O Destino Bate à sua Porta: a encruzilhada da democracia na Grécia

 Peter Bratsis

O dilema mais presente e importante da política moderna tem sido a escolha entre os desejos e demandas políticas dos cidadãos versus a expertise e prudência de burocratas e especialistas. Para os mais inclinados à democracia, como Maquiavel e Aristóteles, os julgamentos dos “muitos”, mesmo que frequentemente falhos, ainda assim são mais confiáveis do que os comandos de uma elite. Independente de suas credenciais ou honrarias, os grupos pequenos nunca são páreo para a inteligência coletiva da multidão. Para outros, incluindo aqueles que redigiram a Constituição dos Estados Unidos, os caprichos e desejos dos “muitos” são uma grande ameaça à ordem social, e alguns poucos notáveis devem se interpor como força moderadora entre o povo e os instrumentos de governo.

Os recentes acontecimentos na Grécia têm persistido em virtude desta tensão. A crise econômica grega é frequentemente descrita como o resultado de um excesso de democracia, com os políticos se dobrando perante as demandas dos cidadãos por empregos, pensões e baixos impostos. O troika do Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Central Europeu (BCE) e União Européia (UE) interveio para desfazer o estrago procurando romper os laços entre os habitantes da Grécia e aqueles que os governam. O troika impôs rígidas diretrizes políticas, formuladas por economistas e outros especialistas, e monitora de perto sua implementação pelo governo grego. Recentemente, exigiu garantias por escrito de todos os partidos políticos gregos de que os programas de austeridade serão mantidos a despeito do resultado de quaisquer eleições futuras. Qualquer movimento “regressivo” em direção as demandas do povo grego resultará prontamente em retaliações do troika.

A surpreendente ainda que tímida convocação feita em novembro passado pelo Primeiro Ministro George Papandreou para um plebiscito sobre a dívida levou à sua renúncia imediata. Tendências tecnocráticas à parte, Papandreou obviamente sentia enquanto dirigente eleito alguma obrigação em buscar apoio popular. Seu substituto, Lucas Papademos, foi, ao menos de facto, nomeado pelo troika por suas capacidades técnicas e dedicação aos princípios do FMI e do BCE. É de fato difícil imaginar algum tecnocrata especializado mais credenciado ou testado do que Papademos para o cargo: PhD em economia pelo MIT, professor na Universidade de Columbia e de Atenas e vice-presidente do Banco Central Europeu. Livre dos constrangimentos de ter que pensar em sua reeleição, e sem qualquer oposição formal significativa (o governo Papademos é uma coalizão dos dois maiores partidos mais a extrema direita; apenas os dois partidos de esquerda, com meros 30 assentos em 300, estão fora da coalizão), Papademos foi posto no poder para aprofundar os cortes e as reformas ditas necessárias para lidar com a crise. Finalmente a governança prudente substituiria o populismo irresponsável.

Deve ser enfatizado que não são apenas as Angelas Merkel e os Mario Draghis da vida que querem minimizar os laços entre o Estado grego e seus habitantes; são muitos os cidadãos gregos que também afirmam que a causa principal de todo o problema atual da Grécia é a excessiva aproximação entre os políticos que fazem as políticas públicas e os cidadãos comuns. Num seminário recente intitulado “Pela Grécia Já!”, um pequeno grupo de acadêmicos e políticos famosos advertia para o desastre que ocorreria se a Grécia abandonasse a Zona do Euro e apresentou o populismo como a principal fonte dos problemas gregos. Sugestões das mais absurdas foram apresentadas, desde as que propunham que professores universitários lecionassem algumas horas semanais em escolas públicas, até aquelas que sugeriam que quem tivesse dinheiro sobrando doasse suas economias a fim de amainar a crise financeira. Nikos Alivezatos, até então um respeitado jurista, chegou a levantar o argumento risível de que as elites políticas da Grécia não podem ser responsabilizadas pela presente crise porque esta foi completamente inesperada, dado que em 2007 as agências de crédito ainda avaliavam os títulos gregos como AAA. Todavia, o principal ponto das apresentações do seminário era que havia finalmente chegado a hora de acabar com o populismo e instituir as amplas reformas e transformações necessárias para tornar a Grécia economicamente competitiva.

Quer expresso por políticos alemães ou por acadêmicos gregos, subjaz um duplo argumento contra a democracia popular: que os problemas gregos derivam fundamentalmente de políticos buscando satisfazer as demandas dos cidadãos e, ainda mais importante, que os únicos juízes confiáveis do que seria prudente e apropriado no terreno da política são “os mercados”. Somente pela adulação dos chamados “mercados” pode a Grécia almejar emergir do que de outra forma será a ruína certa. Daí, portanto, especialistas pragmáticos e sem paixões políticas serem os formuladores ideais de políticas públicas. Pessoas comuns, cegas que estão em seus interesses próprios, não são nem confiáveis nem completamente capazes de entender as necessidades políticas do momento. Quanto mais autônomos os formuladores de políticas forem de pressões populares, melhor.

O primeiro conjunto de medidas tomadas pelo governo Papademos é uma boa dica do tipo de políticas que um grupo tão desinteressado e frio implementa. Uma de suas primeiras inovações foi modificar uma política inicialmente proposta por Papandreou em novembro passado, uma série de cortes nas pensões pagas a deficientes físicos. Além de aprofundar os cortes propostos, a administração Papademos adicionou uma lista de potenciais deficiências que incluía coisas como pedofilia e piromania, entre tantas outras. Muitos jornais estrangeiros noticiaram isso como mais um sintoma da patológica mania grega de criar pensões e desperdiçar dinheiro. Representantes do governo rapidamente corrigiram tais notícias dizendo que tratava-se apenas de uma lista de deficiências possíveis, e não de deficiências que seriam elegíveis para pensões públicas. Pode-se facilmente imaginar o encontro dos top gurus da política grega, todos provavelmente sentados em cima de seus pomposos diplomas em administração ou finanças, no qual tiveram a cínica ideia de que tais modificações conseguiriam driblar um debate sério acerca dos méritos e deméritos de cortar as pensões de deficientes físicos. Esta tentativa desprezível, tola e óbvia de encerrar qualquer discussão e crítica séria da lei proposta demonstra claramente como os “muitos” são vistos pelos “poucos”.

Muito mais significativas, no entanto, são as leis recentemente aprovadas no dia 12 de fevereiro, à meia noite, em tempo para a abertura dos mercados asiáticos. Em adição aos últimos pacotes de austeridade exigidos pelo troika, com seus muitos cortes de salários e pensões, tantos planos para diminuir o número de servidores públicos, houve também um enorme retrocesso em termos das leis trabalhistas em vigor. A maioria das regulações e salvaguardas pelas quais os trabalhadores lutaram (e conquistaram) nas últimas quatro décadas foram eliminadas, sem discussão, em uma única noite. Enquanto dezenas de milhares de manifestantes eram bombardeados a gás lacrimogêneo e expulsos do centro de Atenas, décadas de leis foram revogadas em prol dos “mercados”.

Estas políticas são estúpidas não apenas porque é uma certeza matemática que tais cortes de salários e empregos resultarão em mais recessão econômica, menos receitas tributária e o aprofundamento da crise da dívida, mas também porque é igualmente certo que “mercados” felizes não produzem crescimento de empregos. A experiência norte-americana e da maior parte da Europa nos últimos vinte anos tem sido de grande expansão da financeirização e do capitalismo especulativo junto com taxas crescentes de desemprego e subemprego. A automação, ademais, gerou uma contínua e impiedosa diminuição da demanda por trabalho.

Stanley Aronowitz e Bill DeFazio descreveram com precisão este processo em The Jobless Future, e até agora não há indícios de que seu diagnóstico esteja errado. Na Grécia isto é duplamente verdade porque o setor privado nunca empregou mais do que 25% do total de empregados no país. Aliás, pessoas que trabalham por conta própria na Grécia somam incríveis 30% da mão-de-obra (a maior taxa do mundo), excedendo portanto a quantidade de trabalhadores do setor privado. Se o capitalismo foi incapaz de criar empregos na Grécia durante os surtos de crescimento econômico no pós-guerra, por que deveríamos esperar que ele comece subitamente a criar empregos agora? Com o índice oficial de desemprego já ultrapassando os 20%, pode-se apenas imaginar o quão dura a situação ficará nos próximos meses.

A democracia na Grécia (e além dela) está sob ataque em duas frentes fundamentais. De um lado, o mais visível, há forças internas e externas tentando alijar as opiniões e demandas do povo grego do processo de decisão política. Assim, experts e seus fazeres tecnocráticos viriam deslocar a agência popular. “Democracia” seria reduzida a uma casca procedural, respeitando protegendo o Estado de Direito em detrimento da vontade do povo (dois anos de protestos, greves e erosão de apoio para todos os grandes partidos políticos não resultaram em nenhuma modificação nas políticas de austeridade).

De outro lado, e num nível muito mais profundo, o ataque à democracia – na verdade, à política em si mesma –, está sendo levado a cabo através da percepção da impossibilidade de seres humanos decidirem acerca de questões sobre o que é justo ou injusto, bom ou mau. Como já foi observado, são os “mercados” que são vistos como os juízes inescapáveis a decidir sobre quais políticas são necessárias ou apropriadas. Nenhuma consideração de ordem política pode superá-los. Assim, por exemplo, Ed Miliband, líder do Partido Trabalhista na Inglaterra, reconhece que, se fosse o Primeiro Ministro, ele também estaria cortando gastos para reduzir a dívida pública, como os “mercados” exigem. O mesmo se dá na Espanha: nenhum dos dois principais partidos políticos apresentam qualquer alternativa que escape às exigências dos “mercados”. Os exemplos são numerosos demais para listá-los todos. Este é o momento em que o princípio democrático de que nós enquanto comunidade somos autônomos (auto-governo) dá lugar à crença de que somos governados por algo além de nós mesmos (heteronomia). Todas as questões sobre o melhor modelo de educação, quanto taxar as empresas etc. são agora vistos como algo a ser decidido pelos “mercados”. Por exemplo, uma boa política de educação é aquela que produz indivíduos com habilidades e competências “exigidas” pelo mercado de trabalho.

O povo da Grécia está em um beco sem saída, cada vez mais isolado do poder estatal e preso na armadilha de um pensamento heterônomo. O chamado democrático para a ação na vida política e para entender a sociedade como sendo auto-criada e autônoma está seriamente ameaçado. Empurrados para uma posição passiva, eles podem fazer pouco mais do que mendigar ou pedir misericórdia. Cegos pela percepção da onipotência dos “mercados”, e não das comunidades políticas, não enxergam alternativa viável ao seus desmandos.

Entretanto, há muitos na Grécia que ainda se lembram do impulso democrático. Lembram da recusa em aceitar uma necessidade histórica percebida, e de serem os primeiros a rechaçar com sucesso uma invasão do Eixo na Segunda Guerra Mundial. Lembram do corajoso grupo de estudantes que se levantou contra as armas e tanques da Junta Grega. Lembram das palavras de grandes poetas gregos que expressaram amor pela liberdade e pela verdade. Eles enxergam a bravura de alguns intelectuais públicos como Mikis Theodorakis, de 86 anos de idade, mais uma vez encarando a violência policial, dando voz à batalha contra o autoritarismo.

As oportunidades para que os cidadãos da Grécia reconheçam sua superioridade tanto em relação às elites políticas gregas quanto aos tecnocratas do troika estão diante de nós. Ao invés de pedirem piedade, eles precisam se lembrar de que são eles os autores da sociedade. Precisam lembrar de que, no famoso romance de James Cain, foram necessárias duas tentativas para matar “O Grego”. A primeira, a que falhou, danificou sua memória. Foi com a memória prejudicada que a segunda tentativa obteve sucesso. Gregos precisam se lembrar de seu poder, da sua capacidade de governarem a si mesmos, e criar a sua sociedade de acordo com os princípios de sua própria escolha. Do contrário, a heteronomia em suas mentes irá condená-los ao longo e brutal futuro de serem administrados por especialistas e governados por “mercados”.

[*] Tradução do inglês de Antonio Engelke. Revisão de José Eisenberg

Um comentário sobre “O Destino Bate à sua Porta: a encruzilhada da democracia na Grécia

Deixe um comentário