O dia 12 de outubro de 2005 celebra o que, até agora, pode ser considerado como o mais importante acontecimento da história boliviana do século XXI. Nessa data, um líder cocaleiro, que quando criança catava cascas de laranja jogadas no lixo por passageiros de ônibus, foi eleito o primeiro presidente indígena da Bolívia, uma nação que têm apenas 7% de brancos entre os seus cidadãos, em sua imensa maioria indígenas (55%) ou mestiços (35%). Não é apenas a sua origem uru-aimará que determina o ineditismo da trajetória política de Evo Morales, uma vez que, desde então, a Bolívia vive o mais longevo período de estabilidade de sua história, marcada por uma sucessão de golpes e ditaduras.
De seus 180 anos de independência, 97 foram vividos sob a tutela de militares, Neste interregno, os bolivianos tiveram 65 presidentes e 87 governos que, em média, permaneceram no poder por apenas 25 meses. Entre 2001 e 2006, o país teve cinco presidentes. As rupturas constitucionais também foram constantes. O país teve 16 Cartas em seu período pós-independência. Ao assumir seu terceiro mandato consecutivo em 2015, Morales baterá o recorde nacional, ultrapassando o Marechal Andrés de Santa Cruz, um dos fundadores da República, que governou o país entre 1829 e 1839.
As turbulências, todavia, não se restringiram à esfera política. No plano econômico, o país já foi o recordista sulamericano em termos de inflação: 8.170,5% em 1985. No tocante às relações internacionais, a Bolívia também tem um histórico de instabilidade, marcado por problemas de fronteira com quase todos os seus vizinhos – Argentina, Chile, Peru, Paraguai e Brasil. A sede do governo, o Palacio Quemado, ilustra esse traço disruptivo que marca a história do país, uma vez que recebeu esse nome por ter sido queimado durante um levante popular em 1860[1]. Ademais, em 21 de julho de 1946, ele foi o cenário do único linchamento de um presidente registrado na América do Sul. Nesta ocasião, Gualberto Villarroel – que como muitos jovens de sua geração era simpatizante do fascismo – foi assassinado por uma multidão que invadiu o prédio e, após espancá-lo, o defenestrou da sacada do palácio, pendurando-o pelo pescoço, com o retrato de presidente em seu peito, em poste de iluminação da Praça Murillo[2].
A ascensão eleitoral de Morales, no entanto, faz parte de um contexto de transformações mais abrangentes. Na virada para o século XXI, uma nova elite política chega ao poder em alguns países sulamericanos, caracterizada pelo compromisso com os interesses daqueles que se percebiam excluídos política e economicamente. Entre essas novas lideranças, estão alguns parceiros de Evo como Hugo Chávez, Rafael Correia, além de outras figuras emblemáticas dessa reconfiguração regional, como Néstor Kirchner, e Luis Inácio Lula da Silva. Nesse grupo, indiscutivelmente heterogêneo, são incluídos projetos que convergem no compromisso com as classes populares e com a recuperação das capacidades estatais, em clara oposição aos discursos neoliberais disseminados na região e que, em alguns desses países, teima em recuperar seu prestígio.
Amplamente sufragados e apoiados na década passada, esses novos líderes, ou aqueles por eles escolhidos para lhes suceder, se encontram atualmente diante de uma conjuntura adversa. Seguem com o apoio daqueles que continuam percebendo-se excluídos, porém, convivem com uma veemente rejeição por parte das camadas médias da população, cada vez maiores, haja vista terem sido governos marcados por esforços de inclusão e distribuição de renda, relativamente bem sucedidos no que diz respeito à redução da pobreza. O resultado entre os pobres que obtêm melhorias em suas condições de vida é um afrouxamento nos vínculos de identificação com tais lideranças, conforme se reduz a perspectiva de exclusão que os conectava. Entre as camadas médias recrudesce o ódio de classe, na medida em que se alastra o rancor contra as concessões dirigidas às camadas populares, mais próximas em termos simbólicos, tendo em vista um maior acesso ao consumo e a alguns serviços antes exclusivos das parcelas mais privilegiadas economicamente, como é o caso da universidade.
Esse recrudescimento ameaça os governos venezuelano, argentino e brasileiro, que amargam índices cada vez mais minguados de popularidade e convivem com ataques diários da mídia nacional e internacional. Enquanto isso, Evo obtém um êxito eleitoral retumbante, expandindo sua popularidade entre as elites econômicas e vencendo em redutos tradicionalmente ligados à oposição. De acordo com o Tribunal Supremo Eleitoral da Bolívia (TSE), o presidente, que representa o Movimento ao Socialismo (MAS), foi reeleito com 61,04% dos votos, seguido por Samuel Doria Medina, empresário magnata ligado ao setor de construção civil, representante da Unidade Democrática (UD), sufragado por 24,49% dos eleitores. Em terceiro lugar, ficou o líder do Partido Democrata Cristão (PDC) e ex-presidente do país, Jorge Quiroga, com 9,07%. Em quarto e quinto, com cerca de 2% dos votos, ficaram duas dissidências à esquerda: Juan del Granado, ex-prefeito de La Paz do Movimento Sem Medo (MSN), e o líder indígena Fernando Vargas, do Partido Verde.
Evo não apenas conseguiu se reeleger sem dificuldades, o que por si só já o diferenciaria de seus aliados regionais, ele também obteve uma vitória retumbante em oito dos nove departamentos do país, incluindo o de Santa Cruz, principal reduto da oposição e motor da economia nacional, onde o presidente obteve 50,7% dos votos, dez pontos a mais do que na eleição anterior. O sucesso do governo também garantiu êxito nas eleições para o Legislativo, para o qual o MAS elegeu 84 dos 130 deputados e 25 dos 36 senadores. A Unidade Democrática e o Partido Democrata Cristão, principais partidos de oposição do país terão, respectivamente, 33 e 11 cadeiras na Câmara dos Deputados. No Senado, por sua vez, a UD deve obter 9 representantes e o PDC apenas dois.
Segundo Jorge Lazarte, decano da Facultade de Ciências Sociais da Universidade Mayor de San Andrés e um dos principais intelectuais do país, o pragmatismo seria o segredo do sucesso do evismo, que, “ao contrário do chavismo”, teria optado por evitar a polarização social, buscando apoio em todos os setores. Com isso, os partidos bolivianos de oposição acabaram confinados a uma posição “praticamente irrelevante”, fragmentada, sem liderança e com uma participação cada vez mais marginal no Legislativo[3].
O segredo de Evo estaria, portanto, nessa capacidade de ultrapassar as fronteiras que dicotomizam a sociedade boliviana, conquistando o apoio das classe médias e de parte da elite econômica nacional, as mesmas que contra ele vociferavam clichês racistas e elitistas no passado. Nesta medida, cabe questionar por que isto não ocorreu com alguns de seus companheiros sulamericanos, que convivem com um recrudescimento da oposição e com uma queda expressiva em seus índices de popularidade, embora tenham evitado a polarização e adotado políticas em favor de diferentes setores sociais, incluindo empresários e investidores internacionais.
Sendo assim, ainda que alguns analistas atribuam tal sucesso ao pragmatismo do presidente boliviano e do ministro da Economia, Luis Alberto Arce, que, como contraponto aos discursos nacionalistas e populares, teriam adotado uma política macroeconômica ortodoxa[4], isto, contudo, não serviria para diferenciar o governo do MAS dos casos venezuelano, argentino e brasileiro. Pois, a despeito de seus discursos mais ou menos radicais, eles também realizaram inúmeras concessões à ortodoxia neoliberal, mantendo-se ciosos diante de credores e investidores internacionais.
Todavia, o bom desempenho da economia boliviana é certamente um trunfo de Morales, em face a um cenário regional bem mais adverso. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Bolívia deve registrar um crescimento de 6,5% do Produto Interno Bruto em 2014, o maior da região que, em conjunto, deverá crescer somente 1,3%. Venezuela e Argentina, por sua vez, devem observar uma redução de PIB da ordem de 3% e 1,7%, respectivamente, enquanto o Brasil deverá crescer apenas 1,3%. O Modelo Econômico Social Comunitário da Bolívia, além das taxas de crescimento, tem outros indicadores favoráveis para exibir, agradando ao público ortodoxo com seus 3,3% de superávit primário e com as contas públicas apresentando um saldo positivo de 1%, em 2013[5]. Evo, entretanto, também é capaz de agradar aos heterodoxos e interessados em conquistas sociais em geral, tendo em vista uma expressiva diminuição da pobreza que, em 2006, abarcava 60% da população e, em 2011, foi reduzida para 45%.
No entanto, a observação destes indicadores precisa levar em consideração as dimensões socioeconômicas do país, um dos mais pobres do continente, altamente dependente da exportação de gás natural, cujos preços, estão em franca decadência, embora tenham permanecido em alta por boa parte do governo Morales. Como podemos observar no gráfico abaixo, a elevação nos preços das commoditties foi interrompida pela crise de 2008, porém, uma vez que seu valor não retornou ao patamar inicial, ela ainda explica, em parte, o êxito de Evo.
Contudo, na medida em que boa parte dos países sulamericanos têm sua economia dependente da exportação de matérias primas em geral, a alta no preço das commodities também não pode ser um fator suficiente para compreendermos o particular êxito político do governo boliviano. Isto porque Venezuela, Brasil e Argentina têm suas estruturas produtivas atreladas a oscilações análogas. Do mesmo modo, sua queda a partir de 2008 – e a subsequente redução no crescimento até então observado nesses três países– também não pode explicar, isoladamente, o forte recrudescimento da oposição nesses contextos. Sendo assim, é interessante contrastarmos os indicadores de variação do PIB, compreendidos em um intervalo de tempo que contemple as Presidências de Evo Morales, Rafael Correia, Hugo Chávez (sucedido por Nicolás Maduro), Néstor Kirchner (sucedido por Cristina Kirchner) e Luís Inácio Lula da Silva (sucedido por Dilma Rousseff).
2007 |
2008 | 2009 | 2010 | 2011 | 2012 |
2013 |
Média |
|
Argentina |
8,7% |
6,8% | 0,9% | 9,2% | 8,9% | 1,9% | 3% |
5,6% |
Brasil |
6,1% |
5,2% | -0,3% | 7,5% | 2,7% | 0,9% | 2,3% |
3,5 % |
Bolívia |
4,6% |
6,1% | 3,4% | 4,1% | 5,2% | 5,2% | 6,5% |
5,0 % |
Equador |
2,2% |
6,4% | 0,6% | 3,5% | 7,8% | 5,1% | 4,5% |
4,3 % |
Venezuela |
8,8% |
5,3% | -3,2% | -1,5% | 4,2% | 5,5% | 1,3% |
2,9% |
Fonte: United Nation Statistic Division. http://unstats.un.org/unsd/snaama/resQuery.asp
Nesta medida, é interessante observar a correlação entre os indicadores econômicos e políticos. De fato, Bolívia e Equador – país que reelegeu Correia, em 2013, no primeiro turno, com 57% dos votos – têm obtido taxas de crescimento indiscutivelmente mais elevadas do que seus vizinhos nos últimos dois anos. É inegável que esses bons números favorecem seus respectivos governos durante a corrida eleitoral. Não obstante, se pensarmos em termos de melhoria das condições de vida dos cidadãos, é preciso levar em conta que esse período não seria suficiente para alterações substantivas, o que torna mais interessante a consideração de outros indicadores em um espaço de tempo um pouco maior.
Por outro lado, sem questionar essa correlação entre sucesso econômico e político, é fundamental ressaltar imensas diferenças entre esses países quando levamos em conta valores absolutos; como ilustrado na tabela abaixo, elaborada com base em dados de 2013.
País |
PIB –US$ Bilhões |
País |
PIB –US$ Bilhões |
Argentina |
611 |
Bolívia |
30 |
Brasil |
2.245 |
Equador |
90 |
Venezuela |
438 |
Fonte: United Nation Statistic Division. http://unstats.un.org/unsd/snaama/resQuery.asp
Esta perspectiva é fundamental quando comparamos cenários tão distintos. O ímpeto da oposição por parte das elites econômicas tradicionais em Brasil, Argentina e Venezuela, potencializado e instrumentalizado pelas elites internacionais, é estimulado pelo tamanho do butim a ser amealhado ao final da guerra. Quando diante de valores astronômicos, como é o caso dos orçamentos controlados diretamente ou indiretamente pelos governos desses três países, maior o interesse e, por conseguinte, os recursos disponibilizados por atores internos e externos para fustigar lideranças políticas que, em maior ou menor medida, contrariam suas demandas em função de uma opção pelas classes populares. Mesmo que essa escolha seja suavizada por inúmeras concessões, ela desagrada àqueles que por séculos foram acostumados a não encontrar quaisquer limites a sua hegemonia econômica, política e cultural.
[1] Ver: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,neoliberal-do-armario,1578668
[2] Ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gualberto_Villarroel_López
[3] Ver: http://oglobo.globo.com/mundo/futuro-que-governo-projeta-perigoso-diz-analista-sobre-bolivia-14227645
[4] Desde 2006, as reservas do Banco Central Boliviano passaram de US$ 1 bilhão para US$ 15,4 bilhões.
[5] Ambos os percentuais são atrelados ao valor do Produto Interno Bruto do ano.
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