[Fernando Perlatto]
Se à literatura, dentre outros desafios, cabe a tarefa de desvendar a complexidade da alma humana e destrinchar de forma poética as epifanias e as agruras da vida cotidiana, o mercado editorial brasileiro pode celebrar – e este termo não é, neste caso, exagerado – a publicação, pela Companhia das Letras, da tradução do terceiro volume do romance autobiográfico Minha Luta, do escritor norueguês Karl Ove Knausgård. Misturando de forma renovada memória e ficção, as mais de três mil e quinhentas páginas, que compõem os seis volumes desta série, têm representado, segundo vários especialistas, um sopro de renovação na literatura mundial. Se nos dois primeiros volumes – “A Morte do Pai” e “Um Outro Amor” –, Karl Ove narrava, respectivamente, a sua tensa e complexa relação com o pai alcoólatra a partir de um panorama mais amplo sobre diferentes momentos de sua trajetória, e as alegrias e tédios da vida a dois com sua segunda esposa, Linda, e seus filhos, neste terceiro volume, “A Ilha da Infância”, recém publicado, o escritor descortina momentos da sua infância, expondo de forma direta cumplicidades e conflitos com amigos e familiares, as angústias, medos, aflições e expectativas presentes em sua alma nesta fase da vida. O volume quarto já foi traduzido para o inglês – com resenhas elogiosas de Jeffrey Eugenides, no The New York Times e Elaine Balir, no The New York Review of Books – e, em breve, deve ser vertido para o português e chegar para o público brasileiro.
Paulo Francis costumava, em suas crônicas, dizer que um bom escritor deve encontrar um ponto de vista. Karl Ove descobre o seu ponto de vista nesta série Minha Luta e o explora com potência, a partir de sua abordagem hiper-realista. Depois da publicação de dois livros de sucesso na Noruega, o autor passou por uma grande crise de criatividade e, após a morte de seu pai, passou a escrever sobre sua vida, sem qualquer preocupação mais sistemática com cronologia, com a dimensão da verdade e – diga-se de passagem – sem quaisquer compromissos morais no sentido de respeitar a privacidade dos amigos e familiares que com ele conviveram e que aparecem nas páginas destes volumes. Pode-se criticá-lo por sua postura ética, sobretudo pela exposição que faz de forma tão escancarada, para não dizer irresponsável, dos seus conhecidos. Isto é outro debate. O que não se pode deixar de fazer é ressaltar que o resultado de seu empreendimento tem sido primoroso. Pelo menos até este terceiro volume. A ver os demais.
A produção literária deste autor impressiona não apenas pelo vigor intelectual que o levou a produzir estes seis volumes, mas principalmente por sua escrita que, a partir da narrativa de acontecimentos costumeiros da vida de qualquer um dos mortais, rasga e escancara questões, dilemas e preocupações que estão nas almas de todos os seres humanos. A escrita de Karl Ove se destaca por ser seca, minuciosa e densa. Narra ações prosaicas, corriqueiras e cotidianas de forma simples e modesta, porém primorosa. Nas suas páginas, do pouco nasce o muito, do rudimentar brota a beleza, da irrelevância germina o requinte. Nessa perspectiva, menos do que o enredo em si, o que chama a atenção dos livros do norueguês é a forma da sua escrita, a maneira livre e solta como apresenta as trivialidades e as banalidades da vida comum, conferindo-lhes graça e cor, ensejando o interesse do leitor pelas minúcias e ações comezinhas.
A abordagem refinada das trivialidades, dos acontecimentos miúdos do dia a dia, olhando-os não de uma visão panorâmica, mas a partir de uma lupa que escancara os detalhes microscópicos e as tensas teias e redes de relações sociais, é, sem dúvida, o ponto alto desses volumes. A narrativa da preparação de uma comida, de uma conversa banal com um conhecido ou de um trago de um cigarro pode consumir mais de dez páginas, sem que, como era de se esperar, o leitor se aborreça e desista do livro. Pelo contrário. O leitor pede mais cotidiano, pede mais banalidade, pede mais o simples, pois sabe que lá, remexendo-o, encontrará a complexidade. Não à toa, ainda que de forma exagerada e não obstante possua diferenças importantes, os escritos de Karl Ove têm sido associados ao Proust de Em Busca do Tempo Perdido.
A despeito do título da série, Minha Luta, trazer, imediatamente, à lembrança, o livro homônimo de Adolf Hitler, a luta que aqui se narra é diferente. Trata-se de uma batalha de outra ordem, travada no mundo interno, pessoal e subjetivo, batalha esta enfrentada permanentemente por todos os seres humanos, em suas complexidades, na construção de suas trajetórias de vida, seja para a tomada de decisões mais grandiosas que alteram e definem destinos individuais e coletivos, seja para a escolha de ações prosaicas e banais do dia a dia. A riqueza da obra de Karl Ove talvez resida precisamente neste aspecto, qual seja: sua capacidade de narrar a universalidade da experiência humana cotidiana. Noruegueses e brasileiros, ricos e pobres, grandes personagens e homens comuns, rapazes e moças, não importa a polaridade escolhida: todos enfrentam cotidianamente suas lutas internas e as batalhas subjetivas no interior suas consciências.
Em uma brilhante passagem de Os Miseráveis, na seção com o belo título “A tempestade de uma consciência”, ao descrever as agruras subjetivas enfrentadas pelo seu protagonista, Jean Valjean, em torno do dilema de assumir ou não sua verdadeira identidade como prisioneiro evadido, Victor Hugo narra as tensões internas que atravessam a alma de todos os seres humanos. Vale citar o trecho: “Existe uma coisa que é maior que o mar: o céu. Existe um espetáculo que é maior que o céu: é o interior de uma alma. Fazer o poema da consciência humana, fosse embora a propósito de um só homem ou do mais miserável dos homens, seria o mesmo que fundir todas as epopeias numa epopeia superior e definitiva. A consciência é o caos das quimeras, das ambições e das tentações; a fornalha dos sonhos, o antro das ideias de que temos vergonha; é o pandemônio dos sofismas, o campo de batalha das paixões. Experimentem, em certas horas, penetrar através da face lívida de um ser humano que reflete, olhar no seu íntimo, observar sua alma e examinar essa escuridão. Ali, sob o aparente silêncio, há combates de gigantes como em Homero, batalhas de dragões e hidras e nuvens de fantasmas como em Milton, visões de espirais como em Dante. Que coisa mais sombria é esse infinito que todo homem leva em si mesmo, pelo qual desesperadamente mede os desejos do seu cérebro e as ações de sua vida!” (p.331-32, Os Miseráveis, Cosac Naify).
Os livros de Karl Ove, da séria Minha Luta, ainda que centrados em sua trajetória individual, ao descreverem minuciosamente ações e acontecimentos singelos e triviais, conseguem expor, de forma simples e ao mesmo tempo sofisticada, as “epopeias internas” e os “combates de gigantes” que percorrem as almas e as vida de todos os seres humanos. Nesse sentido é que podemos dizer que a riqueza da obra deste autor norueguês é escancarar a complexidade da experiência cotidiana.