Stendhal ou o Romanesco do Verdadeiro – Simone de Beauvoir

Se, deixando a época contemporânea, volto agora a Stendhal, é que ao sair desses carnavais em que a Mulher se fantasia ora de megera, ora de ninfa, estrela da manhã, sereia, é reconfortante chegar a um homem que vive entre mulheres de carne e osso.

Stendhal, desde infância, amou as mulheres sensualmente; projetou nelas as aspirações de sua adolescência; imaginava-se de bom grado salvando de algum perigo uma bela desconhecida e conquistando-lhe o amor. Chegando a Paris, o que desejava mais ardentemente era “uma mulher encantadora; nós nos adoraremos, ela conhecerá minha alma”… Velho, escreve na poeira as iniciais das mulheres que mais amou. “Creio que foi o devaneio que preferi a tudo”, confia-nos ele. E são imagens de mulheres que lhe alimentaram os sonhos; a lembrança delas anima as paisagens. “A linha de rochedos aproximando-se de Arbois, creio, e vindo de Dôle pela estrada principal, foi para mim uma imagem sensível e evidente da alma de Métilde.” A música, a pintura, a arquitetura, tudo o que amou, amou-o com uma alma de amante infeliz; quando passeia em Roma, a cada página, uma mulher aparece; nas saudades, nos desejos, nas tristezas, nas alegrias que elas suscitaram-lhe, conheceu o gosto do próprio coração; a elas é que deseja como juízes. Frequenta-lhes os sa­lões, procura mostrar-se brilhante aos seus olhos, deveu-lhes suas maiores felicidades, suas penas; foram sua principal ocupação. Prefere seu amor a toda amizade e sua amizade à dos homens; mulheres inspiram seus livros, figuras de mulheres os povoam; é em grande parte para elas que escreve. “Corro o risco de ser lido em 1900 pelas almas que amo, as Mme Roland, as Mélanie Guibert…” Foram a própria subsistência de sua vida. De onde lhe veio esse privilégio?

Esse terno amigo das mulheres, e precisamente porque as ama em sua verdade, não crê no mistério feminino; nenhuma essência define de uma vez por todas a mulher; a idéia de um “eterno feminino” parece-lhe pedante e ridículo. “Pedante re­petem há dois mil anos que as mulheres têm o espírito mais vivo e os homens, mais solidez; que as mulheres têm mais deli­cadeza nas idéias e os homens, maior capacidade de atenção. Um basbaque de Paris que passeava outrora pelos jardins de Ver­salhes concluía, do que via, que as árvores nascem podadas.” As diferenças que se observam entre os homens e as mulheres refletem as de sua situação. Por exemplo, por que não seriam as mulheres mais romanescas do que seus amantes? “Uma mulher com seu bastidor de bordar, trabalho insípido que só ocupa as mãos, pensa no amante, enquanto este galopando no campo com seu esquadrão é preso se faz um movimento em falso.” Acusam igualmente as mulheres de carecerem de bom senso. “As mulhe­res preferem as emoções à razão; é muito simples: como em vir­tude de nossos costumes vulgares elas não são encarregadas de nenhum negócio na família, a razão nunca lhes ê útil.. . Encar­regai vossa mulher de tratar de vossos interesses com os arren­datários de duas de vossas propriedades; aposto que as contas serão mais bem feitas do que por vós.” Se a História revela­-nos tão pequeno número de gênios femininos é porque a socie­dade as priva de quaisquer meios de expressão: “Todos os gênios que nascem mulheres (1) estão perdidos para a felicidade do público; desde que o acaso lhes dê os meios de se revelarem, vós as vereís desenvolver os mais difíceis talentos.” O pior handicap que devem suportar é a educação com que as embrute­cem; o opressor esforça-se sempre por diminuir os que oprime; é propositadamente que o homem recusa às mulheres quaisquer possibilidades. “Deixemos ociosas nelas as qualidades mais bri­lhantes e mais ricas de felicidade para elas mesmas e para nós.” Aos dez anos, a menina é mais fina e viva do que seu irmão; com vinte, o moleque é homem de espírito e a moça “uma grande idiota desajeitada, tímida e com medo de urna aranha”; o erro está na formação que teve. Fora necessário dar à mu­lher exatamente a mesma instrução que se dá aos rapazes. Os antifeministas objetam que as mulheres cultas e inteligentes são uns monstros: todo o mal vem do fato de que estas permanecem ainda excepcionais; se pudessem todas ter acesso à cultura tão na­turalmente como os homens, disso aproveitariam com a mesma na­turalidade. Depois de as ter mutilado, escravizam-nas a leis anti­ naturais. Casadas contra sua vontade, querem que sejam fiéis e o próprio divórcio lhes é censurado como uma má conduta. Obrigam à ociosidade bom número delas, quando não há feli­cidade fora do trabalho. Essa condição indigna Stendhal e êle vê nela a fonte de todos os defeitos que se censuram às mulheres. Elas não são nem anjos nem demônios, nem esfinges, são seres humanos que costumes imbecis reduziram a uma semi-escravidão.

É precisamente porque são umas oprimidas, que as melhores se preservam das taras que pesam sobre seus opressores; não são em si nem inferiores nem superiores ao homem; mas, por uma curiosa inversão, sua situação infeliz as favorece. Sabe-se quanto Stendhal detesta o espírito de gravidade: dinheiro, hon­rarias, prestígios, poder parecem-lhes tristes ídolos; em sua imensa maioria, os homens alienam-se em proveito deles; o pedante, o importante, o burguês, o marido abafam em si todo impulso de vida e de verdade; armados de preconceitos, de sentimentos con­vencionais, obedientes às rotinas sociais, habita-os o vazio; um mundo povoado dessas criaturas sem alma é um deserto de tédio. Há, infelizmente, muitas mulheres que vivem atoladas nesses me­lancólicos pantanais; são bonecas de “idéias estreitas e parisien­ses” ou devotas hipócritas; Stendhal sente uma “repugnância mortal pelas mulheres honestas e a hipocrisia que lhes é indispensável”; elas emprestam a suas ocupações frívolas a mesma gravi­dade que seus maridos, mostram-se estúpidas por educação, inve­josas, vaidosas, palradoras, más por ociosidade, frias, secas, pre­tenciosas, maléficas, povoam Paris e a província; vemo-las formigar por trás das nobres figuras de uma Mme de Rênal, de uma Mme de Chasteller. A que Stendhal pintou com mais atento ódio é, sem dúvida, Mme Grandet de que fêz o negativo exato de uma Mme Roland, de uma Métilde. Bela mas sem expressão, desdenhosa e sem encanto, ela intimida por sua “virtude célebre”, mas não conhece o verdadeiro pudor que vem da alma; cheia de admiração por si mesma, imbuída de seu papel, só sabe copiar, de fora, a grandeza; no fundo é vulgar e vil; “não tem caráter. . . aborrece-me”, pensa Leuwen. “Perfeitamente sensata, preocupada com o êxito de seus projetos”, toda sua ambição é fazer do marido um ministro; “seu espírito era árido”; prudente, conformista, sempre evitou o amor; é incapaz de um impulso generoso; quando a paixão se introduz nessa alma seca, queima-a sem a iluminar.

Basta inverter essa imagem para descobrir o que Stendhal pede às mulheres; primeiramente, não se deixarem cair nas arma­dilhas da gravidade; pelo fato de as coisas pretensamente impor­tantes encontrarem-se fora de seu alcance, correm, menos do que os homens, o risco de se alienarem a elas; têm maiores possibili­dades de preservar essa naturalidade, essa ingenuidade, essa gene­rosidade que Stendhal coloca mais alto do que qualquer outro mérito; o que êle aprecia nelas é isso que chamaríamos hoje autenticidade: é o traço comum a todas as mulheres que êle amou ou inventou com amor. São todas seres livres e verdadeiros. Sua liberdade exibe-se em algumas de uma maneira brilhante: Ângela Pietragrua, “puta sublime, à italiana, à Lucrécia Bórgia” ou Mme Azur, “‘puta à Du Barry. . . uma dessas francesas menos bonecas que encontrei” revolucionam abertamente os costumes. Lamiel ri-se das convenções, dos costumes, das leis; a Sanse­verina atira-se com ardor à intriga e não recua diante do crime. É pelo vigor de seu espírito que outras se erguem acima do vul­gar. Assim é Menta, assim é Mathilde de la Mole que criti­ca, difama, despreza a sociedade que a cerca e quer distinguir-se dela. Em outras ainda, a liberdade assume formas negativas; o que há de notável em Mme de Chasteller é seu desapego por tudo o que é secundário; obediente às vontades do pai e mes­mo a suas opiniões, nem por isso deixa de contestar os valores burgueses com a indiferença que lhe censuram como puerilidade e é a fonte de sua alegria despreocupada; Clélia Conti distingue-se também por sua reserva; o baile, os divertimentos habituias das moças são-lhe indiferentes; ela parece sempre distante “ou por desprezo do que a cerca ou por saudade de alguma quimera ausente”; julga o mundo e indigna-se com tanta baixeza. É em Mme de Renal que a independência da alma se acha mais profundamente escondida; ignora, ela própria, que se resigna mal a seu destino; sua extrema delicadeza e aguda sensibilidade é que manifestam sua repugnância pela vulgaridade de seu meio; não tem hipocrisia; conservou um coração generoso, capaz de emoções violentas e aprecia a felicidade; do fogo que mina dentro dela mal se sente o calor de fora, mas bastará um sopro para que ela se incendeie inteiramente. Essas mulheres são vivas, muito sim­plesmente; sabem que a fonte dos valores verdadeiros não está nas coisas exteriores e sim nos corações; é o que faz o encanto do mundo em que habitam; rechaçam-lhe o tédio pelo simples fato de que nele estão presentes com seus sonhos, desejos, pra­zeres, emoções e invenções. A Sanseverina, essa “alma ativa”, teme o tédio mais do que a morte. Estagnar no tédio “é impe­dir-se de morrer, diz, não é viver”; ela está “sempre apaixona­da por alguma coisa, sempre agindo, alegre também”. Incons­cientes, pueris ou profundas, alegres ou graves, ousadas ou se­cretas, todas recusam o pesado sono em que a humanidade se atola. E essas mulheres que souberam preservar por nada sua liberdade, logo que encontrarem um objeto digno delas, elevar­-se-ão pela paixão até o heroísmo; sua força de alma e energia traduzem a pureza selvagem de uma participação total.

Mas somente a liberdade não bastaria para dotá-las de tan­tos atrativos romanescos: uma simples liberdade reconhece-se na estima mas não na emoção; o que comove é seu esforço por se realizar através dos obstáculos que a freiam, e esse esforço é nas mulheres tanto mais patético quanto mais difícil a luta. A vitó­ria conquistada contra as coerções exteriores já basta para encan­tar Stendhal; em Chroniques italiennes, êle encerra suas heroínas no fundo dos conventos, ou no palácio de um esposo ciumento: cumpre-lhes inventar mil ardis para se juntarem a seus amantes; portas escondidas, escadas de corda, arcas sangrentas, raptos, se­qüestras, assassínios, os ímpetos da paixão e da desobediência são servidos por uma engenhosidade em que se empregam todos os recursos do espírito; a morte, as torturas ameaçadoras dão mais brilho ainda às audácias das almas arrebatadas que nos pinta. Mesmo nas obras mais maduras, Stendhal permanece sensível a esse romanesco aparente: é a figura manifesta do romanesco que nasce do coração; não se pode distingui-los um do outro, como não se pode separar uma boca de seu sorriso. Clélia reinventa o amor inventando o alfabeto que lhe permite corresponder-se com Fabrice; a Sanseverina é-nos descrita como “uma alma sempre sincera que nunca agiu com prudência, que se entrega inteiramente à impressão do momento”; é quando intriga, quando envenena o príncipe e que inunda Parma que essa alma se des­cobre a nós: não é outra coisa senão a aventura sublime e louca que quis viver. A escada que Mathilde de la Mole apóia à janela nada tem de um acessório de teatro: é, numa forma tan­gível, sua imprudência orgulhosa, seu pendor pelo extraordinário, sua coragem provocante. As qualidades dessas almas não se descobririam se elas não estivessem cercadas de inimigos: os muros da prisão, a vontade de um soberano, a severidade de uma família.

Entretanto, os obstáculos mais difíceis de transpor são os que cada um encontra em si mesmo: é então que a aventura da liberdade se faz mais incerta, mais pungente, mais excitante, É evidente que a simpatia de Stendhal por suas heroínas é tanto maior quanto mais estreitamente presas se encontram. Sem dú­vida, êle aprecia as prostitutas, sublimes ou não, que uma vez por todas espezinharam as convenções; mas êle ama mais terna­mente Métilde freada por seus escrúpulos e seu pudor. Lucien Leuwen compraz-se ao lado dessa mulher liberta que é Mme de Hocquincourt: mas é a Mme Chasteller, casta, reservada, hesi­tante que êle ama com paixão; êle admira a alma altiva da San­severina que não recua diante de nada, mas prefere Clélia e é a moça que conquista o coração de Fabrice. E Mme de Renal, atada por sua altivez, seus preconceitos, sua ignorância, é talvez de todas as mulheres criadas por Stendhal a que mais o espanta. Êle situa de bom grado suas heroínas na província, em um meio estreito, sob o guante de um marido ou um pai imbecil; agrada-lhe que sejam incultas e até imbuídas de idéias falsas. Mme de Renal e Mme de Casteller são ambas obstinadamente legitimistas; a primeira é de espírito tímido e sem nenhuma expe­riência, a segunda de inteligência brilhante, mas cujo valor des­conhece; não são elas, portanto, responsáveis por seus erros mas, antes, vítimas deles tanto quanto das instituições e dos costu­mes; e é do erro que jorra o romanesco, como a poesia nasce do malogro. Um espírito lúcido que decide de seus atos com pleno conhecimento de causa, nós o aprovamos ou censuramos secamente; ao passo que é com temor, piedade, ironia, amor que admiramos a coragem e os ardis de um coração generoso pro­curando seu caminho nas trevas. É porque elas são mistifica­das, que vemos florescerem nas mulheres virtudes inúteis e encan­tadoras tais como o pudor, o orgulho, a delicadeza exagerada; em certo sentido são defeitos; engendram mentiras, suscetibilidades, cóleras, mas explicam-se facilmente pela situação em que são co­locadas as mulheres; estas são levadas a pôr seu orgulho nas pe­quenas coisas, ou, pelo menos, “nas coisas que só têm impor­tância pelo sentimento”, porque todos os objetos “ditos importan­tes” acham-se fora de seu alcance; seu pudor resulta da depen­dência em que se acham: porque lhes é proibido dar o que podem em seus atos, é seu próprio ser que elas põem em jogo; parece­-Ihes que a consciência de outrem e em particular a de seus amantes as revelam em sua verdade; têm medo disso e tentam escapar-lhes, e, em sua fuga, suas hesitações, suas revoltas, e até em suas mentiras, exprime-se uma autêntica preocupação do valor; e é o que as torna respeitáveis. Mas esse sentimento exprime-se com embaraço, e mesmo com má-fé, e é o que as torna comoventes e até discretamente cômicas. É quando a li­berdade cai em suas próprias armadilhas e trapaceia com ela mesma que é mais profundamente humana e portanto, aos olhos de Stendhal, mais atraente. As mulheres de Stendhal são paté­ticas quando seu coração lhes propõe problemas inesperados: nenhuma lei, nenhuma receita, nenhum raciocínio, nenhum exem­plo vindo de fora pode guiá-las; cumpre que decidam sozinhas: esse abandono é o momento extremo da liberdade. Clélia é edu­cada com idéias liberais, é lúcida e sensata: mas opiniões apren­didas, justas ou não, não são de nenhum auxílio num confíito moral; Mme de Renal ama Julien a despeito de sua moral, Clé­lia salva Fabrice contra sua razão. Há, nos dois casos, a mesma superação de todos os valores admitidos. É essa ousadia que exalta Stendhal; mas ela é tanto mais comovente quanto mal ousa confessar-se. Torna-se ainda mais natural, mais autêntica, mais espontânea. Em Mme de Renal, a ousadia esconde-se atrás da inocência: por não conhecer o amor, ela não sabe reconhe­cê-lo e cede sem resistência: dir-se-ia que por ter vivido nas tre­vas, não tem defesa diante da fulgurante luz da paixão; acolhe-a deslumbrada até contra Deus, contra o inferno. Quando essa fo­gueira se apaga, ela recai nas trevas que os maridos e os pa­dres governam; não tem confiança em seus próprios juízos, mas a evidência a fulmina; logo que encontra Julien entrega-lhe de novo a alma. Seus remorsos, a carta que o confessor lhe arran­ca, permitem medir que distância essa alma ardente e sincera tinha de vencer para se arrancar à prisão em que a encerrava a sociedade e ascender ao céu da felicidade. O conflito é mais cons­ciente em Clélia: ela hesita entre sua lealdade para com o pai e sua piedade amorosa; ela procura razões para si mesma; o triunfo dos valores em que Stendhal acredita parecer-lhe tanto mais evi­dente quanto é sentido como uma derrota pelas vítimas de uma civilização hipócrita; e ele se encanta vendo-as empregarem a malícia e a má-fé para fazer prevalecer a verdade da paixão e da felicidade contra as mentiras em que elas crêem: Clélia prome­tendo à Madona não mais ver Fabrice e aceitando durante dois anos seus beijos, seus amplexos, à condição de manter os olhos fechados, é a um tempo ridículo e perturbador. É com a mes­ma ironia que Stendhal considera as hesitações de Mme de Chas­teller e as incoerências de Mathilde de la Mole; tantas idas e voltas, tantos meandros e escrúpulos, tantas vitórias e derrotas secretas para alcançar fins simples e legítimos, constitui para ele a mais adorável das comédias; há comicidade nesses dramas porque a atriz é a um tempo juiz e parte, porque ela é sua pró­pria vítima, porque ela se impõe caminhos complicados, quando bastaria um decreto para que o nó górdio fosse cortado; entre­tanto eles evidenciam a mais respeitável preocupação que possa torturar uma alma nobre: ela quer permanecer digna de sua pró­pria estima; ela coloca seu próprio sufrágio mais alto que o dos outros e com isso se realiza como um absoluto. Esses debates solitários, sem eco, têm mais gravidade do que uma crise mi­nisterial; quando ela se pergunta se vai ou não corresponder ao amor de Lucien Leuwen, Mme de Chasteller julga a si mesma e ao mundo: Pode-se ter confiança em outrem? Pode-se confiar no próprio coração? Qual o valor do amor e dos juramentos humanos? Ê loucura ou generosidade acreditar e amar? Essas interrogações põem em dúvida o próprio sentido da vida, a vida de cada um e de todos. O homem dito sério é na realidade fútil porque aceita justificações convencionais para sua vida; ao passo que uma mulher apaixonada e profunda revisa a cada instante os valores estabelecidos; conhece a constante tensão de uma liber­dade sem apoio. Com isso, sente-se sem cessar em perigo: em um momento pode tudo ganhar ou tudo perder. É esse risco assumido na inquietação que dá à sua história as cores de uma aventura heróica. E a aposta é a maior que pode existir: o próprio sentido dessa existência, que é a parte de cada um, sua única parte. A aventura de Mina de Vanghel pode em certo sentido parecer absurda; mas ela empenha toda uma ética. “Foi sua vida um erro de cálculo? Sua felicidade durara oito me­ses. Era uma alma demasiado ardente para se contentar com o real da vida.” Mathilde de la Mole é menos sincera do que Clélia ou Mme de Chasteller; ela regula seus atos mais pela idéia que faz de si mesma do que pela evidência do amor, da fe­licidade; haverá mais orgulho, mais grandeza em se defender de que em se entregar, em se humilhar do que em resistir a quem se ama? Ela acha-se só no meio dessas dúvidas e arrisca essa esti­ma de si mesma de que mais faz questão na vida. É a ardente procura das verdadeiras razões de viver através das trevas da ignorância, dos preconceitos, das mistificações, na luz vacilante e febril da paixão, é o risco infinito da felicidade ou da morte, da grandeza ou da vergonha que confere a esses destinos de mu­lher sua glória romanesca.

A mulher, bem entendido, ignora a sedução que tem; con­templar-se a si mesma, desempenhar um papel é sempre uma ati­tude inautêntica; Mme Grandet comparando-se a Mme Roland prova com isso mesmo que não se assemelha a ela. Se Mathilde de la Mole permanece atraente é porque se embrulha em suas comédias e é vítima, amiúde, de seu coração, nos momentos em que se acredita governá-lo; ela nos comove na medida em que escapa à própria vontade. Mas as heroínas mais puras não têm consciência de si mesmas. Mme de Renal ignora sua graça, como Mme de Chasteller sua inteligência. Nisso reside uma das ale­grias profundas do amante com quem o autor e o leitor se identificam: êle é a testemunha através da qual essas riquezas secretas são reveladas; essa vivacidade que Mme de Renal exibe longe dos olhares dos outros, esse espírito “vivo, versátil, pro­fundo”, que desconhece o ambiente de Mme de Chasteller e que êle é o único a admirar. E ainda que outros apreciem o espí­rito de Sanseverina, é êle quem penetra mais fundo na alma dela. Diante da mulher, o homem saboreia o prazer da con­templação; embriaga-se dela como de uma paisagem ou de um quadro; ela canta em seu coração e matiza o céu. Essa reve­lação revela-o a si mesmo: não se pode compreender a delicade­za das mulheres, sua sensibilidade, seu ardor sem se construir uma alma delicada, sensível, ardente; os sentimentos femininos criam um mundo de matizes, de exigências, cuja descoberta enri­quece o amante. Perto de Mme de Renal, Julien torna-se dife­rente do ambicioso que resolve ser, faz-se de novo. Se o ho­mem tem pela mulher apenas um desejo superficial, achará di­vertido seduzi-la. Mas é o verdadeiro amor que transfigura a vida: “O amor de Werther abre a alma. . . ao sentimento e ao gozo do belo sob qualquer forma que se apresente, ainda que sob um hábito de burel. Faz que se encontre a felicidade até sem riquezas…” “É um novo objetivo na vida a que tudo se prende e que muda a face de tudo. O amor-paixão joga aos olhos de um homem toda a natureza com seus aspectos sublimes como uma novidade inventada ontem.” O amor quebra a ro­tina quotidiana, afasta o tédio, esse tédio em que Stendhal vê um mal tão profundo porque é a ausência de todas as razões de viver ou morrer; o amante tem um fim e isso basta para que cada dia se torne uma aventura. Que prazer para Stendhal passar três dias escondido na adega de Menta! As escadas de corda, as arcas sangrentas traduzem esse gosto pelo extraordinário em seus romances. O amor, isto é, a mulher, revela os verda­deiros fins da existência: o belo, a felicidade, o frescor das sen­sações e do mundo. Arranca a alma ao homem e dá-lhe assim a posse dela: o amante conhece a mesma tensão, os mesmos ris­cos que sua amante e experimenta-se mais autenticamente do que no curso de toda uma carreira calculada. Quando hesita ao pé da escada erguida por Mathilde, Julien põe em jogo todo seu destino: é nesse instante que revela sua verdadeira medida. É através das mulheres, sob sua influência, reagindo às condutas delas que Julien, Fabrice, Lucien fazem o aprendizado do mun­do e de si mesmos. Provação, recompensa, juiz, amiga, a mu­lher é realmente em Stendhal o que Hegel em dado momento se viu tentado a considerá-la: essa consciência outra que, no re­conhecimento recíproco, dá ao sujeito outro a mesma verdade que recebe dele. O casal feliz que se reconhece no amor desafia o universo e o tempo; basta-se, realiza o absoluto.

Mas isso pressupõe que a mulher não é simples alteridade; é, ela própria, sujeito. Nunca Stendhal se restringe a descrever suas heroínas em função de seus heróis: dá-lhes um destino próprio. Tentou uma empresa mais rara e que nenhum roman­cista, creio, jamais se propôs: projetou-se êle próprio numa per­sonagem feminina. Não se debruça sobre Lamiel como Mari­vaux sobre Marianne, ou Richardson sobre Clarisse Harlow: desposa-lhe o destino como desposara o destino de Julien. Por causa disso mesmo, a figura de Lamiel permanece um pouco teórica, mas é singularmente significativa. Stendhal ergueu em torno da moça todos os obstáculos imagináveis: ela é pobre, cam­ponesa, grosseiramente educada por pessoas imbuídas de todos os preconceitos; mas ela afasta de seu caminho todas as barreiras morais a partir do dia em que compreende o alcance destas sim­ples palavras: “é tolo”. A liberdade de seu espírito permite­-lhe reconsiderar todos os movimentos de sua curiosidade, de sua ambição, de sua alegria; diante de um coração tão reso­luto, os obstáculos materiais não podem deixar de se renovar; seu único problema será conquistar, em um mundo medíocre, um destino feito sob medida. Ela devia realizar-se no crime e na morte; mas é também a sorte que aguarda Julien. Não há lu­gar para as grandes almas na sociedade tal qual é: homens e mulheres acham-se em pé de igualdade.

E notável que Stendhal seja a um tempo tão profundamente romanesco e tão decididamente feminista; habitualmente, os fe­ministas são espíritos racionais que adotam, em todas as coisas,  GetResourceo ponto de vista do universal; mas é não somente em nome da liberdade em geral como também em nome da felicidade indivi­dual que Stendhal reclama a emancipação das mulheres. O amor nada terá a perder com isso, pensa êle; ao contrário, será tanto mais verdadeiro quanto, sendo a mulher um igual para o ho­mem, poderá entendê-lo mais completamente. Sem dúvida, algu­mas das qualidades que apreciamos na mulher desaparecerão, mas seu valor provém da liberdade que nelas se exprime e essa liberdade manifestar-se-á de outras maneiras e o romanesco não se dissipará do mundo. Dois seres separados, colocados em si­tuações diferentes, defrontando-se em sua liberdade e procurando a justificação da existência, um através do outro, viverão sempre uma aventura cheia de riscos e de promessas. Stendhal confia na verdade; desde que se fuja dela, morre-se vivo; mas onde ela brilha, brilham a beleza, a felicidade, o amor, uma alegria que traz em si sua justificação. Eis por que, tanto quanto as mistificações da gravidade, êle recusa a falsa poesia dos mitos. A realidade humana basta-lhe. A mulher a seus olhos é sim­plesmente um ser humano: os sonhos nada poderiam forjar de mais embriagante.

Esse texto é parte do clássico da autora “O Segundo Sexo” (1949). Como no Brasil o livro costuma ser publicado em dois volumes, foi extraído do Volume 1- Fatos e Mitos, traduzido por Sergio Millet para a Editora Difusora Europeia do Livro. Disponível para download no link http://www.fe.unb.br/gde/images/livros/o_segundo_sexo1.pdf , O Volume  2- A Experiencia Vivida pode ser encontrado aqui http://brasil.indymedia.org/media/2008/01//409680.pdf . O Vermelho e o Negro de Stendhal pode ser encontrado aqui http://lelivros.pink/book/baixar-livro-o-vermelho-e-o-negro-stendhal-em-pdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/ {A famosa citação, que “caiu” no ENEM de 2015 está logo no inicio do 2 volume, abrindo o capitulo “A infância” .

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