[Rodrigo Heringer]
Recentemente precisei voltar a um livro que li há muito tempo sobre a Tropicália, e me deparei com a imagem de algumas figuras de grande projeção na música nacional segurando uma faixa durante a passeata dos cem mil, em 1968. No objeto ostentado por esse grupo, os dizeres: “artistas e intelectuais”. Me deu um tremendo nó no estômago.
A palavra “intelectual” já se encontra um tanto fora de moda. Apesar de relativa recorrência, sinto um certo pudor em sua utilização, talvez pela discrepância cada vez mais óbvia entre significado e significante. A sua companheira de passeata “artista”, porém, continua na crista da onda, utilizada, ingenuamente, com as mais nobres e sinceras intenções.
Se por um lado tal designação leva a uma idealização dos “artistas” e a uma suposta elevação dessa “classe” a um patamar quase sobrenatural, por outro se presta à justificativa de um não reconhecimento profissional da mesma, atribuindo às “artes” características que não lhes são distintivas. Qual seria a diferença entre um “artista” profissional e um profissional qualquer no mundo atual? O que é inerente à esse grupo tão especial que lhe deve garantir uma alcunha específica (e, aparentemente, tão positiva)?
O processo histórico de divisão do trabalho possibilitou o surgimento gradual de profissões até então inexistentes. A “arte” no mundo burguês ganhou status de trabalho, remunerado e reconhecido segundo lógicas específicas, mas que nem por isso deixa de seguir as regras básicas de um trabalho “comum” inserido na lógica de produção capitalista. Na sociedade contemporânea podemos afirmar com certa segurança que o entretenimento e a cultura se apresentam como necessidades reais, o que é evidenciado nas quantias exorbitantes de dinheiro que permeiam a indústria cultural. Tal constatação nos impossibilitaria defender a idéia de que as profissões relacionadas às “artes” são, ainda que utilitariamente falando, menos “necessárias” que quaisquer outras. O ator “vende” sua performance e o pianista “vende” o seu tocar, por uma quantia variável e, em geral, baixíssima (Ave Maria!).
A atribuição ao “artista” de um dom ou um talento sobrenatural, algo quase biológico, dá a entender que a arte é um elemento que vem coladinho ao nosso genoma, uma dádiva, um poder extraordinário que recebem pessoas especialíssimas (ui!). Os próprios “artistas” são grandes responsáveis pela reprodução de tal idéia, mesmo porque é muito mais sensual responder como um ser dotado de super-poderes que como alguém que ficou ralando uma vida para se chegar a um certo grau de malemolência “artística”, não é mesmo? Então, amiga, se você já foi vítima de um escritor lhe dedicando uma linda poesia de amor alegando que essa obra surgiu de um estalo, em um surto de inspiração, espero imensamente que a verdade contida nessa afirmação seja maior que a chance de ele te conquistar com esse lero-lero. Conversa fiada.
Não há “artista” no mundo que seja muito habilidoso em uma determinada tarefa e que não tenha estudado muito para desempenhar aquela função com grande desenvoltura. Entendo aqui estudo” como algo mais amplo que o significado que atribuímos a esta palavra no senso-comum: um músico estuda música ao escutar música, ao falar sobre música, ao tirar músicas de ouvido, ao praticar seu instrumento, ao refletir sobre suas práticas musicais, ao dançar e ao desempenhar diversas outras funções que lhe darão suporte à sua prática profissional. O que se esconde por trás de um grande dançarino é um uma grande imersão naquele universo “artístico”, que permitiu a esse profissional uma especialização e o possibilita fornecer uma mão de obra extremamente qualificada no momento de uma eventual performance.
Não há mágicas. Alguém houve qualquer pessoa falar em dom para aprender português? O português é um idioma o qual todos os inseridos em um contexto no qual ele é utilizado podem, e de certa maneira devem, aprender. A música, enquanto linguagem, também pode ser acessada por todos, desde que todos se proponham e tenham condições favoráveis a tal acesso. Se o dom/talento para a música existe (como vão afirmar alguns biólogos e psicólogos mais fundamentalistas), eu não o possuo, e, mesmo assim, fui capaz de aprender uma quantidade suficiente dessa “arte” que me permite utilizá-la a fim de me divertir e até de me sustentar nesse mundão tão hostil. Não se preocupem com o talento, o que vem pra além dele é o mais difícil, mas também o mais legal!
O grande nó a se desatar aqui está na constatação de que tal entendimento do “artista” como um ser sobrenatural só não está mais disseminado que o pavor que alguns “artistas” têm de serem tratados como seres-humanos comuns. Isso complica um pouco as coisas. Eita! Quando o movimento negro no Brasil percebeu que as categorias “moreno” ou “mulato” serviam mais para velar uma cruel cadeia de dominação do negro pelo branco, tratou logo de revisar a validade absoluta desses termos. Acredito que as categorias, entendidas ao menos aqui como construções sociais, devem ser combatidas ou afirmadas de acordo com os interesses sociais em um dado contexto. Para os “artistas” o fetiche em torno de tal designação é algo extremamente difícil de ser superado, mas extremamente necessário para um avanço verdadeiro e democrático (essa palavra é muito importante pois sempre haverão alguns poucos muito bem-sucedidos no meio) das relações profissionais que permeiam o mundo das “artes”. Ou reconhecemos “arte” no trabalho dos médicos, garis, enfermeiros, motoristas, prostitutos, advogados, padeiros, engenheiros, vendedores, garçons e políticos, ou nos esforcemos em abolir de vez a designação “artista” para as profissões as quais normalmente nos dirigimos através dessa alcunha. Não quero aqui afirmar que não existe nenhuma especificidade nestas últimas profissões em relação às demais, mas que tais distinções passam longe das que são normalmente atribuídas aos “artistas” no uso corriqueiro do termo.
Amigos “artistas”: caso um dia consigamos acabar simbolicamente com os “artistas” (o que eu duvido muito), certas regalias às quais muitos de nós valoriza bastante podem cair por terra, tais como entrada livre em eventos “artísticos”, tietagem, circulação em ambientes sociais privilegiados, entre outras. Mas não se preocupem! O que virá de lindo e maravilhoso em consequência disso será muito mais relevante do que esses pequenos agrados aos quais estamos habituados.
Amigos “artistas”: não vejam meu discurso como pouco romântico ou realista demais. Sou um apaixonado incorrigível. Acredito porém que, mais importante que as “artes” é a vida, apesar de reconhecer a relevância primordial das primeiras no amor que eu tenho pela última.
Amigos “artistas”: precisamos acabar com o “artista”, ao contrário do que fizeram na passeata dos cem mil, mas não levem isso como um discurso de guerra. A morte do “artista” jamais acarretará na morte do artista. Amo vocês também.
Não há mágicas. Alguém houve qualquer pessoa falar em dom para aprender português? O português é um idioma o qual todos os inseridos em um contexto no qual ele é utilizado podem, e de certa maneira devem, aprender.
Falando em aprender português não é ” Alguém HOUVE, e sim OUVE” com H o sentido é de HAVER.
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Bruna, muito obrigado pelo toque. Escrevi o texto, inicialmente, como um comentário simples no facebook. Acabei deixando passar batido alguns erros que poderiam ter sido corrigidos com uma revisão simples, anterior à publicação. Farei a correção em caso de futuras divulgações.
Fico feliz, ainda assim, que você tenha entendido exatamente o significado delineado pela errônea inflexão do verbo haver no contexto. Isso mostra como o aprendizado do português, assim como o de quaisquer outras linguagens, deve levar em consideração questões de outra natureza que não apenas a formal. O êxito na transmissão da mensagem parece ter sido semelhante ao que teria se a tivesse realizado da maneira gramaticalmente mais correta, o que diz muito sobre a “arte”, em todas as suas manifestações.
Críticas sobre o conteúdo também serão extremamente bem-vindas, ainda que eu não desconsidere de maneira alguma a importância da forma.
Abs,
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Bruna, muito obrigado pelo toque. Escrevi o texto, inicialmente, como um comentário simples no facebook. Acabei deixando passar batido alguns erros que poderiam ter sido corrigidos com uma revisão simples, anterior à publicação. Farei a correção em caso de futuras divulgações.
Fico feliz, ainda assim, que você tenha entendido exatamente o significado delineado pela errônea inflexão do verbo haver no contexto. Isso mostra como o aprendizado do português, assim como o de quaisquer outras linguagens, deve levar em consideração questões de outra natureza que não apenas a formal. O êxito na transmissão da mensagem parece ter sido semelhante ao que teria se a tivesse realizado da maneira gramaticalmente mais correta, o que diz muito sobre a “arte”, em todas as suas manifestações.
Críticas sobre o conteúdo também serão extremamente bem-vindas, ainda que eu não desconsidere de maneira alguma a importância da forma.
Abs,
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Ops, *flexão.
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