Cinco (breves) teses sobre a polícia – ou sobre o truísmo repressor do “aparato repressor do Estado”

[Simone da Silva Ribeiro Gomes]

 “A polícia é especialista na aplicação científica da força física de forma a impor as leis que governam a sociedade

David Graeber

 

Começo esse texto pelo seu final, pelos argumentos suscitados em incansáveis conversas com opiniões dissonantes às minhas: eu não acredito que a polícia esteja ai para nos proteger. Assim tão simples, não recorro imediatamente à polícia quando sou “vítima” da violência urbana, em que interlocutores bravejam “a quem você recorre quando é assaltada?”. Não me lembro da última vez que tenha feito isso, e, nos últimos anos, não ouvi muitas histórias de pessoas bem sucedidas nessa empreitada. Dessa forma, me adianto: é preciso repensar o papel das forças de repressão do Estado. É sobre isso que pretendo falar nesse espaço, portanto, reprimir quem de quais ações? A favor de quem e a troco de que? São algumas das questões que intrigam parte da esquerda anti-proibicionista.

Quem ainda não teve o desprazer de assistir a triste – e recorrente no Rio de Janeiro – cena de trabalhadores de rua, conhecidos como ambulantes, terem que retirar seus produtos às pressas, com medo da apreensão, seguida da repressão do aparato estatal em suas muitas formas: polícia civil, polícia militar ou guardas municipais, que, apesar de não serem strictu sensu consideradas polícias, exercem poderes de polícia nos limites da competência constitucionalmente atribuída aos municípios*? Ou uma cena correlata dos trens em direção ao subúrbio: em que vendedores – homens, mulheres e por vezes crianças – e suas mercadorias pesadas, dias de semana, mas, sobretudo nos finais de semana, têm que fugir da vigilância da administradora da concessão estatal, e por vezes, da polícia? É comum ouvi-los reclamar da apreensão indevida de suas mercadorias, das humilhações cotidianas ou da demanda pelo “arrego”, a famigerada propina, uma porcentagem de seus lucros para que sigam trabalhando.

Aos “mantenedores da ordem” cabe também, com frequência, policiar territórios ditos esquecidos pelo Estado, prestes a serem retomados, segundo à moda das políticas de segurança do período, que já incluíram, nos anos 80, no Rio de Janeiro, uma premiação por mortes conhecida como “gratificação  faroeste”, as “premiações por bravura”. Essas, durante o governo Marcelo Alencar, eram mortes em decorrência da ação policial, estimuladas por remuneração concedida a policiais militares. Além disso, uma cena tornada corriqueira no imaginário coletivo carioca, envolve também a entrada do veículo do BOPE- Batalhão de Operações Especiais da polícia, em favelas da cidade, o caveirão e suas incursões triunfais, com direito à ofensas às mulheres do caminho “puta”, “vadia”, “piranha”, e a truculência indiscriminada nas ações.

Esse texto parte da proposta de pensar, de forma resumida, algumas questões relativas à polícia, a partir do caso carioca, em particular, mas estendendo-se ao escopo nacional. A partir de um espanto compartilhado por muitos in loco, mas, sobretudo posteriormente ao que ficou como conhecido como as “jornadas de junho de 2013”, em que a violência e a arbitrariedade policial ganharam as manchetes – nacionais e internacionais -, e trouxeram à tona uma importante pergunta: afinal, de quem estamos sendo protegidos? Quem nos protege dos que deveriam nos proteger – Quis custodiet ipsos custodes? -, entre outros questionamentos, são norteadores das teses a seguir.

(1) A confusão conceitual sobre o papel da polícia

Quando mencionado o truísmo de um aparato repressor, a construção verbal deixa clara a carga repressiva dos oficiais, que, por óbvio, não incluem somente as polícias, mas as forças armadas, que possuem em comum um discurso, paradoxal, de proteção e preservação do bem comum e dos cidadãos. Ainda assim, frequentemente é esquecido que, como toda relação, que aos que são protegidos correspondem sujeitos dos quais se deve proteger os demais, tudo isso sem problematizar a desigualdade social das grandes cidades brasileiras, frequentemente uma variável importante na famigerada violência urbana.

Negar a necessidade – ostensiva – da polícia, no entanto, não significa negar a ocorrência de crimes, mas sim tentar apontar para uma certa fetichização desses. O interesse em torná-los fetiche é certo: uma mão vende medo, ao passo que a outra vende segurança. A primeira é bem aproveitada pela mídia hegemônica, suas manchetes alarmantes, descrições minuciosas de cenas de crime e fotografias que jorram sangue, além da moralidade a que presta esse serviço. Ao Estado cabe à segunda, espetacularizando a (in)segurança pública com frequência, anunciando planos de ação em territórios vulneráveis das cidades, renegando a segundo plano a discussão sobre o inchaço das prisões, concomitantemente ao discurso dicotômico do Bom/Bem estatal (público) X o Mau/Mal (agentes individuais), ameaçadores da ordem pública e da coesão estatal.

Além disso, sob a desculpa da proteção, escondem-se privilégios dos “protegidos” pela polícia, em uma desmesura evidente. À população detentora de privilégios tudo cabe, inclusive ter toda a “sujeira” escondida, aos renegados: tiro, porrada e bomba. A construção dos “protegidos” é, por óbvio, externa e coextensiva à polícia, mas é importante assinalar seu papel como reprodutora de injustiças.

(2) Somente o Estado controla a polícia

A fundação do pacto social hobbesiano, em que homens e mulheres abririam mão de uma parte de sua liberdade em troca da garantia de vida civil, sob a responsabilidade do Estado, já demonstra o grau de violência imbuído na proteção, em que “sem a espada, os pactos não passam de palavras sem força que não dão a mínima segurança a ninguém” (HOBBES, 2000, p.123). No caso brasileiro, a instituição e as atribuições gerais das polícias estão definidas na Constituição Federal. No processo de repartição de competências, o constituinte originário (i.e., que formulou a CF88) conferiu aos Estados a atribuição de combater os crimes comuns. Determinou, ainda, que tal polícia deve ser dividida entre Militar, encarregada, dentre outros, do patrulhamento ostensivo, e a Civil, encarregada fundamentalmente da investigação criminal (Machado, 2011).

Para além disso, nos parece evidente que os Estados não são os únicos a controlarem suas forças policiais. É preciso pensar para além de Juppe, quando escreve sobre os episódios da França de 2006, no que ficou conhecido como os émeutes urbaines, o incêndio de muitos veículos nas periferias francesas, nos arredores de Paris, queima essa atribuída aos jovens imigrantes magrebinos do país, que reverteu-se no recrudescimento das leis e no aumento do poder das polícias de rua. Para o filósofo, o último bastião do Estado liberal é a segurança, e, portanto, essa seria inalienável, e seguiria sob a guarda estatal, não sofrendo o perigo de ser engolida pela voraz privatização. O Estado pode ser mínimo, mas a segurança seguiria a seu encargo. Assistimos, atualmente, à multiplicação de agentes privados de segurança, como os mercenários contratados em situações de guerra, os seguranças privados contratados por residências, comércios, cargas e megaeventos, além das milícias brasileiras, em ação em vários Estados do país, prestando serviços de segurança compulsória, somando-se às forças repressivas conhecidas de bairros mais pobres. Com efeito, assistimos a privatização da (in)segurança pública.

Dessa forma, é patente a extensão da influência de forças externas sobre os (des)mandos da polícia, a privatização de suas forças e a ubiquidade de casos de corrupção policial, em que, agindo sob o escudo de segurança privada, aumentam as forças coercitivas, cujos efeitos são, evidentemente, sentidos de forma mais pungente pelas populações mais vulneráveis.

 

(3) A quem interessa vender o crime? E (cada vez) mais polícia como solução?

Em um contexto global de crescente militarização da segurança pública, parece evidente que uma polícia sob a hierarquia militar é parte essencial de um processo de controle e regulação dos corpos citadinos. A regulação dos corpos é interessante do ponto de vista estatal por implicar em previsibilidade e direcionamento de certas ações e caminhos dos sujeitos. O nosso modelo de sistema penal e privativo de liberdade conta com um número crescente de prisões privatizadas, inaugurado no país pelo Centro de Detenção de Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, em 2013, mas com iniciativas sendo estudadas em outros Estados. Em um contexto de guerra às drogas, não causa espanto observar que as instituições carcerárias são depósitos de uma maioria de homens, jovens e negros, impedidos de circularem nas ruas. Com o advento dessa guerra (perdida), a partir da década de 70, aumentou-se a demanda pelo combate ao tráfico e à criminalidade de um modo geral, ainda que isso implicasse no emprego de práticas policiais arbitrárias.

O histórico brasileiro de controle das populações pobres pode ser entendido a partir das considerações de Bretas (1997) que demonstraram que, desde o início do século XX, passando pela República Velha, a atividade policial no Rio de Janeiro estava voltada para o controle arbitrário desses sujeitos. Contudo, seu foco não era ainda propriamente a repressão à criminalidade, mas atendia a demandas de ordem moral, como as numerosas prisões por “vadiagem”, como no caso dos capoeira. Tal situação é análoga ao processo de criminalização de comportamentos nas ruas na Europa, implementado a partir a necessidade de garantir mão de obra para o processo industrial. Na época de sua elaboração, uma das penas para a vadiagem era o cumprimento de uma espécie de trabalhos forçados para os denunciados. Assim começa-se a explicar como a liberdade formal foi introjetada naquelas pessoas que saiam do campo e desistiam de permanecer na cidade vivendo nas condições insalubres dentro das indústrias.

 A partir da década 50, para Misse (1999), face  ao  crescimento  dos  crimes  contra  a  propriedade,  surgiram  os chamados “grupos de extermínio”, inicialmente oficializados no interior das instituições policiais, sendo substituídos pelo tráfico de drogas, na década de 80, como destaque na agenda da  segurança  pública  devido  ao  fortalecimento  das  redes  existentes  do  varejo  de maconha, evidenciado após popularizar-se a comercialização de cocaína.

(4) A polícia – e a justiça – são cegas

É fato que o elevado número de morte de jovens negros no Brasil e no mundo exemplifica o racismo estatal em uma de suas faces mais perversas. Os maiores alvos em confrontos policiais são costumeiramente a juventude negra e pobre, um truísmo infeliz no país em que a abolição da escravidão só se deu em 1888, ou seja, há 126 anos – evidenciado em um trecho do hino da república brasileira, “Nós nem cremos que escravos outrora /Tenha havido em tão nobre País…”. Somente no Rio de Janeiro, os negros possuem uma probabilidade três vezes maior de serem feridos ou mortos pela polícia do que seria esperado por sua parte na população, afora a elevada subnotificação desses ocorridos.

 A morte do jovem estadunidense – desarmado – Michael Brown, por um policial, em Agosto de 2014, seguida de protestos continuados em Ferguson, Missouri, da maioria negra em uma cidade onde a minoria branca – que inclui as polícias, igualmente exemplifica esse ponto. A manutenção, mais de um ano depois, da prisão do jovem (igualmente negro) Rafael Braga, único preso das manifestações de Junho de 2013, no Rio de Janeiro, passando pela morte por um policial do jovem Lucas Lima, de 15 anos, no complexo do Alemão, também evidenciam as tristes dessemelhanças, da seletividade cromática do aparato policial.

Tal racismo estatal, como sublinhado nos casos acima, mas tornado ainda mais cruel quando lembramos que a população brasileira, apesar de representar um terço da estadunidense, possui uma polícia que mata cinco vezes mais que essa. Enquanto cerca de 2.000 pessoas morrem por ano no Brasil, pelas mãos da polícia, nos EUA esse número não alcança 400. No Japão e no Reino Unido, para colocar em perspectiva, em 2013, ninguém morreu dessa forma. Além disso, no país do “não somos racistas”, segundo um livro publicado por Ali Kamel, em 2006, que ecoa uma parcela da sociedade brasileira que segue o corolário da democracia racial, o debate de raça dificilmente alcança à esfera pública.

O mesmo Estado que faz as leis, e, em uma relação explicitada por Rousseau, faz parecer que não existem relações de poder, mas sim, relações jurídicas, pois sua legitimidade é a transformadora da força em direito e subsequentemente da obediência em dever legítimo, escolhe seus alvos. Assim sendo, a pretensa isonomia e celeridade da polícia, pode ser facilmente desmontada pelas estatísticas policiais no mundo todo. As mortes em confronto, cuja justificativa legal atende pela nomenclatura de autos de resistência e sua “exclusão de licitude”, porque  supostamente  cometidos  em legítima defesa ou com o objetivo de “vencer a resistência” de suspeitos de crime, sublinham, no caso brasileiro em geral – e no Rio de Janeiro em particular – o caráter discricionário dos mortos e feridos por policiais, tal como os crescentes casos de abuso de poder e corrupção policiais. Esses foram paradoxalmente evidenciados após a instalação das UPPs – Unidades de Polícia Pacificadora, no Rio de Janeiro, a partir de 2008, cujo objetivo principal constava como “livrar as populações das favelas do tráfico de drogas”, mas que acabou por se mostrar uma política controversa na medida em que casos de corrupção, assassinatos e estupros perpetrados por policiais foram denunciados pela população.

(5) A polícia faz parte de uma relação de forças cuja faceta perversa é o fetiche burocrático do Estado

Os estudos sobre a polícia já demonstraram que somente uma fração do trabalho policial possui relação direta com crime, mas a maior concentração desse é relativa à representação imediata do monopólio da violência estatal, ou seja, ações em que os agentes são ativados para simplificar situações burocráticas. Ademais, havendo corrupção no aparelho estatal, parece razoável supor que a polícia enquanto burocracia estatal que atende a demandas desse, seria facilmente corruptível.

Ademais, faz-se necessário considerar que uma polícia violenta funciona como um espelho perverso de uma sociedade igualmente violenta e desigual, quando pensamos sobre formas menos explícitas de violência, ou seja, a permissividade à alta seletividade das mortes infligidas pela polícia implica também na consideração de ‘um fechar de olhos’ coletivo para mortes de uma determinada camada da população. O departamento de relações públicas da polícia é categórico em reiterar isso, afirmando que o alto número de tiroteios de policiais reflete a violência de uma das sociedades de maior índice de homicídios no mundo e onde oficiais morrem no exercício de sua função.

Nesse sentido, o experimento das UPPs cariocas, em que a base policial deveria proteger os habitantes das favelas da violência do tráfico de drogas, mas, em uma realidade demasiado vil, são submetidos à outra ordem, que inclui humilhações, desaparecimentos e outras violências, o rei ficou nu, seria afinal nossa polícia sempre tão truculenta e demoramos a perceber? Dessa forma, a pauta das “jornadas de junho de 2013” incluiu a violência policial, baseada principalmente nas demonstrações de força sofridas nas ruas, reflexos da truculência habitual das forças policiais nas favelas e periferias das grandes cidades.

Assim, é importante reiterar que as cinco teses aqui apresentadas não têm como objetivo desmontar a necessidade de um aparato repressor estatal, mas, sobretudo, problematizar sua isonomia, não só no que tange ao Rio de Janeiro, mas também apontar para a necessidade de um novo modelo policial e jurídico. Nesse, a humanização seria um norte, as desigualdades sociais seriam levadas em consideração e o modelo punitivo seria pensado fora do bojo de uma judicialização excessiva do cotidiano.

 

Sugestões de leitura:

BRETAS, Marcos Luiz. (1997a). Observações sobre a falência dos modelos policiais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(1): 79-94.

HOBBES, T. LEVIATÃ ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil, 2000.

MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio, «Polícia e violência urbana em uma cidade brasileira», Etnográfica, vol. 15 (1) | 2011, 67-82.

MISSE, Michel. (1999). Malandros, Marginais e Vagabundos & a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese de doutorado em Sociologia apresentada ao IUPERJ, Rio de Janeiro.

JAPPE, Anelm. Violência, mas para quê? Editora Hedra, São Paulo, 2011.

http://www.theguardian.com/world/2014/aug/29/ferguson-missouri-michael-brown-brazil-rio-black-teenager-lucas-lima

*Em trâmite no Senado Federal, o PL 39/2014 objetiva criar o Estatuto Geral das Guardas Municipais, que garante seu porte de armas.

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