[Black No Mucho]
De certo ponto de vista, me junto àqueles que se recordam de uma vida melhor na época da ditadura.
Ao que me lembro, fazendo sol ou chuva, subindo ou não a gasolina, e chovendo ou não no nordeste, minha vó me dava dinheiro pra comprar cocada. Pela logica de uns ou outros, o trocadinho devia vir do Figueiredo. Obrigado general. Especulo porque não sobrava algo também para os 10 milhões de famélicos no nordeste que foram a óbito no período. Mas duvido que, caso os augustos generais do exército voltem ao poder, topem pagar minhas dividas, talvez nem mesmo me deem doces. Também concordo que experimentava maior “sensação de segurança”. Afinal, qualquer coisa era só correr pra barra da saia de minha mãe, e olha que lá em casa não tínhamos sempre desses luxos de merthiolate, éramos uma família de mercúrio-cromo.
É difícil não achar que se vivia melhor naquela época. O problema é que isso é mero saudosismo da própria infância, ou da própria juventude. Como não compreender que aqueles velhos septuagenários que pedem a volta das “Forças Armadas”, que carinhosamente chamam de FFAA (custei a entender a sigla), querem as possibilidades de seus vinte anos de volta. Acho tal senilidade válida. Fofa mesmo. Boa passagem e terra leve é o que lhes desejo, c’est La Vie ou em tupi “perdeu preiboi”.
Com relação aos acólitos de meia idade do integralismo (sic), é mais complicado. Sofrem de saudades de um pai grandão que tomava conta de tudo e colocava comida na mesa. É um sentimento meio universal entre os homens, que invaria mesmo pela orientação sexual. Que nossos pais foram maiores do que nós. Somos todos pequenos zeuses admirando o falo de Urano e duvidando de tê-lo matado realmente. Complica-se com as mulheres. Elas, para desespero da psicanalise de boteco, coexistem em um espectro amplo, que vai das que sentem saudades do glamour e segurança do passado (essas se parecem com os homens, e tem memorias estranhas do grande falo de Urano), até aquelas que invejam a autonomia pélvica das jovens. Dilemas de quantidade versus qualidade de falos. Entre outras, existe a minoria que não curte o falo, mas essas, parafraseando Sartre, não acreditam no falo, mas ele as incomoda muito. De toda forma a totalidade de uma geração dirá inevitavelmente que os seus jovens não conheceram Urano, que era o grande.
Espero que todos saibam quem é Urano, Deus primal e cosmológico grego, devorador de filhos, deflorador e fertilizador de Gaia, a Terra. Deus de campônios, morto pelo seu filho Zeus, deus mais urbano, civilizado. Parricídio ficcional, fixando em mito um dos mais emblemáticos processos de urbanização radical, uns mil anos antes da manjedoura demográfica de Belém.
Devaneando, pergunto-me como estará a produção de narrativas agonistas atualmente em uma China que pretende erguer uma São Paulo por ano e levar 90 milhões de camponeses para a cidade nos próximos quatro anos. Os filhos operários terão saudades dos tempos de seus pais plantadores de arroz? Neorromânticos talvez?
Voltando ao nosso ponto. A saudade da dita dura. Entre aqueles que berram por uma revisão da lei da anistia e aqueles que chamam Dilma de terrorista, a diferença é apenas sobre de qual Urano estão falando. O Urano guerrilheiro, esse guevariano belo herói derrotado? Ou o invencível solar fardado, que ultimamente tomou a face de Wagner Moura? Ambos os grupos embebedando-se do mito de uma forma que incomoda até um confesso irracionalista como eu. Em diferentes graus, estão dispostos a sacrificar a população para reviver-se em mitos. Pela chance de caber na cueca velha e puída do saudoso Urano.
***
Cada vez que vejo militante de esquerda, de partideco de retaguarda, confessar que gostaria de por fim ao pseudo-governo trabalhista, que torce pela volta de uma autêntica direita ao executivo, podendo assim recomeçar a marcha histórica da luta de classes, tenho vontade de dar-lhes uns tapas, povinho emasculado… Intrigando contra o business popular. Mas hoje eles não são pauta, raramente são.
Por outro lado só quem não compreendeu a maneira como o Exército foi excluído da sociedade civil nos últimos 30 anos, na forma como foi tratado como um cachorro velho que se deixa morrer dentro da casinha. De como é totalmente despido de quadros, e mesmo da possibilidade de formar quadros e reais lideranças, pode pretender que ele venha a ter qualquer papel diferindo daquele de leão de chácara ocasional, que vem desempenhando. O Brasil, é fato, não possui mais uma aristocracia militar (mesmo que no Rio exista uma que é paramilitar). Generais não serão, na atual conjuntura, chamados a conciliar.
***
Novamente, de certo ponto de vista, o Golpe de 64 foi uma bem sucedida intervenção aristocrática no tardio e acelerado processo de urbanização brasileiro do século XX. Similar, em alguns pontos, àquelas realizadas durante o XIX, especialmente na declaração de independência e na proclamação da república. Tivemos uma declaração e uma proclamação, nada de tomada de bastilhas e barricadas para os brasileiros. Nós três casos tratou-se de reação precoce devida ao medo do vir-a-ser do demos, seja este sob o nome de plebe, de escravos, populacho, massa ou pobres, supostamente prontos a serem liderados por ideologias gringas iluministas, liberais ou comunistas. Talvez por considerar este um país sempre retardatário, atrasado, nossas elites se especializaram em fazer antes que o povo o faça. O tal do “contra-golpe”, que beira o delírio.
Usando de uma ideia-álibi, periodicamente declara-se refundando o país. A superioridade da racionalidade esclarecida, imputada como mérito inerente da vontade conciliada dos “homens de bem”, se assenhora sobre o poder insano da multitude, da rebelião da massa. Na prática, apenas assume-se o controle da inserção brasileira em uma nova conjuntura tecnológica internacional externa, ostensiva e julgada inevitável. A cada grande evento politico-histórico brasileiro coincide, em parte do mundo, a difusão de uma comunicação mais eficiente, mais rápida, mais barata, mais popularizada, empoderadora do demos e da expansão de direitos que acompanha isso. A abertura de portos e ferrovias. A eletrificação e o telex. O Radio e a TV. E cada momento desses foi contido, tolhido e conformado, reduzindo, por consequência, o impacto da correspondente geração de direitos (políticos na independência, econômicos na republica e sociais na ditadura). O importante sempre foi preservar o nosso Estado Autoritário de Direito, travestido hora em democrático, hora em ditadura. Alienar o sans culotes, os ditos ignorantes, os vagabundos, os traficantes, bolsa-esmoladores, os crentes e os ouvintes de lepo lepo.
Sobre as gerações de direitos humanos, supostas ondas sucessivas de expansão da cidadania no mundo contemporâneo, recomendam-se os textos clássicos de Marshall e, entre nós, de Murilo de Carvalho. Sobre o nosso permanente “Estado Autoritário de Direito” quem parece melhor compreendê-lo é o historiador Daniel Aarão Reis. O que chamo de arranjo conciliatório, e que podemos considerar historicamente a estratégia política do governo aristocrático por excelência, é a habilidade de impor “concílios”, ou seja: governos calcados não na liderança/arbítrio supra-classes de um soberano ou da vontade popular, mas pela negociação restrita e autocontida entre “notáveis”. Trata-se de uma solução oligárquica que visa eliminar a possibilidade de qualquer da três vias de reforma: um governo verdadeiramente “moderador” nos termos conservadores, ou “revolucionário” nos termos socialista, ou “democrático” em termos liberais. Restando o que muitas vezes chamamos de patrimonialista, quer dizer: um quadro em que o bem publico (material ou imaterial) se confunde com o bem privado de determinada porção da sociedade, que governa por conciliação, tendo por base a postergação, ou pelo menos, a diluição controlada da modernização. Obviamente, para tanto é necessário que as oligarquias se convertam em pseudos focos de cultura, e o restante da sociedade seja descartada sobre a alegação de barbárie.
Pode parecer, mas o regime militar encerrado em 85, não foi o ultimo arranjo conciliatório. À derrubada do primeiro (e, diga-se de passagem, incompetente) presidente diretamente eleito, seguiu-se a formação de novo arranjo conciliatório. Seus operativos, ao colocar na mão de cada pobre um celular sem créditos e um computador com uma internet sem banda, defletiu uma conjuntura, onde tais aparatos, devidamente implementados, poderiam ter ajudado a consolidar direitos pós-materialistas, como aqueles ligados ao meio-ambiente e aos bens culturais.
Vários eventos no mundo atual parecem apontar para uma nova onda de direitos. Principalmente as chamadas primaveras e occupy´s. Eles não dizem respeito à crise da representação, ou à corrupção política. Eles tratam do fim do patriotismo, mesmo que não necessariamente do nacionalismo. Falam sobre liberdade para se estabelecer profissionalmente e civilmente. Estão ligados intimamente à locomoção, em seu sentido físico, mas também digital e “espiritual”. Populações do mundo todo parecem desejar uma nova dimensão de “hapeas corpus”, de caminhar mais livremente por cidades, continentes e virtualidades. É sobre isso, por exemplo, de que tratam os debates sobre passe-livre, bicicletas, marco civil da internet, descriminalizações diversas, abolicionismos penais, laicidade e médicos cubanos. Não é sobre uma Ucrânia europeia ou russa, é sobre ucranianos escolhendo entre fronteiras para transacionar.
Mas nosso problema é mais crítico do que os da triste Ucrânia. A pergunta que nos cabe é: num país onde nenhuma das gerações de direitos civilizatórios logrou implementação adequada, como recepcionar essa nova demanda emancipatória? E como fazer isso a despeitos de nossas oligarquias, até aqui historicamente tristemente triunfantes?
Sugestões de leitura:
CARVALHO, José Murilo de. (2001). Cidadania no Brasil – o longo caminho. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira.
MARSHALL, T.H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
AARÃO REIS, Daniel. Ditadura e Democracia no Brasil, Zahar, 2014.
RODRIGUES, José Honório. Conciliação e Reforma no Brasil: um desafio histórico-político. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira, 1965
MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil ( 4a. edição pela Topbooks, outras 3 Civilização Brasileira).
DEBRUN, Michel. A Conciliação e Outras Estratégias. São Paulo, Brasiliense, 1985.
Leia outros textos de Black No Mucho na Revista Pittacos:
Barbara Altstadt parte da exposição coletiva ” A cueca uma experiencia intima”
perspectiva interessante
CurtirCurtir