Quando crianças, brincamos de casinha, carrinho, lemos histórias, fazemos de bonecas e bonecos nossos filhos, brincamos de escolinha, de médico e até travamos nossas guerras fantásticas. Ganhamos um cofrinho, para aprender a poupar e, por meio de um jogo bastante difundido, o banco imobiliário, nem precisamos morar no Rio de Janeiro pra saber que um apartamento na Vieira Souto é um negócio altamente rentável. No baralho, o jogo mais elementar é o rouba montes, em que tomamos montes de cartas do outro, de acordo com as regras do jogo.
Mas não brincamos de política. Pelo menos nunca brinquei, nem vi crianças brincando disso. Minha lembrança, de criança, é que o Maluf era o filhote da ditadura que batia em professores, o PMDB era uma oposição boazinha e os outros, eram partidos e candidatos que tentavam sobreviver às regras do jogo. Lembro do slogan do Quércia, para governador, em 1986: “o sol nasceu pra todos e também para você, vote em Quércia, vote em Quércia, PMDB”. Com esse slogan, saiu de um terceiro lugar e derrotou Maluf (sempre na dianteira, no início das eleições) e Antonio Ermírio de Moraes, empresário que então se arriscava na política e se arrependeu depois de ter sua vida devassada pela imprensa. Quércia montou uma potente política de prefeitos – e, no seu caso, também propriedade de meios de comunicação – aprendida sabiamente pelos seus sucessores, até o Alckmin. Talvez seja essa a origem do Tucanistão.
Os debates me pareciam sérios e gostava deles. Mas eram agressivos, virulentos, e muitas vezes o candidato mais cínico era considerado o vencedor. Era preciso retórica e oratória para os debates. Eduardo Suplicy, quando candidato a governador de SP, foi um fiasco. Na esquerda, só Brizola fazia frente, na rapidez argumentativa, aos candidatos da direita. Alguém que aprendesse aquela política e simplesmente a repetisse hoje ia dar com os burros n´água. Um dos candidatos é neto do primeiro presidente da abertura democrática do país, que faleceu antes de tomar posse e deixou um sucessor de direita, outros quatro passaram pelo mesmo partido que fora oposição, é governo há doze anos e, portanto, detém a candidata governista. Aliás, três candidatas são mulheres. E provavelmente duas delas vão para o segundo turno.
A realidade de hoje é sem dúvida melhor do que os meus melhores sonhos de criança. O nível de incivilidade do país – racismo, homofobia, sexismo e todos os tipos de preconceitos de classe arrefeceram. Os ricos esnobam menos e os pobres são mais altivos. Poderíamos estar melhor? Pra mim, sim, e não precisava muito.
Bastasse que tributassem as maiores fortunas, que o IPTU progressivo, tal como previsto no Estatuto da Cidade, fosse uma realidade em todo o país, a reforma agrária tivesse sido feita, tivéssemos mais mulheres nos espaços públicos, liberdade sexual, seja qual for a orientação, igualdade racial e pouca desigualdade entre as rendas, organizações domésticas (familiares ou não) democráticas. E, claro, voto universal.
Estamos distantes ainda disso e há quem discorde veementemente de cada ponto. Nesta eleição, até o último foi questionado, quando se levantou a hipótese de que os beneficiários do Bolsa Família não votassem (!).
Talvez as razões pra toda essa diferença entre o que poderia ser melhor tenha um pouco de relação com o que brincamos quando criança. Não brincamos de política porque (i) em primeiro lugar, porque para ela é necessária linguagem em nível avançado, capacidade de argumentação, paciência argumentativa; (ii) porque a política é, mais do que tudo, representação, não no sentido eleitoral, mas fenomenológico: no sentido de algo que acontece mas que nunca está completamente às claras. Por mais sinceros que sejamos nos argumentos, há a função perlocutória da linguagem e dos atos. Quando brincamos de guerra, de casinha, de boneca, de carrinho, de bola não estamos na estrada, não atiramos, nem brincamos com fogo cozinhando; (iii) as preferências mudam com alguma facilidade e são diferentes entre as famílias das crianças, e logo elas não sabem direito quem imitar. Nas nossas brincadeiras, imitamos e representamos. Os jogos com a bola são os mais sinceros e emotivos. Neles, a criança mimada dona da bola ameaça o tempo todo roubar a bola do jogo. Mas mesmo assim, não são campeonatos, pra valer. São diversão. E os mimados acabam sendo perdoados. Como brincaríamos de política? A representação da representação? Não haveria graça. Seria patético. Como boa parte do horário eleitoral gratuito o é.
Pois é. Não brincamos de política. Vai ver que ela é coisa séria. E sinceramente, acho que sim. Mas o que fazer quando não são os eleitores, nem os candidatos coadjuvantes que se comportam como crianças brincando (embora, não nos iludamos, não brinquem)? Como falar a sério com a criança mimada que rouba a bola e diz que não há mais brincadeira? Que se for de um determinado jeito, as regras do jogo mudam ou ela para?: ela é café-com-leite, no jargão infantil. Mas pode agredir como qualquer outra e, mais importante: pode vencer o jogo! Ou, então, oferece a outra face, com um misto de soberba e inconsequência, porque quando se representa alguém, não é a sua face que se está oferecendo, é a de todos os representados? Reivindicar, simultaneamente, o papel de dona da verdade e injustiçada é um comportamento infantil ou extremamente chantagista, que não combina com a ideia do que é ser eleita (o). Esse comportamento funciona se a pessoa/criança ocupa uma posição de veto, ou de crivo ético, mas não se ela tem de comandar e negociar com n possibilidades, posições e circunstâncias.
Pois a impressão que eu tenho, para além das decepções ideológicas dessas eleições de 2014, muitas das quais já havia tido em 2010, é que com a presença de Marina recuamos. Sua legitimidade foi construída em cima de posições de veto e de uma trajetória de vida admirável que foi no mínimo levemente cerzida nos últimos anos. Sua tentativa de ser o pivô de uma organização política diferente e, no último minuto, procurar uma legenda partidária, suas atitudes de sopetão, seus choros, seus ressentimentos com Lula que, não faz por menos, dá-lhe de ombros com seu machismo, chamando-lhe de “Dona Marina”, tornam-na uma adveersária imprevisível e, algumas vezes, desleal, porque utiliza um capital político que não é mais seu, como a invocação do nome de Chico Mendes.
A desvalorização da vida política tem sido tão grande no Brasil que nenhum candidato que ocupou cargo executivo de importância consegue ser presidente da república. Depois de Sarney, todos os presidentes eleitos nunca haviam ocupado um cargo executivo, pois os que o haviam feito, foram destruídos pela imprensa. Quem exatamente ganha com isso? Um jornalista pode dizer mentiras, e terá cometido um erro. Se um político as diz é, no mínimo, chamado de manipulador. Como governar bem sem incomodar e, consequentemente, sem ser malhado pela imprensa? Como alterar tudo o que achamos (concordemos ou não com o quê, mas poucos estão contentes com o que temos como país) que deve ser modificado sem causar desconforto? Políticos vão para os debates com dezenas de assessores e muitos dados, que são mostrados ou escondidos conforme a conveniência e desconfio se convencem alguém. O convencimento ainda parece vir pelo tom de voz, confiança transmitida, simpatia, que não necessariamente combina com sorrisos ou alegria. Ser cínica (o) e agressivo (a) parece que está em baixa. O bom mesmo é falar tudo como se estivesse sendo dito pela primeira vez. E dá-lhe infantilização, que nada tem a ver com linguagem simples, mas com agir como se não houvesse passado nem futuro. Não são assim as crianças? Nada mais frugal e reconfortante que ir dormir com a consciência tranquila, garantida pela fé em Deus, confiante em um amanhã quase que automaticamente produzido pela ética (bastante contestável, mas esse não é o problema).
Dilma é o contrário de tudo isso. Sisuda, ex-guerrilheira, torturada, parece de aço. Surpreende quando dança o passinho – sim, há nisso algum avanço, ela está mais à vontade. Já ganhou um bambolê de presente, pra ganhar “jogo de cintura”. E aqui, não há como não apontar o caráter machista da política: a mulher é criticada justamente por não ter aquilo que se espera de uma mulher. Têm os parlamentares jogo de cintura? Talvez tenham flexibilidades que nossa presidenta não tenha. Se as tivesse, provavelmente não teria sido Ministra de Minas e Energia, área pouco frequentada por mulheres, Ministra da Casa Civil e, finalmente, presidenta da república. Dilma é discreta. Pouco se sabe de sua vida particular. E pouco ela fez pra alterar as relações domésticas que, em geral, são a raiz da opressão feminina. Como mulher, Dilma foi quase invisível. Talvez por isso mesmo, menos humana. Mas ainda assim gera desconforto. Se ela não empolga, também pouco se pode criticá-la. Suas críticas são mais por omissão do que por erros – embora estes também haja. Talvez, para um segundo mandato, eu diria: solte-se, Dilma! Libere-se!
Pois Marina promete mudar sem desconfortar. Se ela vencer as eleições, o mundo não acabará, obviamente, nem o Brasil irá para um poço sem fundo – se o mundo conseguiu sobreviver a George W. Bush na presidência dos EUA é porque é preciso muito para arruiná-lo de vez -, mas certamente a política brasileira se infantilizará. Isso representa, sem dúvida, uma mudança ao governo que está aí. Mas para pior. Por isso escolho Dilma, esperando um candidato melhor nas próximas eleições. Em regimes democráticos, temos de nos acostumar a não ter candidatos fantásticos em todas as eleições e nos mobilizarmos de acordo com os que se arriscaram nas que se colocam. Espero que ela vença e, dessa vez, me surpreenda, como Lula surpreendeu positivamente no segundo mandato. Aos que votarão em Marina e realmente prezam a política, e não simplesmente odeiam o PT, espero que saibam o que estão fazendo.
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