“As Marias”

[Dalton Trevisan]

Maria, FILHA DE MARIA, a filha de Maria, tem trinta e um desgostos. Lava a roupa, lava a louça, varre que varre, e a patroa —Jesus Maria José! — a patroa ralhando.

Aos sete anos, foi dada pela mãe, à primeira patroa. Mulher cheia de filhos, não podia com mais um: deu a pobre da Maria.

Morou sempre em casa estranha, dormindo em cama de vento, comendo em pé ao lado do fogão. Trabalhadeira, era de confiança e não tinha boca para pedir. Pálida, vivia debaixo de chá de ervas. Dormindo, rilhava os dentes, com as bichas alvoroçadas. Maria, ai dela, nunca não soube qual o gosto de uma maçã. O guarda-comida trancado a chave, ela roia um naco de rapadura, escondida sob o travesseiro.

Aparecia de lenço amarrado na bochecha intumescida, usava cera milagrosa para dor de dente, até que perdia o dente. Era vagarosa por culpa de uma unha encravada. De lidar na potassa, partiam-lhe os dedos e sofria de panarício. Nunca se despedia, era despachada pela patroa, aborrecida de suas aflições e de sua cara de pamonha.

Ao rolar de uma para outra casa, engordava com os anos, gemia de dor nas cadeiras e enleava-se no serviço. Sua alegria era lavar os cueiros dos bebês. Ah, mas beijar a criancinha . . .

— Você está proibida, ouviu, Maria?

Criada não conhece o seu lugar, podia ter alguma doença.

Era moça séria, que não ia ao baile com as outras. No carão anêmico esfregava papel de seda escarlate molhado na língua e, mal aparecia à janela, a espiar os soldadinhos verdes, a patroa ralhava:

— Maria, já escolheu o arroz?

— Maria, já passou a roupa?

— Já encerou a casa, á Maria?

Areada a chapa do fogão, guardada a louça, varrida a cozinha, chegava-se medrosa à porta. O soldado rondava, parava, batia continência. Tinha pressa, como soldado estava sempre indo para a guerra: logo queria pegar na mão e cobrir de beijos.

— Deus me livre, podia ter alguma doença.

Maria faz o sinal da cruz: a boca só o marido é que iria beijar.

Onde estão os praças de cavalaria, que já não tilintam esporas na calçada? Trinta e um anos de Maria. Eis que se queixa de não ir passear com a Marta.

— Pois vá chorar no quarto — ordena-lhe a patroa. Não suporto cena de gentinha.

Essa Maria, um objeto da casa, o capacho na porta, a vassoura no prego.

Maria não vai ao circo, o palhaço é tão gozado.

Maria não vai ao Passeio Público ver o macaquinho comer banana.

Maria não vai ao cineminha na sexta-feira assistir ao Nascimento, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Maria, a filha de Maria, passeando no domingo com a Marta, viu o seu coração rolar do peito, e o prato que lhe escapou dos dedos gordurosos (a patroa vai ralhar?) partiu-se em sete pedaços de sangue pelo chão.

Era um cabo? Maria nunca soube de que arma. Ele falava lindo e tão difícil, puxando no xis — vixto mocinha? — que ela, a saltitar ora numa perna ora noutra, esganada roia as unhas.

— Tem gente, cabo. Você me respeite. Ó cabo.

Ele a levou ao circo e Maria entrou soberba como uma patroa entre a gentinha que fazia cena: no pescoço a velha pele de coelho mordendo a cauda. A charanga, o peludo de cara pintada, o cabo das grandes botas de general. Um palhaço chama outro de — “Gigolô” e o circo vem abaixo de tanta gargalhada. Maria simplesmente sorri, o cabo lhe tira sangue do peito.

— Ocê me deixa louco, Maria.

Sob o espanto do baleiro anunciando “Oi a bala, ói . . .” ela beijou a mão do cabo. Em nove meses Maria, filha de Maria, vai ser mãe de Maria.

Fonte: “As Marias ”   in: TREVISAN, Dalton. Desastres de amor. Rio de Janeiro, Edit. Civilização Brasileira, 1968.

Dalton Trevisan: http://pt.wikipedia.org/wiki/Dalton_Trevisan

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