Ana Helena Souza (tradução)
(…) Mas, no fundo, em seu aspecto, o que havia de particularmente urbano? Estava com a cabeça descoberta, calçava alpercatas de esparto, fumava um charuto. Deslocava-se com uma espécie de preguiça flanadora que com ou sem razão me parecia expressiva. Mas tudo isso não provava nada, não refutava nada. Talvez tivesse vindo de longe, até mesmo da outra ponta da ilha, ia àquela cidade pela primeira vez talvez ou voltava depois de uma longa ausência. Um cachorrinho o acompanhava, um lulu-da-pomerânia acho, não, não acho. Não tinha certeza nem naquele momento, e ainda hoje não sei, se bem que tenha pensado muito pouco nisso. O cachorrinho acompanhava sofrivelmente, à maneira dos lulus-da-pomerânia, parava, dava giros compridos, deixava para lá, quero dizer, desistia, depois recomeçava um pouco mais longe. A constipação nos lulus-da-pomerânia é sinal de boa saúde. Num determinado momento, preestabelecido se quiserem, por mim tudo bem, o senhor refez seus passos, pegou o cachorrinho nos braços, tirou o charuto da boca e mergulhou seu rosto no pêlo alaranjado. Era um senhor, logo se via. Sim, era um lulu-da-pomerânia alaranjado, quanto mais imagino isso maior a minha convicção. E no entanto. Ora, teria esse senhor vindo de longe, de cabeça descoberta, alpercatas, charuto na boca, acompanhado de um lulu-da-pomerânia? Não parecia mais alguém saído das muralhas, depois de um bom jantar, para passear e passear seu cachorro, sonhando e peidando, como fazem tantos cidadãos, quando o tempo está bom? Mas esse charuto não era talvez na realidade um cachimbo curto, e essas alpercatas, sapatos reforçados brancos de poeira, e esse cachorro, o que é que o impedia de ser um vira-lata que você apanha e abraça, por compaixão ou porque vagou sozinho por muito tempo sem nenhuma companhia fora as estradas sem-fim, areias, calhaus, pântanos, urzais, essa natureza que depende de uma outra justiça, e aqui e ali um companheiro de prisão que você gostaria de abordar, abraçar, ordenhar, amamentar, e com quem cruza, os olhos maus, de medo que ele venha com intimidades. Até o dia em que, não podendo mais, nesse mundo que para você não tem braços, você pega nos seus os cachorros sarnentos, os carrega o tempo que é preciso para que eles o amem, para que você os ame, depois os joga fora. Talvez fosse isso ali, apesar das aparências. Ele desapareceu, a coisa fumegante na mão, a cabeça sobre o peito. Deixem-me explicar. Dos objetos em vias de desaparecer é bem antes que desvio o olhar. Observálos até o último instante, não, não consigo.(…)
NE: Este pequeno trecho foi pinçado de um estrato de algumas paginas disponibilizado gentilmente no site da própria editora. No link abaixo é possível baixar o estrato , obter mais informaçoes e ser direcionado para livrarias onde o livro poder ser adquirido.
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