[Mayra Goulart]
Gosto de ver no Oscar uma miragem na qual a indústria do entretenimento pleiteia seu reconhecimento como arte. Leiga e incapaz de distinguir entre os dois, vejo na primeira um espelho mais afinado para refletir os sonhos e ilusões do grande público, em sua relação sempre dialética com aqueles responsáveis por modelá-los. Nessa empreitada, o papel das grandes estrelas é encarnar arquétipos estéticos e comportamentais, que moldam e são moldados pelos anseios dos anônimos. Para isso, é preciso que suas imagens possam ser traduzidas em um conteúdo relativamente simples, passível de ser categorizado com facilidade pelos operadores da mídia e pelo grande público.
Nesta última edição do evento, Jared Leto, figura hypster do momento, ganhou o prêmio de melhor ator coadjuvante por seu papel em “Clube de compras Dallas” e, como era de se esperar, fez um discurso a sua altura. Demonstrando-se antenado e sensível às boas causas mundiais, declarou solidariedade às duas manifestações populares que atualmente dividem a atenção da grande mídia. Mantendo a elegância vazia dos ícones do entertainment, falou sobre os sonhadores “principalmente da Ucrânia e Venezuela”. Pouco antes da cerimônia, outro membro do seleto clube de hollywoodianos tolerados pelo público cult, Kevin Spacey, postou em seu twitter: “Venezuela não se renda, todo o mundo tem o direito de expressar-se”. Resta, ainda, mencionar o comentário da mais longeva diva pop, Madonna, que em seu instagram publicou: “aparentemente o presidente Maduro não é muito familiar com a expressão “Direitos Humanos”! O fascismo está vivo e cresce cada vez mais na Venezuela e Rússia! A Ucrânia também não está muito atrás!”.
A oposição na Ucrânia, na Síria, no Brasil e em boa parte do mundo costuma ostentar uma imagem mais cool do que os seus respectivos representantes no governo, ainda que isso pouco revele sobre suas ideias e comportamentos. Não obstante, é preciso sublinhar que encontramos no caso venezuelano um exemplo hiperbólico. O presidente, assim como seu antecessor, é feio, cafona, sempre aparece suado, mal vestido, mal penteado e fazendo discursos longos e inflamados sobre um tema que (infelizmente) saiu de moda: a luta de classes. Os líderes da oposição, ao contrário, costumam ser lindos, charmosos e bem educados; discursam sobre liberdade e advogam pela (re)união dos cidadãos sob uma só bandeira: a da Venezuela (o que explica o uso constante do uniforme e de bonés da seleção nacional de futebol por suas lideranças e apoiadores).
Em um país que já teve Miss Universo[1] como candidata à Presidência, a menção honrosa no quesito charme e beleza vai para Henrique Capriles, principal líder da oposição[2] – desde 2009 reunida na chamada Mesa da Unidade Democrática (MUD). Solteiro, filho de empresários do setor de telecomunicações e de bens alimentícios, Capriles estudou nos melhores colégios e universidades católicas do país, mantendo-se devoto praticante. Ademais, ostenta um lindo rosto e um corpo atlético – atributo muito ressaltado quando disputava a eleição de 2013 contra um adversário com câncer em estágio avançado que, em resposta, atacava sua virilidade. A disputa em questão, embora possa parecer bizarra, tendo em vista o processo de pasteurização aparentemente indispensável aos presidenciáveis brasileiros, é bem representativa do padrão consideravelmente mais cítrico, radical e estridente, dos embates situados no país vizinho[3].
Não obstante, nessa categoria, o Oscar certamente vai para o protagonista do último levante oposicionista, Leopoldo López[4]. Malhado, moreno e com um topetinho muito em moda na década passada, sobressai como sex symbol, mas não é apenas um rostinho bonito. Também proveniente de família abastada e tradicional – vinculada aos setores industrial e petrolífero (sua mãe é executiva da PDVSA) – cujas raízes remontam ao patriarca fundador e ao primeiro presidente do país[5]. Leopoldo terminou os estudos em uma escola particular norte-americana e, em seguida, graduou-se no Kenyon College e pós-graduou-se em Harvard. Após um breve período como analista da PDVSA e professor da Universidade Católica Andrés Bello (a mesma em que estudou Capriles), ingressou na política tendo sido prefeito por dois mandatos consecutivos (2000-2008) do distrito caraquenho de Chacao[6].
Além da beleza, os dois personagens apresentam uma trajetória política similar. Em 2000, fundaram juntos o partido Primeiro Justiça (PJ)[7] pelo qual conquistaram suas primeiras prefeituras[8] (Chacao e Baruta[9]). Em 2002, lideraram uma tentativa de golpe[10] contra o então presidente e estrela mor do país, Hugo Chávez[11], substituído por um nome do baixo escalão no remake que começou a ser produzido este ano, com cortes no orçamento.
Após o fracasso da iniciativa – que também contou com a participação dos estudantes e das classes médias e com a utilização da tática conhecida como guarimba[12] – ambos foram presos e rapidamente libertados pelo presidente, evitando que seus belos rostos se transformassem em símbolos do martírio da oposição no país. Em seguida, juntos lideraram o processo de recolhimento das assinaturas necessárias à convocação de um referendo revogatório, no qual foram novamente derrotados pelo herói bolivariano[13]. O mesmo plot twist é esperado na versão de 2014, restando a dúvida a respeito da capacidade do atual protagonista, Nicolás Maduro, de repetir a atuação do seu antecessor, evitando que a oposição se reúna em torno de um ícone martirizado e, quando a alternativa insurrecional estiver esgotada, derrotando-os nas urnas, no provável referendo esperado para 2016, após transcorrida a metade do mandato para o qual foi eleito – condição estabelecida pela Constituição para a instauração de um recall.
O propósito de toda refilmagem é adaptar uma produção original a uma nova conjuntura, atualizando a trama e lançando mão de novos recursos, indisponíveis no momento da primeira produção, como é o caso das crises inflacionária e cambial que afetam o país, causando problemas de desabastecimento[14]. A estrutura do roteiro, contudo, se mantém, isto é, a tentativa da oposição, que não se sente devidamente representada pelos canais institucionais, de engendrar uma ruptura, cuja legitimidade (plebiscitária) estaria na aclamação do demos reunido nas ruas. Este recurso, utilizado e institucionalizado pelo chavismo parece particularmente interessante em situações nas quais os mecanismos representativos tradicionais se encontram fragilizados ou inacessíveis.
De acordo com a cuidadosa pesquisa da historiadora Margarita López Maya, desde o início da década de 1990 a Venezuela observa um exponencial crescimento dos protestos populares, configurando o que a autora chama de política de las calles. Conforme os dados levantados, observa-se que, após o Caracazo[15], o protesto se configura como um dos aspectos mais característicos da vida cotidiana da capital do país, expandindo-se e transbordando para outras regiões também durante o governo Chávez[16].
Tal atributo, todavia, remete a uma questão ainda mais relevante para a compreensão da realidade venezuelana: a dificuldade de agregar os múltiplos interesses e identidades que configuram o tecido societário, de modo a permitir sua canalização para plano político/estatal. Sem isso, tornam-se sem sentido as instituições que deveriam acolher as disputas e embates entre os diferentes grupos sociais de modo a expressá-las através de dinâmicas político partidárias sediadas no parlamento, evitando sua deflagração sob a forma de violência social[17]. Essa dificuldade se agrava quando consideramos que as instituições democrático-liberais foram desenhadas com o propósito de representar os diferentes segmentos de uma coletividade plural e complexa, entrando em descompasso com o caráter polarizado e binário de uma sociedade cindida entre bolivarianos e oposicionistas.
A polarização, entretanto, não é obra do gênio político de Hugo Chávez, pois remete à estrutura econômica do país concentrada em uma única atividade, a exploração do petróleo. Deste modo, ainda que a desigualdade seja um atributo da própria dinâmica do capitalismo, na Venezuela ela gera um grave problema de integração social, na medida em que o afastamento (econômico, simbólico, cultural e etc) entre aqueles que se beneficiam diretamente dos recursos petrolíferos e os que só têm acesso a eles por meio de políticas públicas é deveras mais proeminente. Faltam vínculos de pertencimento e solidariedade entre as classes altas/médias e os pobres, o que confere tons viscerais aos embates entre chavistas e seus detratores.
A obra prima do comandante foi conseguir agregar este segundo grupo em torno de sua figura e, a partir da identificação das camadas populares com a simbologia bolivariana, representá-las na esfera político estatal, vencendo sucessivas eleições presidenciais. Seus antagonistas, contudo, ainda não foram capazes da mesma façanha em parte devido a falta de unidade entre as lideranças da oposição; em parte por que as classes médias e altas, embora numerosas, não correspondem à maioria da população, dificultando o acesso à Presidência e o recurso aos mecanismos plebiscitários de legitimação e revogação de mandatos.
Nesta medida, toda narrativa acerca das manifestações que sacudiram o país neste ano, deixando 20 mortos e mais de 260 feridos, deve levar em conta um cenário no qual a polarização política e a violência social se encontram num ciclo vicioso de retroalimentação[18]. Em um país no qual o poder, assim como os recursos econômicos, se encontram historicamente centralizados na figura do presidente, a oposição quando formada pelas elites econômicas mais facilmente se frustra com o papel coadjuvante que lhe cabe, daí suas violentas e sucessivas investidas contra o governo, cuja divulgação é privilegiada pela simpatia da mídia interna e internacional. Se do lado bolivariano, ainda é possível esperar por reviravoltas bem ou mal sucedidas, no que se refere ao papel da oposição, este remake provavelmente se manterá fiel ao roteiro que levou ao referendo de 2004.