demais.
4. Por essa razão, o modo como a mensagem-manifestação é elaborada será fundamental para a captação da benevolência dos demais. O coletivo manifestante terá que dramatizar a própria situação (no sentido de produzir narrativas dramáticas em que se representam o modo como a circunstância injusta lhe atinge), transformar a circunstância contra a qual luta em problema de toda a sociedade e, sobretudo, vender a ideia de que remover a situação opressora será um benefício para todos e não apenas para o grupo. E isso tudo ainda tendo que lidar com discursos e narrativas adversárias e eventuais interesses antagônicos, que também são legítimos.
5. Toda manifestação, enquanto mensagem produzida diretamente pelo grupo portador de reivindicações, será mediada por outro conjunto de mensagens antes de chegar, para além do círculo mais restrito dos envolvidos e engajados, aos corações e mentes do resto das pessoas. Este outro conjunto de mensagem poderá ser produzido por cidadãos anônimos nas suas redes de comunicação horizontal, via internet, mas é produzido principalmente pelo jornalismo industrial. Que usará os seus critérios próprios de seleção e decisão editorial e realizará a cobertura conforme o interesse do seu modelo (imaginado) de consumidor, o que normalmente significa que não será conforme o interesse do grupo manifestante. A manifestação retirada das ruas para páginas e telas, depois de editadas, reorganizadas como histórias, estruturadas conforme a machetaria das narrativas jornalísticas não é nem pode ser a mesma coisa, ter o mesmo sentido e configurar-se exatamente como a mesma mensagem que interessa ao grupo portador de reivindicações. Não tem jeito. Estamos em um mundo em que todos os fatos e eventos são mediados pela cobertura do noticiário, por que seria diferente no caso de manifestações? Esquecer-se do fato de que há mediação pode ser o pecado mortal das manifestações de rua.
6. Tem papel decisivo em toda a manifestação o conceito de política, Estado e democracia que sustenta a estratégia de comunicação por trás dos protestos, passeatas, obstruções e ocupações. Um grande problema das manifestações brasileiras consiste na concepção que compartilham acerca da política (“política é uma atividade indigna e classista, realizada por canalhas cujo objetivo é a satisfação dos interesses próprios e que, ademais, empregam a sua energia para prejudicar os trabalhadores e os pobres”), do Estado (“estruturalmente um adversário da sociedade, ocupado por governos que têm recursos infinitos e fazem políticas públicas orientadas exclusivamente por um fator chamado «vontade política»”) e da democracia (“democracia é um sistema em que os trabalhadores, os pobres e qualquer coletivo em que eu esteja têm satisfeitos todos os seus interesses; democracia verdadeira é um sistema em que organizações sociais governam e se autorrepresentam ao tempo em que representam o povo”). Os inconvenientes desses pressupostos são: a) expectativas irrealizáveis sobre os limites e processos da fazenda pública e dos orçamentos públicos; b) incompreensão dos processos legislativos, dos procedimentos de formulação e implantação de políticas públicas e das demais regras de funcionamento do Estado democrático; c) dificuldade de estabelecimento de pontes com “o resto da sociedade” e com as instituições do Estado, uma vez que a parte reivindicante se autocompreende como sendo o Todo, de fato ou de direito.
7. Organizadores de manifestações em geral são muito habilidosos na mobilização interna dos afetados pela situação injusta, na comunicação para dentro do grupo a fim de reforçar o vínculo interno, para criar uma identidade coletiva e, por fim, com o objetivo de produzir a indignação moral necessária para por o grupo em movimento. Mas podem ser um desastre na criação de pontes com os que estão fora do coletivo, seja com os responsáveis por alterar o indesejável estado das coisas, seja com aqueles cuja solidariedade seria essencial para exercer pressão sobre os primeiros ou, ao menos, para que não fosse exercida pressão em sentido contrário ao que se reivindica. Aparentemente, quanto mais forte o capital social que torna o grupo compacto, mais fraco é o capital social que constrói conexões, que negocia reivindicações e capta benevolência. Assim, grupos compactos podem estar tão certos da justiça do que reivindicam e de tal modo imbuídos do furor moral contra injustiça que sofrem que frequentemente imaginam que podem conseguir satisfazer reivindicações “na marra”, sem persuasão ou negociação.
8. Manifestantes, da mesma maneira que atores de muitos outros setores da sociedade, não necessariamente possuem habilidades ou competências para lidar com os mediadores profissionais do jornalismo, embora precisem contar com esta mediação e lidar com ela para conseguir passar a sua mensagem aos seus destinatários. Produzir mensagens é uma coisa, garantir que ela seja entregue conforme a intenção de quem a produz é outra, bem diferente. Outros setores sociais resolveram isso contratando capacidade profissional de comunicadores (RP, assessores e consultores de comunicação e imagem, jornalistas, produtores, publicitários) para cuidar da própria visibilidade e da imagem e reputação que lhes convém na esfera de visibilidade pública monopolizada pelos campos profissionais e pelas indústrias da comunicação. Atores da sociedade civil, principalmente atores de mobilizações sociais que, portanto, são eventuais e não estáveis (diferentemente das organizações sociais), não contam com esta ajuda profissionalizada. Por desconhecer a mediação necessária do noticiário e achar que a mensagem saída “das ruas” chegará, “desintermediada”, a todos, o manifestante viverá sempre a grande frustração de não ver o que ele deseja manifestar refletido no jornal. Para ele, o jornalismo teria uma obrigação moral e uma capacidade ontológica de refletir as coisas e só não o faz porque veicula interesses políticos divergentes dos manifestantes. Acontece, porém, que o jornalismo não é um espelho onde os fatos, eventos e mensagens produzidas na realidade se refletem integralmente. A cobertura jornalística é uma produção de narrativas, estruturadas segundo critérios específicos, em que fatos são editados, mensagens são reorganizadas e recontextualizadas, discursos e imagens são agrupados e encaixados, tudo para satisfazer o consumidor modelo de informação daquele veículo. O jornalismo não é o entregador da mensagem das manifestações de rua. Não é, nem o pode ser. Todo fato ou mensagem hoje é mediado pelo jornalismo, não porque os jornalistas sejam perversos e monopolistas, mas porque é na cobertura do noticiário que as pessoas vão buscar as informações sobre os fatos do dia.
9. Grupos portadores de reivindicações que não conseguem ou não desejam construir pontes tendem a se transformar em coletivos agressivos contra todos os que estão fora deles e que lhes parece obstáculos. À medida que sentem que não estão sendo ouvidos pelo destinatário primário das suas reivindicações e/ou que a sua mensagem não está sendo refletida no noticiário, vão elevando a voz e radicalizando as atitudes, numa falsa esperança de que se gritar podem ser, enfim, ouvidos e atendidos. É normal a este ponto iniciar um processo de transformação do oposto em adversário e do adversário em inimigo. Formam-se, então, setores mais radicalizados dentro grupo, dispostos a partir para o confronto, e a causa vai sendo perdida – mesmo a causa mais justa não consegue prosperar quando passa a ser defendida e representada publicamente por grupos que são objetos de grande antipatia social.
10. Na “fase de inimizade”, o primeiro alvo são os que poderiam resolver a situação adversa que motivou a reivindicação, os destinatários primários da reivindicação, e tudo o que pareça a eles associados. Se estes destinatários são os políticos, o objeto imediato do confronto pode ser o espaço físico ocupado por eles, a polícia e as instituições públicas e financeiras que constituem o status quo político e econômico, numa escala crescente de inclusão de alvos. A segunda classe de alvos podem ser os mediadores profissionais das narrativas das manifestações – o jornalismo -, uma vez que não entregam a mensagem que os manifestantes produzem e que, segundo o raciocínio comum, não o fazem porque são adversários. A terceira classe de alvos é “o resto da sociedade”, que, segundo o raciocínio dos manifestantes, precisam de algum modo experimentar na própria carne a opressão e a frustração dos portadores de reivindicação. Trata-se da “socialização de transtornos” – se eu sofro, todos têm que sofrer para ver se alguma coisa muda. Isso cria, paradoxalmente, uma nova classe de pessoas afetadas por situações injustas ou indesejadas: os afetados por manifestações.
11. Manifestações eficientes são as que conseguem ter a sua mensagem entregue ao grande público e que, por esse meio, consegue persuadi-lo a apoiar o que reivindicam. Manifestações na escala massiva de participação, raras, tendem a ser forças incontroláveis na modificação de agendas e políticas e até na alteração de regulamentações, leis e demais formas de decisão política. Isso porque, de algum modo, o público em geral se sente representado pelo que se reivindica e não se sente ameaçado pela satisfação dos interesses manifestados. Manifestações na escala de multidões e grupos enfrentam maiores dificuldades porque há mais gente fora do que dentro do coletivo, de forma que enfrentam dificuldades suplementares para produzir uma mensagem que, primeiro, chegue ao público e, segundo, que o convença da justiça da causa defendida. Nesta escala, é preciso cuidar muito da forma da mensagem, dos vários destinatários a que ela se destina e, enfim, do modo como operam os mediadores que se colocam entre os manifestantes e o público em geral.
12. Em todo ciclo de manifestações de rua há que se levar em conta o fenômeno de psicologia social que podemos chamar de “fadiga de compaixão”. O público tem uma cota limitada de compaixão, de empatia na dor e no sofrimento dos outros e, portanto, de paixão moral para ser despendida com os eventos presentes no noticiário. Depois de certa duração e de determinada intensidade na solicitação dos seus sentimentos de compaixão, da sua paixão intelectual e moral, o público já não tem mais esses sentimentos disponíveis e vai precisar de um tempo “defeso”, de uma folga na demanda por piedade e engajamento. Neste período perde-se, inclusive, a capacidade de distinguir uma causa da outra, uma tragédia da outra, uma reivindicação da outra. É um período de insensibilidade, cuja velocidade de recuperação vai depender dos níveis de dispêndio de compaixão que o ciclo anterior de solicitação de empatia demandou. Desde junho acompanhando manifestações, aparentemente ninguém aguenta mais ver manifestações no telejornal da noite e o público já nem é capaz de claramente distinguir uma causa da outra, todas lhes parecem iguais e dramatizadas num nível histérico de fogo e quebra-quebra. O público brasileiro chegou a outubro precisando de uma folga.
*[N.E.] Publicado originalmente na pagina do CEADD – Centro de Estudos Avançados em Democracia Digital da UFBA, http://www.ceadd.com.br/doze-teses-sobre-manifestacoes-de-rua-como-forma-de-comunicacao-politica/ . Nossos agradecimentos ao autor que permitiu a reprodução.
um texto bem escrito, faz sentido, mas muito equivocado a partir do ponto 5. em primeiro lugar, porque sua visão sobre o jornalismo é de um conformismo apavorante. vamos lá.
– no ponto 5, sua frase síntese é:
“Não tem jeito. Estamos em um mundo em que todos os fatos e eventos são mediados pela cobertura do noticiário, por que seria diferente no caso de manifestações? Esquecer-se do fato de que há mediação pode ser o pecado mortal das manifestações de rua”.
o autor ingenuamente, ou cinicamente – não é possível afirmar -, confunde ‘mediação’ com ‘manipulação’. são tantos vídeos, fotos, relatos e matérias das mídias alternativas que sequer perderei tempo em discutir esse fato – tão evidente que obrigou diversos canais de televisão à rever suas opiniões anteriores, não raro sendo totalmente pautados pelas redes sociais e mídias alternativas – como no caso do bruno, rapaz acusado de jogar um molotov e que, devido à uma rede de investigação nas mídias sociais, foi inocentado com provas de que o mesmo ato foi realizado por um policial infiltrado (p2).
– no ponto 6, o autor exibe uma visão altamente preconceituosa e elitista, sem absolutamente nenhum dado que a justifique, sobre o que são as concepções dos manifestantes a respeito da política (reduzida a um grupo de canalhas), estado (inimigo do povo) e democracia (sistema de organizações sociais egoístas).
ora, pergunto ao autor de onde tirou isso. sobretudo quando seu foco são os manifestantes. sua atuação, ao contrário, não é de antagonismo a essas instituições, mas de profundo apreço. os bons políticos não deixam de serem reconhecidos (a despeito e sem conflito com o apartidarismo, que não é o mesmo que anti-partidarismo) e suas ações divulgadas; o estado não é inimigo do povo, mas o governo é duramente contestado, sobretudo por usurpar o estado em nome de interesses privados – dentre os quais os dele mesmo; e a democracia não é um coletivo egoísta e mimado, mas percebida como um objetivo incessante de adequação constitucional, ou seja, a democracia participativa e não somente a representativa. afora esses preconceitos, o autor parece interpretar os fatos recentes sem considerar a violência policial, as leis inconstitucionais da alerj – ou a lei de segurança nacional de são paulo, só para ficar nas duas maiores capitais. parece desconsiderar também o golpe de estado na cpi dos ônibus – e lembre-se, as ‘jornadas de junho começaram como um apelo à mobilidade pública; parece também esquecer do plano de carreira dos professores, e da demanda universalista contida nos protestos por uma educação pública de qualidade. poderia me estender ad eternum, mas o ponto 7 me chama.
– o ponto 7, falaciosamente, atribui um caráter radical ao ‘movimento’, ou aos ‘coletivos’, tomados como incapazes e/ou indesejosos de dialogar. pelo retrospecto dos governos estaduais e municipais, sobretudo no rio de janeiro, está evidente de que a ausência de vontade de dialogar é um fato, mas que provém diretamente das autoridades públicas. nesse ponto, a classe política se equipara totalmente aos black blocs.
– o ponto 8 é uma repetição do ponto 6, basicamente centrada numa alta dose de conformismo sobre o papel do jornalismo. apenas acrescento que, não, os manifestantes não esperam que a mídia oficial seja a ‘voz das ruas’. esse tipo de ingenuidade não existe. existe apenas indignação quanto a cobertura. os manifestantes criaram sua própria voz, por meio das mídias independentes, dentre as quais a mais notória é a mídia ninja.
– o ponto 9 é uma repetição do ponto 8, que é uma repetição do ponto 6. a única novidade é que atribui um acirramento do radicalismo aos ‘coletivos’ (argumento do ponto 7) nascido em virtude dos canais tradicionais de mídia não reproduzirem o que eles querem. não vou perder tempo re-comentando.
– no ponto 10, que chama de ‘fase da inimizade’, o autor argumenta que, devido ao radicalismo/frustração, o estado, os empresários, os jornalistas e a própria sociedade se tornam os alvos dos manifestantes. não só é uma leitura rasa como tendenciosa. ela mistura no mesmo ‘saco’ todos aqueles que saem as ruas, reduzindo-os à depredadores. o autor provavelmente não teve a coragem de utilizar a palavra ‘vândalo’ – decerto comprometeria sua imagem de isenção – mas é essa sua categoria implícita. além disso, ao transformar as manifestações em episódios movidos por grupo isolados e obscuros desqualifica sua universalidade. em junho, mais de um milhão, feito repetido agora em outubro. ou esses ‘coletivos egoístas’ são incapazes do diálogo ou a presença dos milhares, milhões, de manifestantes está além desses pequenos interesses particularistas.
– o ponto 11 é obscuro, não sei se pela redação ou se pelo ‘argumento’. em primeiro lugar, caracteriza unilateralmente a ‘boa manifestação’ como aquela dotada de ‘eficiência’. e por eficiência define a capacidade de adesão e mobilização popular à manifestação. por outro lado, alega que uma grande manifestação, por estar além do controle dos ‘coletivos’ (autoritários) não são boas para os seus propósitos. achei no mínimo contraditório e me furtarei a comentar. mas gostaria de contestar o conceito de ‘manifestação’ e, sobretudo, de ‘eficiência’. a ‘boa manifestação’ – aquela que se faz ouvir e que conquista adesão – é uma avaliação boba. se fossem para ser levadas a sério, as grandes manifestações sindicais do lula, por exemplo, seriam um fracasso. a noção de causalidade implícita à definição de ‘eficiência’ também é absurda. tanto porque infesta o concreto e o simbólico de uma manifestação com um caráter tecnicista quanto porque exerce sobre as manifestações uma análise futurológica. afinal, elas continuam acontecendo e seus efeitos ainda estão por serem medidos.
– o ponto 12 é indigno de ser comentado. trata-se apenas de um apelo triste e burguês pelo fim das manifestações. e falando novamente pelo ‘povo’, pelo ‘público’, o autor encerra tristemente o texto revelando sua faceta pequeno-burguesa, justificando a necessidade de uma ‘folga’ porque ” ninguém aguenta mais ver manifestações no telejornal da noite”.
tristes trópicos.
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