Carta para uma esquerda sem bússolas
[Rafael Zacca]
É perfeitamente possível que cada um de nós sinta orgulho e vergonha por essa Copa do Mundo sediada em nosso país. Antes e durante esse campeonato mundial de 2014, todos nós tínhamos motivos para estarmos empolgados e desesperados, ao mesmo tempo. É certo, porém, que não tínhamos as mesmas motivações. E as palavras “orgulho” e “vergonha” significam coisas muito diferentes de acordo com a posição que tomamos em nossa sociedade.
Uma das maiores lições de Karl Marx foi ter percebido que não devemos tomar nenhuma característica humana como inata. Nada deve parecer natural. Os homens comem, afirmaria Marx, mas não comem da mesma maneira. Eles nascem, gozam e morrem; mas, certamente, nenhum deles o faz de modo semelhante. Não há nada de natural em ter de se alimentar ou ter relações sexuais – as humanidades precisam de muitas coisas em comum, mas não precisam fazê-lo da mesma forma, nem necessariamente das mesmas coisas. O verbo comer não possui tradução apenas de uma língua para outra, mas também de um tempo histórico e de um espaço geográfico para outro.
Se quisermos classificar a burguesia brasileira, podemos dividi-la, grosseiramente, em duas: a aristocrática e a empresarial. Ambas tiveram muito medo de que o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva chegasse ao poder, mas não o temiam da mesma forma. O resultado do governo PT – que, como boa socialdemocracia, optou pela conciliação (e não pela luta) das classes, embora levasse demagogicamente o nome de Partido dos Trabalhadores – foi a exposição dessa divergência.[1]
A burguesia aristocrática – e, injustamente, mas para facilitar a reflexão, incluo entre eles a burguesia imbecilizada pela desinformação intelectual e seus assessores informais de imprensa, isto é, a grande mídia nacional – continuou detestando que um Partido dos Trabalhadores tivesse chegado ao poder. Um operário na presidência foi um insulto tão grande quanto ter que dividir os assentos do avião com negras senhoras cheirando como as gentes das feiras. A dicção de Lula, ainda que maquiada por uma corja inteira de estetas, será, por muito tempo, aquela que mais trará arrepios a essa classe. Dilma Rousseff foi herdeira do ranço que caía sobre a imagem de Lula. A importância histórica de suas imagens – mais que de suas ações – é inegável.[2]
A origem do PT e o ranço da burguesia aristocrática levaram parte da esquerda nacional a depositar esperanças no projeto reformista inaugurado com Lula. Em todo o mundo, desde o século XX, conhecemos o resultado a que se pode chegar com um projeto socialdemocrata: um crescimento radical da classe média, sem eliminação da pobreza nem da miséria, e com a permanência de uma série de relações de dominação.
Mesmo com todos os projetos reformistas – que dão calafrios, desta vez sim, em toda a burguesia – o que temos visto é uma série de acontecimentos injustificáveis, e permanências constrangedoras. Os projetos de assistência familiar certamente foram importantes para grande parte da população sair da zona de miséria, mas a miséria não foi eliminada e as relações de trabalho de grande parte dessa população ainda são sub-humanas e miseráveis. Os programas de educação facilitaram o acesso de muitos trabalhadores à universidade, mas, a exemplo da reforma da educação pública básica ocorrida no século XX, estão sendo preparados apenas para serem operários competentes de um mercado exigente, mas não tão rigoroso na repartição de seus lucros e na oferta de condições de trabalho. O projeto de educação das universidades e das escolas não aponta para a emancipação do homem, mas para a preparação servil de sua subjetividade. A conciliação das classes cada dia torna mais evidente os seus limites.
Na Copa do Mundo de 2014, esses limites ficaram claros. A conciliação das classes é impossível, e nos momentos de crise, são os proprietários os que têm direito ao crédito, debitados sempre na conta dos não proprietários. A outra burguesia nacional, a empresarial, muito mais competente, percebeu o jogo político no qual o PT se colocou a partir de 2002, e soube jogá-lo. Essa burguesia não está descontente. No capitalismo radical, o que se orienta realmente pela reprodução do capital, as relações humanas são realmente esquecidas; para a burguesia empresarial, pouco importa se ela se senta ao lado de um homem que comerá uma coxinha de frango, ou se tem de dividir um hotel com pessoas que não conhecem a etiqueta requintada dos tempos idos. Essa burguesia não cultiva uma vaidade óbvia; a única beleza que a sacia é imaterial. Isto é, a cifra. Esse gosto foi atendido; para saciá-lo, as relações promíscuas entre o público e o privado fluíram naturalmente nas cidades que sediaram a Copa.
Certamente as duas burguesias tiveram medo antes do grande evento. Tinham medo da ineficiência. Somava-se à aristocracia o receio do vexame internacional –a nobreza nacional só enxerga a beleza na civilização da qual herdou os certificados de propriedade, e sonha ainda com os castelos que a própria burguesia europeia já deixou de lado. Esses reis e rainhas fizeram coro com os protestos à copa, embora não gritassem as mesmas coisas, e tenham vaiado Dilma Rousseff na cerimônia de abertura por motivos muito diferentes das vaias que a presidência recebe nas ruas. Para as verdadeiras raposas do capital nacional, porém, o medo era simplesmente o da ineficiência – tinham medo também de uma hashtag seguida do grito de ordem “não vai ter copa”. Essa hashtag poderia ser um bloqueio incômodo à circulação livre de mercadorias que acompanham os grandes eventos.
Para os poucos militantes do PT que ainda se mantém à esquerda, o medo é o retorno do Partido da Social Democracia Brasileira (que, descaradamente liberal, de socialdemocrata só tem o nome) ao poder. Abdicaram assim da luta pela emancipação para lutar pela permanência das conquistas obtidas nos últimos doze anos. Mas a que custo? No jogo das conciliações, o PT se transformou progressivamente em um partido a serviço da burguesia nacional e internacional. No contexto da Copa, isso se transformou em um desejo de que ela acontecesse da maneira mais competente possível, por cima de qualquer obstáculo que se pusesse em seu caminho.
E no quesito competência e eficiência, a Copa do Mundo foi um sucesso. Mostramos ao mundo que todas as grandes empresas podem investir aqui: temos um aparato policial e judicial pronto para tratar as relações de trabalho (e qualquer reinvindicação exaltada por melhorias) como se tratam casos criminais; temos mão de obra qualificada especialmente para o mercado, em detrimento da liberdade de pensamento e de autoformação; e temos a maior conciliação de classes desde Getúlio Vargas (sem aquele protecionismo excessivo antiquado) o que permite um ambiente de trabalho sempre produtivo, sem as perturbações que o desmascaramento da luta de classes promove. O PT mostrou que pode ser tão eficiente quanto qualquer partido neoliberal na promoção da nação como um grande palco dos maiores acionistas mundiais. No fundo, é esse o orgulho que os militantes do PT e o empresariado competente do Brasil partilham.
As esquerdas que optaram pelo engajamento na luta de classes, porém, tomam todos esses fatos como motivos de vergonha nacional. É um vexame nacional o Estado de Sítio promovido pelo esquema de segurança na final da Copa para velar os gritos de protesto que seriam projetados contra a festa dos fogos de artificio. São vergonhosas as prisões arbitrárias que ocorreram no dia 12/7/2014, em uma tentativa covarde de desarticular o último protesto e intimidar ativistas, com a desculpa ainda mais esfarrapada da prisão preventiva.
Aquele que não sente o embaraço generalizado por essa Copa, pelo modo como foi conduzida desde seu início até o fim, não é capaz de sentir o orgulho que toma conta dos que fazem frente ao avanço das forças destrutivas. Os militantes do PT que ainda acreditam fazer parte de um projeto contra-hegemônico não percebem que seu partido está, para além de qualquer moral (política é feita com posições, e não com opiniões), a serviço dos inimigos que em 1980 juraram combater. Entre os gritos de “fora corrupção” de uma classe média alienada politicamente, e os de “Dilma de novo” da militância cega por um ideal que há muito não é perseguido, está o silêncio malandro da grande burguesia empresarial.
Em 2002, esses militantes ingressaram em uma viagem em direção a uma estrela vermelha, mas – talvez devido ao carisma do capitão da embarcação, que certamente possui a bela dicção de quem lutou sem descanso por muito tempo – esqueceram-se de levar cartas de navegação e bússolas. Acreditam piratear o ouro para os desprovidos, mas não enxergam no alto do mastro a bandeira da guarda nacional tremular ao lado de um grande cifrão. Enquanto não puderem compreender que a burguesia nacional está dividida, e que enquanto uma brada ferozmente seu rancor contra o atual governo, a outra sorri nas sombras, continuarão a lutar a favor de uma ordem social que se beneficia do fato de a estrela vermelha ter se fixado, inalcançável, no horizonte do realismo que diz: “vamos aos poucos” e “dos males, o menor”.
[1] Assim como em um país existem muitos projetos diferentes “à esquerda”, não deveria ser de espanto que houvesse muitas “direitas” em disputa. Principalmente no contexto de um país que cresceu tanto economicamente, com classes dominantes historicamente divididas desde o fim da escravidão.
[2] Não devemos superestimar essa conquista. Os militantes que bradam demais essa imagem, como se Lula e Dilma representassem todos os oprimidos no país, se esquecem que a noção de que existem classes não pressupõe que a luta se dê entre apenas duas delas; Lula e Dilma ainda não representam muitos que também sucumbem – não da mesma forma – em território nacional, como os favelados, o lumpensinato, os índios, os quilombolas, apenas para citar os mais óbvios.
Texto ótimo e esclarecedor. Muito bom para se ter uma noção de como se dá a organização política a partir das classes sociais. Ademais, está na hora de fazer louvações incondicionais a tal ou qual político, reconhecendo as suas qualidades e, também, os seus defeitos.
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