[Danielle Magalhães]
rua de nome travessa. muito mais que travessa: peixe. travessa dourado, urros de amor, sexo vadio na casa da frente, beco estreito de paredes ressonantes. aqui até as pulgas ouvem. cadê a lua? pontal do atalaia, nudez azul acasalando com o infinito negro. gota que desce no rosto ultrapassando linhas, sulcos, limites, respeitando somente a gravidade. favela praia grande avenida iluminada time lines gentebook mercedes benz cachorrada o ensaio sensual da mistura separada. aqui os bambas são os mergulhadores. eles chegam do trabalho e dizem “acabei de chegar do mar”. tem um aqui que batiza geral e o patrão paga pra ele o salário de vinte reais por batismo. o cara enxerga a lava endurecida do vulcão adormecido perto da praia brava, diz que debaixo d’água esquece de tudo, que não precisa lembrar que tem vida aqui em cima. ele, que quando faz caipirinha coloca pouca cachaça e muito açúcar, diz que quando tiver uma filha ela vai se chamar vitória, tal como sua vida. A vida, na parte rochosa de sua superfície,/ torna-se real e porosa, uma frase /dita por ninguém, dita pelos vazios subterrâneos / que ofertam as águas das alturas, filtradas,/ ao manuseio convergente da terra.[i] aqui tem o mar mais bonito do rio de janeiro e em cada esquina um carro abandonado e depenado. verde esmeralda é a cor da tua vista. e aqui ela só enxerga uma única linha. o limite mais bonito é também o encontro mais bonito: mar-e-céu. enxergar o mundo com olhos de boa vontade. a ilusão de ótica é que é apenas ilusão. o olhar se faz é no escândalo. no escândalo que a vida se apresenta nua. no limite, na curva que a montanha faz no mar. na nudez dos corpos na cintura sacolejante da vida. diante de toda impossibilidade, até com essa chuvinha o mar tá bom pra pegar peixe. mas o vento que vem do leste hoje não tá bom pra mergulho. rema daí, rema daí! a vendedora espanta os cães que se aconchegam na sombra da barraca de sol e desdenham da comida que a eles é oferecida: só querem sombra. aqui o oásis mata a tua sede saciando duas ânsias pelo preço de uma. nele tem cerveja e dele pode se avistar o portal que dá acesso. só separado pela fronteira de grandes e musculosas coxas que como portas de entrada convidam à abertura e demarcam o desconhecido. só o zoom da lente da câmera enxerga mais que teus olhos sedentos, vidrados no ponto de fuga. ali em cima, no pontal, os habitantes de acrópoles gregas desfrutam da melhor vista da cidade. pagaram caro pela propriedade, que nela já estava incluído o preço da vista. o cara desce as escadarias cansado de descer e diz que casa no morro tinha que ser mais cara. (o morro que ele desce é o da favela e ele não tem a vista de quem paga a vista no pontal). para descer até o buraco você não paga nada. o útero mais convidativo é uma que tem no canto, a do forno, que para adentrar não te cobra nem um centavo. no entanto, a penetração é lenta. é preciso fôlego nos pulmões, força nas pernas, às vezes é preciso se render ofegante e continuar a. a subir o íngreme e pedregoso caminho livre à mata alta que roça no corpo enquanto sobe e sua, até o pico. até os olhos revirarem ao céu porque só há céu. até se revirarem no encontro mais animalesco e gratuito de três corpos que disputam o mesmo lugar no espaço. que se rendem à luta e compactuam com a co-existência de braços diferentes que enraízam deságuam e jorram. o caminho da descida ao útero é mais embaixo. há nele um homem e duas mulheres que se iriam se chocar, mas se miram em silêncio. ele pára por medo, ela hesita. ele recua, por medo ela recua. ele pára. a outra diz, dá passagem. ele continua, então. a subir. elas continuam, então, a descer. ele com olhos alucinados e já fundos, não mais revirados, em calafrios. elas com febre na boca e chamas nos olhos, com voracidade nas pernas, com a vida no punho e as mãos úmidas ansiando pelo encontro dos ventres. dois corpos indo em direção à comunhão com a respiração mais profunda do mundo. a que mais ofega, a que mais hesita, a mais violenta. aqui, o ativo é excitado a porrar seus próprios limites se quiser cavalgar por sobre a feracidade da boca que natural e facilmente o engole. sem esforço algum, o gozo da boca é sua simples existência. imensamente, colossalmente, grandiosamente, só é. sem pagar nada por existir. aqui, se debatendo para sobreviver ou se debatendo para se sentir vivo. aqui, sem debater, sem transgredir limites, sem ir fundo, o gozo é garantido. aqui, para gozar, é preciso no mínimo ser voyeur.
P.S.1: batismo é quando o mergulhador ensina a alguém, que nunca mergulhou, a mergulhar pela primeira vez. quando ele “inicia”, por assim dizer, a pessoa leiga às profundezas do mar.
P.S.2: ao olhar alheio tudo respira.
P.S.3: só há o eu porque há o limite, entre o eu e o outro. olhar, ouvir, ir ao encontro deste limite é respirar. ainda que submerso, no limite.
Arraial do Cabo (RJ).
[i] PUCHEU, Alberto. A vida é assim. Disponível em: http://www.albertopucheu.com.br/pdf/livros/a_vida_e_assim.swf