A Constituição como Projeto Político – Florestan Fernades

As constituições que caracterizam a evolução dos povos modernos sempre contêm um projeto político. Este projeto, por sua vez, traduz ideológica e socialmente como as classes dominantes pretendem organizar a sociedade civil e o Estado. Toda sociedade estratificada possui certas possibilidades de organizar a sociedade civil e o Estado. Tais possibilidades não são um efeito do acaso, mas de determinações do modo de produção econômica. dos interesses e da situação de classe dos estratos sociais que se apropriam do poder real, dominam as outras classes e estratificam a sociedade civil como condição histórica para reproduzir a ordem social existente. A revolução inglesa e a revolução francesa são exemplos experimentais dessa constatação. O mesmo se pode dizer da revolução norte-americana e da revolução japonesa ou da revolução prussiana, a partir de Bismarck, embora essas revoluções apresentem configurações muito distintas, quando comparadas àquelas duas revoluções “clássicas”.

A Alemanha era um país periférico, dependente e subdesenvolvido; os Estados Unidos tinham um passado colonial e corriam o risco de realizar uma independência engolfada na dominação econômica externa, através do mercado, e, portanto, de ver sua soberania política corroída e o forte impulso de seu “destino manifesto” anulado; o Japão resistiu decididamente ao drama do colonialismo, contornando-o e resguardando-se como uma nação independente, por meio de uma revolução econômica sob controle social e político interno. O Brasil caminhou em outra direção, como sucedeu em toda a América Latina. Aceitou a dominação indireta como uma vantagem histórica, privilegiando a preservação das estruturas coloniais de produção e estratificação social. A Magna Carta não se vinculou ao liberalismo anti-colonialista, mas ao absolutismo da coroa e a um modelo de sociedade civil que restringia a monarquia constitucional à vontade política dos senhores de escravos. Essa é a raiz de nossa tradição constitucional. Impregnada de modernismo importado e de formalismo jurídico avançado, porém um biombo para excluir os homens pobres livres da sociedade civil e para dar continuidade à existência e à sobrevivência da escravidão, com as novas perspectivas que se abriam a uma economia satelizada e exportadora.

Aí está a raiz remota, mas que ressurge como uma hidra de sete cabeças no agravamento sempre renovado da “tragédia brasileira”. Não existe uma consciência constitucionalista, porque não existe uma sociedade civil que associe o modo de produção capitalista à necessidade histórica das várias revoluções burguesas (como a revolução nacional, a transformação estrutural capitalista no campo, e revolução urbana e a revolução democrática). A nossa modernização política se reduziu à importação de uma tecnologia estatal de dominação de classe. A modernização se impunha: de fora, para encadear a produção econômica interna ao mercado mundial; de dentro, para que as classes dominantes pudessem dispor de instrumentos eficazes de defesa da ordem e pudessem associar-se aos estratos mais poderosos da burguesia internacional contando com freios para limitar o constante desgaste que eles exerciam sobre a soberania do Estado. A democracia converteu-se em um jogo entre os mais iguais, um sistema de poder deformado; e o constitucionalismo era em si mesmo uma farsa política, que sequer encobria ideologicamente as cruas realidades que faziam do Estado um feitor de escravos e um castrador da Nação, como se o vinco colonial permanecesse perpetuamente vivo nessa esfera.

A constituição da República velha manteve-se nesse limite. A crise do modo de produção escravista era muito recente para associar a revolução da sociedade civil e do Estado na elaboração da Carta Magna. Mera cópia de progressos de outros países, ela não correspondia às transformações internas, realizadas ou em processo. Por sua vez, a constituição de 1934 vem rente a contradições que dividiam as classes dominantes, suas elites e as relações delas com a Nação. Por isso, ela registra um salto histórico, que não se concretizou porque as classes dominantes e suas elites preferiram defender-se fora e acima do circuito das revoluções burguesas, recorrendo a uma ditadura que recompôs a estabilidade política dentro da ordem. Prevalece, então, uma política de fundar a paz social em concessões entendidas como antecipadas e suficientemente elásticas para anular as pressões sociais dos de baixo, especialmente das classes trabalhadoras, da pequena burguesia e de uma classe média inquieta com os abalos que sofria sob as novas tendências de desenvolvimento capitalista e de alterações do regime de classes sociais. O Estado Novo monta à perfeição a arquitetura de um modelo eficiente de “paz burguesa” e, ao mesmo tempo, articula os interesses divergentes dos vários setores da burguesia. A oligarquia, que os historiadores enterram prematuramente com a República velha, é reciclada. A plutocracia emergente, lastreada no capital estrangeiro, no industrialismo, nos dinamismos em crescimento moderado do mercado interno, nos desdobramentos financeiros de todas essas vergônteas do capital, ganha um espaço político unificado e um ponto de partida para enfrentar as conseqüências de uma revolução política que ela se recusou a levar avante, das constrições e cicatrizes do regime ditatorial e da transição para uma nova era, dita “democrática”.

Chegamos, assim, ao que muitos entendem como os “efeitos do término da guerra” e da “derrota do fascismo”. Um palavreado oco. O Brasil se alterara durante a guerra e a principal transformação aparece nos ritmos da industrialização, do desenvolvimento das cidades, do crescimento do mercado interno, da nova associação entre a cidade e o campo sob a primazia da primeira, das migrações internas e, especialmente, das modificações estruturais do regime de classes. A pressão de baixo para cima tornara-se demasiado forte para o esquema de paz burguesa, montado pelo Estado Novo. O referido esquema de paz social nunca deixou de operar contra os oprimidos, as reivindicações do movimento operário e sindical, a eclosão democrática visada pelo polo proletário da luta de classes, até hoje. Graças à ditadura, a representação sofrera um golpe sério, principalmente nas cidades mais urbanizadas e industrializadas; e o sistema de poder burguês perdera o monolitismo anterior, o que levou ao Parlamento uma nova safra de políticos, burgueses ou vinculados ao proletariado.

Pela primeira vez em nossa história, as classes dominantes são forçadas a travar a luta de classes dentro do Parlamento. Todavia, usam a tática de ceder terreno no plano formal e ideológico, mantendo firmes as rédeas da dominação de classes (no que se viam ajudadas pela herança institucional, legal e política do Estado Novo, mantida intacta nos pontos essenciais).

A maioria conservadora favorecia esse procedimento, que colocava as aparências em distâncias inatingíveis da realidade. A constituição de 1946 exibe uma modernização espantosa, como se as classes dominantes houvessem absorvido as transformações que o desenvolvimento capitalista propagaram ao regime de classes e ao padrão capitalista nascente da luta de classes. No entanto, as modificações se patentearam ao nível de profundidade real, com a implementação da ilegalidade do Partido Comunista, a revitalização das técnicas estadonovistas de manipulação dos sindicatos e das frustrações operárias, o recurso ao populismo como “ópio político do Povo”.

A constituição inaugura uma fase inédita de ritualização das atividades do Parlamento, dos partidos e das eleições. Uma democracia de fachada mantém-se à tona, sem fazer face às exigências da situação histórica. As classes dominantes e suas elites se viam postas na parede. A internacionalização da economia se iniciara e tomara rumos que indicavam como se daria e quais seriam as conseqüências da incorporação do Brasil às economias capitalistas centrais e da internalização crescente do modelo monopolista de desenvolvimento capitalista. O fim da década de 1950 e o início da década de 1960 denunciavam que através dos meios tradicionais (do mandonismo, do paternalismo e do clientelismo) só se poderia compor uma maioria parlamentar conservadora, sem deter as eclosões sociais que atingiam gravidade extrema. Dentro de aparências democráticas e do ritualismo eleitoral seria impraticável manter a estabilidade política e o controle burguês da sociedade civil e do Estado. As crises explodem no âmbito do Governo, porque as classes dominantes não conseguiam enfrentá-las e resolvê-las no seio da sociedade civil nem transferi-las e solucioná-las na esfera do Parlamento. A Nação exigia mudanças estruturais. As classes dominantes e suas elites responderam com a conspiração civil-militar, o golpe de Estado e a contra-revolução. Nesse sentido, a constituição de 1946 não gerou a democracia, pariu a ditadura militar.

O período da ditadura militar coincide com a maturação do modelo monopolista de desenvolvimento capitalista no Brasil. A internacionalização do modo de produção, do mercado interno, de um novo padrão de associação que possui um forte componente de dominação externa direta (o imperialismo deixa de operar seletivamente, através do mercado mundial, implantando-se dentro do País, como o antigo sistema colonial), a industrialização maciça, o aparecimento de sindicalismo cujas raízes brotavam das fábricas (por causa da repressão empresarial e estatal) e a aceleração da luta de classes forjam uma nova moldura histórica Apesar de divergências setoriais, todas as classes burguesas (inclusive o setor hegemônico externo) põem em primeiro plano a estabilidade política e a repressão policial-militar da luta de classes. Não há clima para o populismo — nem mesmo um populismo militar ultranacionalista de direita. Nessas condições, ocorrem duas oscilações dentro da sociedade civil, no que refere à existência do Parlamento, dos partidos, das eleições e dos marcos constitucionais.

A primeira oscilação vem de cima, controlada direta e ferreamente pela composição de poder civil-militar. Como o fermento das lutas sociais corria no subterrâneo da sociedade, essa oscilação valoriza o embuste constitucional. Surge, assim, a primeira manifestação de “revisão constitucional”, que culmina na constituição de 1967 e nos seus complementos, que tomam o nome de “constituição de 1969” e de atos institucionais e de casuísmos, os quais formam uma ordem ilegal indiscutível. Essa ordem ilegal sustentava-se na força das armas e da violência concentrada no tope do Governo ou difusa no aparelho policial-militar de todo o País. Falou-se que ela fora legitimada pelo “milagre econômico”. Todavia, nenhum milagre poderia legitimar uma ordem ilegal. Nascida da violência, ela teria de ser destruída pela contraviolência. As classes dominantes e suas elites perceberam aonde se metiam e tentaram amainar a contraviolência, através de concessões que provocaram uma “democratização de cima para baixo”, batizada de “consentida”. Contudo, souberam preservar a ordem ilegal e interromper, por vários artifícios, as “eclosões sociais”. As classes trabalhadoras e os sindicatos foram os principais peões dessas concessões, porque provocaram medo entre os de cima. Mas não se deve subestimar o papel que tiveram diversas entidades e organizações que combatiam abertamente a ditadura e recorriam à desobediência civil como instrumento de desmoralização da ditadura e de sua desagregação. Além disso, a ditadura pagou um preço alto à hipocrisia. Para contar com uma fachada democrática, admitira a oposição consentida. O MDB (e o PMDB em seguida) se desprenderam da liberdade relativa vigiada e pôs em prática, in crescendo, a oposição real.

A segunda oscilação possui um referencial mais complexo. Na medida em que a República institucional (ou a ditadura), perdia eficácia repressiva e capacidade de aparentar uma legitimidade que não possuía, ela se tornou cara e obsoleta. Compelia os sócios hegemônicos, as nações capitalistas centrais e as “multinacionais”, e as classes dominantes nacionais e suas elites a se exporem em cheio ao ódio que fermentava nos porões da sociedade. O Brasil assumia o caráter de um barril de pólvora, prestes a explodir e a destroçar todos os culpados, diretos e indiretos, pelos desmandos e crises gerados pela ditadura. Vários setores sociais procuravam, pois, uma alternativa: ou uma retirada estratégica dos militares, que os desmoralizaria e os faria passar à história como bodes expiatórios (quando, de fato, eles foram a mão do gato…); ou um movimento que os afastaria do poder por via pacífica, mediante eleições diretas. O PT encetou o segundo ponto de partida, rapidamente endossado pelas entidades e organizações que se batiam pela desobediência civil e pelo PMDB, engrossado pelos liberais que navegavam nos barcos e nas águas da ditadura. Em conseqüência dessa evolução, a oscilação ganhou força e logo demonstrou que seria imbatível. Nesse contexto, o movimento das diretas-já, que poderia propiciar uma saída límpida e radical, submergiu numa composição conservadora, que decidiu a partir de cima atravessar o Rubicão através do Colégio Eleitoral. Aliaram-se os chefes militares “civilizados”, o PMDB através de suas cúpulas dirigentes e os “democratas” recém-saídos do ventre do regime em decomposição. Isso significa que a oscilação foi detida por uma nova conspiração, que se crismou como um ato de conciliação política. Ela também endossou a fórmula político-militar de uma transição democrática lenta, gradual e segura! A ordem ilegal atravessou a crise letal, que se esboçara, e protegeu o nascimento da “nova República”. Convertido em partido da ordem, o PMDB deu guarida à Aliança Democrática, pela qual os chefes militares e os notáveis da ditadura iriam cobrar, em conúbio com a maioria conservadora da cúpula do PMDB e do Parlamento, a continuidade da ordem ilegal forjada pela República institucional.

É aqui que se acha o cerne dos dilemas constitucionais do Brasil de hoje. Cortada no ápice do seu fluxo, a oscilação histórica apontada comporta duas visões opostas do que deve ser a constituição em processo de elaboração. Os que defendem o “compromisso sagrado de Tancredo Neves”, malgrado sua vocação democrática, afundam no pântano conservador. Para eles, não existe uma ordem ilegal, mas um “entulho autoritário”. Ele poderia ser removido como uma leve dor de cabeça, com uma vassourada. De fato, trata-se de uma colossal mistificação, pela qual a ordem ilegal não é expelida da cena histórica e condiciona, ao contrário, o processo de reconstrução da sociedade civil e do Estado. Os juristas que defendem essa posição abominam a idéia de uma Assembléia Nacional Constituinte exclusiva e soberana e se fixam na consolidação da nova República como e enquanto rebento da ditadura militar, descrita eufemisticamente como “velha” República! O Congresso Constituinte reduz-se a um “poder derivado” e, se extravasar desse limite, estaria condenado à instância judiciária, que poderia anular suas decisões — e, o que não se diz, ao quarto poder da República, o poder militar, a instância suprema, que poderia eliminá-lo do mapa… O que se reitera é um afã ultraconservador e ultrareacionário (que conta com o apoio da maioria parlamentar e com a tolerância das direções dos principais partidos da ordem — o PMDB e PFL à frente), de conceber a elaboração da constituição como uma revisão constitucional. Nessa revisão constitucional, a ordem ilegal vigente seria reinstaurada “legitimamente”, como um sonho “liberal” dos antigos e novos donos do poder. Para isso foi concebido o Congresso Constituinte!…

A outra visão do que deve ser a constituição é sustentada pelos que, já no passado, queriam remover a constituição de 1946 da condição da letra morta, e pelos que tentaram levar o movimento das diretas-já até o fim e até ao fundo. São vários grupos e tendências de opinião, que compartilham da idéia de que o desenvolvimento capitalista e do regime de classes sociais desembocou em um beco sem saída que só pode ser ultrapassado se os oprimidos e os trabalhadores adquirirem peso e voz na sociedade civil e a faculdade de exercerem controle ativo sobre o funcionamento do Estado. Portando, a sociedade civil e o Estado são vistos em seu conjunto, como uma totalidade em movimento histórico e a constituição é concebida como um conjunto de normas que aponta para o vir a ser, uma sociedade civil civilizada e um Estado capitalista democrático. Sem qualquer utopia burguesa salvadora, aceitando-se fria e objetivamente as cruezas e as iniqüidades extremas do desenvolvimento capitalista desigual, pretende-se que a força e a desigualdade não conferem privilégios inabaláveis para uma minoria e miséria crescente para a maioria. A emancipação dos oprimidos e das classes trabalhadoras precisa começar dentro da sociedade civil e do Estado existentes, através de uma luta global que tome por objeto encetar uma revolução política dentro da ordem. O que se coloca em questão não é o ponto de chegada; é o ponto de partida. Nas condições brasileiras, esse ponto de partida envolve uma ruptura com a ordem existente no plano mais sensível e popular do sistema do poder, o Parlamento considerado como poder constituinte. Como poder emanado do Povo, neste momento, a Assembléia Nacional Constituinte derroga a ordem ilegal vigente e a ilegitimidade da nova República, e afirma a própria faculdade de instituir normas constitucionais civilizadas para o funcionamento da sociedade civil e normas constitucionais democráticas para a organização do Estado. O presente e o futuro pertencem à Nação, não à minoria no poder. A ruptura com o atual Estado de coisas representa a conquista de novas vias de evolução histórica e, sob pressão popular, a elaboração de uma constituição que defina os requisitos mínimos da extinção simultânea do subcapitalismo e do capitalismo perverso ou selvagem.

Esse é o dilema que a ANC enfrenta. Se a conciliação conservadora tivesse algum sentido e se a “herança de Tancredo Neves” alguma validade, a Aliança Democrática deveria ser fiel ao compromisso que ela assumiu ao instalar o PMDB e o PFL na dupla condição de partidos da ordem e do Governo. Não obstante, o que foi formulado como uma carta de princípios era um discurso de ocasião e os dois partidos estão divididos entre si — e o PMDB está dividido internamente — com referência aos papéis políticos dos constituintes e ao significado da ANC. Isso acontece porque ambos os partidos não formam um bloco histórico solidamente burguês. As classes burguesas não delegaram aos dois partidos a condição de representá-las, no exercício do poder político estatal. Cada partido, por conseguinte, reúne um conglomerado de interesses burgueses variáveis e, ao mesmo tempo, não possui autonomia para conduzir as reivindicações das classes burguesas e de suas elites. Nenhum deles pode romper com a situação de partidos da ordem e do Governo, porque os vínculos com as classes burguesas não alimentam semelhante demonstração de radicalismo político. De outro lado, nenhum dos dois partidos possui uma esfera de hegemonia própria e exclusiva. O que prevalece é a hegemonia das classes dominantes e de suas elites. Elas paralizam os dois partidos, como paralizaram a ditadura militar e estão paralizando a nova República. Como conseqüência, ambos estão presos a um imobilismo político que os dissociam da causa suprema, que seria a soberania da ANC, e, o que é pior, que os impede de possuir um projeto político constitucional. Qual é o projeto político constitucional do PMDB? Qual é o projeto constitucional do PFL? O que a Aliança Democrática se propõe fazer dentro da ANC e quais são as bandeiras que ela desfralda? Os dois partidos prendem-se à ordem existente e ao Governo através de uma força estática e ficam surdos e mudos diante das esperanças que suas promessas eleitorais despertaram nas massas populares.

Como explicar essa realidade? A explicação é, a um tempo, fácil e grave. Ao estudar as lutas sociais na França, Karl Marx identificou, há muito tempo, o que imobiliza as classes burguesas, impele-as a bater-se cruamente pela dominação de classe pura e simples e, nos limites extremos, as debilita a ponto de obrigá-las a buscar na ditadura (no “bonapartismo”) o Abre-te Sésamo de becos sem saída. As classes burguesas estão no Brasil — como sempre estiveram — divididas quanto às soluções essenciais que dizem respeito aos dilemas postos pelo funcionamento da sociedade civil e pela organização do Estado. Só que hoje essas divisões são claramente explosivas, porque o setor mais forte e decisivo da burguesia é o capital supranacional e uma internacionalização do modo de produção capitalista que a burguesia brasileira desejou e, hoje, não sabe como limitar ou deslindar. A tão orgulhosa “oitava economia do mundo” regride ao crescer, porque os laços de dependência ocultam uma modalidade imprevisível de neocolonialismo. Não só nenhum setor da burguesia interna pode bater-se pela condução ou pela liderança dos demais estratos burgueses. A burguesia como um todo vacila diante do imperialismo da era atual e de sua multidiversidade destrutiva. Quando a hegemonia direta das classes dominantes atravessa a hegemonia dos partidos políticos da ordem, instalados no Governo, ela desorienta a dominação de classe e desorganiza o Governo. A sociedade civil eleva o seu potencial de barbárie e o Governo se anula como vetor político da vontade coletiva das elites das classes dominantes. O que redunda em uma curiosa contradição: a hegemonia de classe e a hegemonia de partido esfarelam-se antes de se converterem em força política real.

Isso desenha uma curiosa situação histórica. A constituição é menos importante que a dominação direta de classe e o uso do Estado como uma arma de ataque e de defesa nas relações com os oprimidos e com as classes trabalhadoras. Não pode haver constituição e projeto de constituição, porque não há promessa — prevalece o impulso e o apego à repressão. Sem resolver o problema principal, suas relações com o imperialismo e sua debilidade orgânica diante dele, com as multinacionais crescendo por dentro da sociedade brasileira, transformada em fronteira do centro imperial, as classes dominantes nada tem a oferecer — ou dominação ou caos. O que fazer diante da miséria? O que fazer com o desemprego crescente? O que fazer com o papel das forças armadas? O que fazer com a propriedade, a iniciativa privada e o Estado? A sociedade civil, por sua mesma organização capitalista, erige-se em uma fonte de ameaças. O Estado, por sua mesma organização capitalista, erige-se em um fortim — mas como confiar nele, se ele sofre um gigantismo incontrolável, necessário à acumulação capitalista? O conservantismo é o único ponto seguro. Mas ele dança sobre si mesmo se até as instituições­chaves, como a família, a igreja e a escola revoltam-se contra a ordem existente por causa do conservantismo, de suas mazelas e de sua incapacidade de associar a mudança estrutural à consolidação e à defesa inteligente da ordem.

Os segmentos mais abertos da burguesia apelam para a alternativa da democracia participativa. Porém, a democracia participativa — se deixar de ser uma mistificação, apregoa a esperança e repele a repressão. Ela permitiria inundar a ANC com as massas populares e as forças sociais anti-elites. Ela almeja a civilização rápida da sociedade civil e a democratização efetiva do Estado, com o desmantelamento dos aparatos de violência institucionalizada, a partir do Estado ou da empresa econômica. Para uma maioria parlamentar, que se identifica como conservadora e de centro-conservador, ela soa como o equivalente político do socialismo. Ora, a democracia participativa constitui, de fato, uma tentativa de evitar a social democracia revolucionária (coisa do passado) e de aliar o capitalismo com a segurança (da reprodução do capital) e a liberdade (de manter o capitalismo em um mundo de esperanças mínimas, calcadas na reforma distributiva). Avaliada em seu todo, ela é muito pouco em confronto com a tradição revolucionária do socialismo. Mas é um fantasma, para a totalidade de uma burguesia presa a privilégios pré-capitalistas e a uma acumulação capitalista originária permanente, que não cessa nunca, alimentada pela deformação do Estado. Ou é um conceito vazio desligado de intenções propriamente democráticas e de participação das massas no controle do poder , na sociedade civil, nas instituições-chaves e no Estado, a instituição­chave mais complexa do mundo moderno, até o aparecimento das grandes corporações.

Será que a iniciativa popular poderia abrir essa porta de uma democracia participativa? É duvidoso. A iniciativa popular amplia o processo de produção das leis. Contudo, não existe na sociedade civil nada suficientemente organizado para converter a iniciativa popular em uma alternativa para a indecisão e o imobilismo da burguesia, plantada ou cimflorestan_fernandes10entada no solo histórico de interesses egoísticos e particularistas demasiado estreitos. A cada crise profunda repete-se o ciclo de compressão conservadora frenética e neurótica, na “defesa da ordem contra a anarquia”. E a anarquia não vem de baixo, procede de cima. Dezenas de exemplos, da independência à nova República, atestam essa observação. Os que combatem a anarquia na verdade geram a anarquia e a multiplicam por cem ou por mil, porque não querem ceder diante do imperativo de formas de organização não-excludentes e mais eqüitativas. Para concluir, admito que uma atitude funcional diante de avanços seletivos permite, pelo menos, evitar uma regressão global. Mas tais avanços seletivos são instrumentais para bloquear a mudança estrutural e para retirar da mudança o seu conteúdo político revolucionário. Se a burguesia e se os estratos mais politizados e orgânicos da burguesia não possuem alternativa, a constituição não encontra os campeões de um projeto constitucional dentro da ordem. E os que combatem a ordem existente não podem levar a sério substituir seus ideais revolucionários pela salvação da ordem! … Não é o seu papel histórico. O que lhes compete é lutar pela revolução social e pela conquista do poder. Na ANC eles compõem uma esquerda real, que não se confunde com a esquerda dos partidos da ordem e do Governo. À margem desses partidos, eles podem formar, em uma situação de atraso político, ao lado daquela esquerda parlamentar. Contudo, só poderão pensar em projeto de constituição quando a questão do poder se formular em termos de como organizar uma sociedade e um Estado socialistas.

FERNANDES, Florestan. A Constituição como projeto político. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 47-56, 1.sem 1989. Disponivel nos endereços:

 http://www.fflch.usp.br/sociologia/temposocial/site/images/stories/edicoes/v011/constituicao.pdf e

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-20701989000100004&script=sci_arttext

De Florestan Fernandes também pode ser encontrado na rede sua grande obra, que referencia esse texto. Revolução Burguesa no Brasil: https://drive.google.com/file/d/0B3GQrRvm4KXOMGZNcnpBZUxxX1k/view

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