[Júlio César Pereira de Carvalho e Mayra Goular]
Após a nomeação de Nicolás Maduro à Presidência da Venezuela, em abril de 2013, em meio à habitual contestação dos resultados eleitorais por parte de setores da oposição, uma série de manifestações intensas e violentas eclodiu pelo país. Em fevereiro de 2014, movimentos estudantis motivados, sobretudo, pelos altos índices de violência urbana, foram às ruas reivindicar melhores condições de segurança.
Sob o fervor da onda de manifestações de fevereiro de 2014, um setor oposicionista dissidente, posteriormente denominado como ‘La Salida’, liderado, por Leopoldo Lopez e María Corina Machado, passou a incitar a população a demandar a retirada de Nicolás Maduro do poder, através de um conjunto de acusações contra o governo. No auge dos protestos, Leopoldo López teve sua prisão decretada, sendo seguido pelo ex-prefeito de San Cristóbal, Daniel Ceballos, ambos acusados de incitar a violência nas manifestações ocorridas na época. Cerca de um ano depois e sob acusações análogas, o prefeito metropolitano de Caracas, membro do partido Alianza Bravo Pueblo, Antonio Ledezma, foi detido em 19 de fevereiro de 2015.
Neste contexto, uma comitiva de senadores brasileiros, liderada por Aécio Neves (PSDB) e Aluysio Nunes (PSDB), viajou até Caracas a fim de visitar os membros políticos detidos da oposição venezuelana. Também compuseram a delegação os senadores José Agripino (DEM), Cássio Cunha Lima (PSDB), Ronaldo Caiado (DEM), Ricardo Ferraço (PMDB), Sérgio Petecão (PSD) e José Medeiros (PPS). Assim como a greve de fome recém encerrada, o propósito da visita era chamar a atenção da opinião pública internacional para as irregularidades cometidas pelo governo da Venezuela ao efetuar a prisão dos oposicionistas sem que houvesse uma condenação definitiva pela Justiça, além das reiteradas alegações de violações aos direitos humanos durante a estada dos políticos na prisão[6], denunciando também o governo brasileiro por sua suposta complacência perante a situação.
Bloqueados por manifestantes chavistas em protesto contra a intervenção estrangeira em uma questão nacional, a delegação brasileira não pôde efetivar seus propósitos e cumprir sua agenda. Ao retornar ao Brasil, Aécio Neves repudiou os supostos ataques aos senadores, atribuindo responsabilidades ao governo brasileiro, por não ter ido em seu socorro, e ao governo venezuelano, que teria demonstrado sua natureza autoritária e antidemocrática ao longo do episódio. O senador Aluysio Nunes alegou, também, que o governo venezuelano não autorizara o avião da Força Aérea Brasileira (FAB) – utilizado pelos senadores – a efetuar o pouso em Caracas, questão que foi interpretada como uma recusa venezuelana à visita e que, inclusive, impulsionou contraposições, por parte de parlamentares brasileiros, à manutenção da Venezuela no Mercosul. Em nota, a chancelaria venezuelana expressou, contudo, que recebeu a solicitação um dia depois daquele informado por Nunes, e que a resposta positiva foi concedida em duas horas.
Ao escolherem chamar atenção para a situação prisional, os senadores optaram por um tema com o qual possuem afinidade. Conforme revela pesquisa recentemente realizada pelo cientista político e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, Rogério Dultra, o PSDB, partido que liderou a comitiva, através de seus governos estaduais em São Paulo e Minas Gerais, operou a maior política de encarceramento da história do país. O senador Aécio Neves, contudo, se destaca nesse tocante. Ao longo de seu mandato como governador, a média mineira de aumento da população carcerária foi de 416,67%, mais do triplo da nacional de 137,31%.
Sendo assim, cabe ressaltar o contraste entre o ruído em torno do desrespeito operado pelo governo venezuelano ao devido processo legal durante a prisão de Lopez e Ledezma, e o silêncio perante o fato de que o estado por ele governado ao longo de dois mandatos consecutivos (2003 – 2010) ostentar o maior percentual de presos provisórios do Brasil – sendo que cerca da metade (43,95%), não possui qualquer condenação. São 20.350 pessoas a serem visitadas. Talvez não fosse necessário ir à Caracas para falar sobre prisões arbitrárias.
Ainda que exerça um importante papel de mediador nos conflitos regionais, desestimulando a eclosão de golpes de Estado e rupturas institucionais, o governo brasileiro não parece interessado em intervir na política doméstica de seus vizinhos, ainda mais no contexto atual em que mal consegue fazê-lo em território nacional. No caso da Venezuela, em especial, o Partido dos Trabalhadores por vezes concedeu manifestações de apoio ao ex-presidente Hugo Chávez, reafirmando a legitimidade democrática de seu governo perante às iniciativas insurecionais da oposição apoiadas pela mídia, pelos Estados Unidos e por outros atores internacionais. Porém, este apoio jamais se desenvolveu sob a forma de uma adesão, por parte do governo, ao bolivarianismo, ainda que alguns setores do PT assim desejassem.
Isto não significa, contudo, que o chavismo não tenha impacto na política interna do Brasil. Sob esta perspectiva, a visita dos senadores brasileiros à Venezuela representa o ponto máximo de um fenômeno observado durante todo o governo do Partido dos Trabalhadores: o uso do bolivarianismo como objeto da luta hegemônica travada no Brasil entre o governo e oposição, mais precisamente, entre os segmentos relativamente progressistas que compõem o primeiro e as elites comprometidas com o capital financeiro internacional alinhadas com a segunda. Embora o papel dos atores progressistas tenha sido definitivamente secundário ao longo dos 13 anos em que o PT esteve na Presidência, nas poucas ocasiões em que o governo ameaçou adotar qualquer posicionamento contraditório aos interesses destas elites, ele foi alvo de críticas por parte da oposição que enquadrava tais iniciativas como “bolivarianas”.
Procedendo desta forma, as lideranças oposicionistas e os grupos sociais com elas identificados, buscavam pontos de convergência entre o governo brasileiro e venezuelano, com o intuito de desgastar a imagem do PT perante a opinião pública. Essa associação, todavia, ultrapassa a temática econômica, uma vez que o bolivarianismo foi sendo construído como uma categoria atrelada a restrições nas liberdades civis e políticas. Nesse processo, os mecanismos de democracia direta, núcleo do conceito de democracia incorporado na Carta bolivariana de 1999, a relação do chavismo com a mídia local e com a oposição, bem como suas investidas não ortodoxas em âmbito econômico, foram os alvos preferenciais dos detratores do regime venezuelano, sendo amplamente utilizados para categorizá-lo como ditatorial.
A visita dos senadores brasileiros ocorreu em um contexto de crise política e econômica na Venezuela e no Brasil. Com a fragilização de seus respectivos governos, em ambos os países se observa um subsequente agravamento da polarização entre governo e oposição. No caso brasileiro, a situação parece ainda mais significativa, uma vez que o dilaceramento do tecido social venezuelano vem sendo observado desde o início do governo de Hugo Chávez, em 1998. No Brasil ele é uma infeliz novidade. Se, desde o fim da ditadura militar, a contenda política se manteve relativamente afastada das dinâmicas sociais cotidianas, agora ela começa frequentar os almoços de família, as confraternizações do escritório e outros espaços nos quais os conflitos costumavam se organizar a partir de outros temas.
Indicações:
- GOULART, Mayra. ¿La Calle es la salida? Uma hipótese sobre o 12F Venezuelano. Breviário de Filosofia Pública, 119, 2014. p. 24-36.
- FERNANDES, Viviane. “Os que hoje falam em violação de direitos humanos na Venezuela são os que me prenderam no golpe de 2002”. Brasil de Fato, São Paulo, 12 de mai. de 2015. Disponível em: < http://brasildefato.com.br/node/32032>.
- PEDROZO, Carolina. Crise política na Venezuela: breve reflexão sobre os acontecimentos de Fevereiro de 2014. Ensaios IEEI-UNESP, São Paulo, n. 21, fev. 2014.
- VENEZUELA: crise política e econômica. Produção: Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da UNESP (IEEI – UNESP) e Acessoria de Comunicação de Imprensa da UNESP (ACI – UNESP). São Paulo, 2014. Disponível em: <http://www.unesp.br/semdiplomacia/debates/2014/6>. Acesso em 11/06/15.
Wiki:
- Leopoldo López foi prefeito do município de Chacao, entre 2000 e 2008; fundou, em 2009, o partido oposicionista Vontade Popular – pertencente à MUD – e pode ser identificado, no interlúdio venezuelano aqui abordado, como um dos principais oponentes ao chavismo no país. Em 2002, quando Hugo Chávez foi subjugado ao golpe de Estado, López foi acusado de estimular os manifestantes a marcharem até o Palácio de Miraflores (sede da presidência). Em seguida, o oposicionista, assim como diversos políticos ligados ao setor radical da oposição, assinou o “Decreto Carmona” – fomentado pelo empresário Pedro Carmona, que assumira a presidência do país, nos dois dias de duração do golpe. Tal medida instituía a dissolução do Congresso, do Supremo Tribunal Federal, assim como outras medidas típicas de um Estado de Exceção.
- María Corina Machado foi eleita deputada, em setembro de 2010, pelo partido Primeira Justiça. Ocupou este cargo até março de 2014, data em que o governo a destituiu, devido sua participação em reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA) como representante suplente do Panamá. Em julho de 2015, Machado foi impedida, pela Controladoria Geral da Venezuela, de exercer qualquer cargo público no período de um ano, acusada de abuso de poder. Cabe lembrar que a ex-deputada, é fundadora da Organização Não Governamental denominada “Súmate”, que recebe financiamento e possui estritos vínculos com o governo dos Estados Unidos. Criada após o golpe de 2002 – explicitamente apoiado por Corina Machado mediante assinatura do “Decreto Carmona” – a ONG foi propulsora do referendo revogatório de 2004, no qual Chávez saiu vitorioso (JARDIM, 2006).
- Daniel Ceballos foi deputado pelo Estado de Táchira, entre 2009 e 2012, e eleito prefeito de San Cristóbal em 2013. Líder do partido Vontade Popular, o opositor recebera denúncias propaladas através do Terceiro Tribunal de San Cristóbal, ná época das manifestações, que o acusavam de descumprir medida cautelar na qual a prefeitura deveria impedir o fechamento e vias durante as manifestações.
- No tocante às queixas de López acerca da coibição de direitos básicos que sofrera na prisão, seu relato indica que fora submetido ao isolamento por meses, que suas correspondências foram embargadas e que é permanentemente gravado. Em resposta, o presidente do Poder Cidadão e Defensor do Povo da Venezuela, Tarek Saab, rebate as acusações afirmando que López se encontrava confinado em uma cela de 12 metros, e que, devido ao uso de aparelho telecomunicador – prática que transgride o regimento da prisão -, foi transferido para uma cela menor, que contava, contudo, com banheiro privado, cama, aparelho de microondas, televisão por satélite, geladeira, biblioteca, dentre outros quesitos (FERNANDES, 2015).
- Ver: http://opasmado.blogspot.com.br/2014/10/o-carcereiro-dos-pobres-gracas-aecio.html
- Esta reflexão é resultado do projeto de pesquisa Bolivarianismo e Luta Hegemônica no Brasil: (re) significações do conceito durante o governo do Partido dos Trabalhadores (2003-2015), desenvolvido no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).