[Ozorio Gagantua]
Forjei meu melhor sorriso, apertei sua mão e comecei o caminho de volta para casa. Não. Não eu.
Segue o relato de Ozorio:
Para o Azeredo, funcionário graduado, mas já um pouco ostracizado, há dois tipos no trabalho: os grunges e os psicodélicos. Os psicodélicos eram mais antigos, mais efeminados, e davam mais medo. Os grunges – como eu, parecem pedir desculpas o tempo todo, mas, para Azeredo, obvio psicodélico, somos os sonsos.
O trabalho nunca foi simples. Não vai servir se tudo der errado. É preciso que QUASE tudo de errado. Apenas os sem habilidade criavam problemas que terminavam em tragédias. Sublime é o problema que não termina. Por isso caldeirões pra cozinhar os ossos aos poucos. Jogar no fogo acabaria com tudo. Gravado nos portões da companhia vinha o lema “retrabalho e postergação”. Fui recrutado por um desses sublimes especialistas em causar postergação. Segundo ele, estava de olho em mim há muito tempo, apenas esperando pelo melhor momento.
Não comecei exatamente por baixo. Embaixo mesmo estavam aqueles que se dedicavam a convencer o cliente a guardar os óculos no lugar errado ao deitar, a beber água da geladeira sem conferir se restava algo no fundo da garrafa, a ir ao banco no exato dia do pagamento. Coisas que se parecem mais com hobbies do que com prestar um serviço serio. Essas coisas são próprias dos erês. No ponto em que estou na carreira, já tenho alguns a meu serviço. Em outros ramos são chamados de estagiários. Talvez com a diferença que é politica da companhia não efetiva-los. Obviamente eles não sabem disso. A barba stolide discunt tondere novelli
Não. Não eu. Já em meu primeiro contrato, ainda sem compromisso, me dispus a convencer certo prefeito de que sua cidade deveria terceirizar o serviço de água e esgoto. Fui extremamente bem sucedido. Foram trinta longos e proveitosos anos de tormento sobre uma progressista (sic) cidade sul-mineira; replicamos a ideia em muitos lugares. Mas, mesmo estando agora me dedicando a questões nacionais, e vez por outra emprestando préstimos a empreendimento internacionais e me desdobrando para levar o serviço ao maior numero de lares, não descuido das contas antigas. Orgulho-me de que o tal prefeito, dali em diante deputado, conseguiu que a mesma empresa renovasse a concessão, por mais trinta anos, e, a depender de meus esforços, será para sempre. O importante é que horizontalizamos suas atividades, e passaram a cuidar também do lixo. Não consigo descrever a minha satisfação ao ver o rosto dos cidadãos. Cedo ou tarde consigo que tal a empresa administre também o serviço de saúde. Mesmo valorizando a camaradagem entre colegas, desgosta-me a voracidade de certo colega que opera na cooperativa de clínicos local, sinto-me, pela mais pura ética, obrigado a intervir. Via deputado, já há alguém no hospital nesse sentido.
Asseguro-lhes, porém, que nem eu, nem ninguém em minha companhia, é acionista desta ou de qualquer empresa. Chamemos nossos ganhos de marginais. E de forma nenhuma cuido exclusivamente de questões empresarias. Não discrimino. Não, Não eu. Me sinto muito a vontade lidando com movimentos sociais, partidos. Lideres estudantis despertam-me desproporcional ternura, quando os vejo cobrindo os juvenis rostos com toquinhas tenho vontade de comê-los. Eu não recuso trabalho. Não. Não eu.
Fui tão bem sucedido intervindo na politica local, que poucos anos depois, promovido, já estava à altura de ajudar Azeredo no caso que lhe deu a alcunha. Não tinha contado. Ia me esquecendo: em meu ramo, mudamos nossos nomes, vez por outra, como para atualizar. Azeredo não foi sempre Azeredo. Eu mesmo me tornei Ozorio há poucas horas, numa divertida aventura militar. Mas não posso tratar disso com os senhores, o caso Ozorio ainda está pra vocês no futuro. Limitar-me-ei aos casos já ocorridos, mesmo o tempo não sendo pra mim como para os senhores, digamos que trato aqui apenas das minhas mais doces memorias. É complicado, eu sei. Não preocupem suas almas. Não, Não.
Voltando rapidamente ao Azeredo. Nessa época, ele se encontrava assoberbado de trabalho. Passava seus dias, e não raro suas noites, sentado no ombro de um importante governador, de quem não direi o nome, apenas menciono que era do mesmo partido daquele que ocupava a presidência. Que bela oportunidade. Quanto foi realizado. Escolas de alumínio sob o sol do sertão, a própria metáfora do caldeirão, não há cena mais cândida do que uma criança desmaiando tendo ao fundo o fulgor alaranjado do sol de fevereiro. E os professores, como não amá-los enquanto olhavam atônitos e mal alimentados aqueles caminhões descarregarem computadores que jamais seriam ligados. Hoje, Azeredo se encontra desacreditado, preso ao ombro de um cadáver, mas em seus melhores dias, foi um grande mestre. Não, Não eu. Não contribuí para sua queda.
Nossos chefes concordaram, e o próprio Azeredo também, que o publicitário oferecia uma oportunidade rara. Tudo que se seguiu, coisa que talvez eu trate em outras mal traçadas linhas, não nestas, foi para o crescimento da companhia.
Os cães ladram e a caravana passa! Salva de palmas para meu bom amigo Azeredo! Mártir do trabalho bem feito, da longa postergação. Patrono dos casos jamais julgados.
Se os ombros dos políticos já nos favorecem, assentados na magnância da toga é quando mais contribuímos; não há um entre os meus, que não considere um bom poleiro no supremo o culminar de sua carreira. O que seria desse país, sem nossos serviços prestados dentro de seus tribunais? Levem minha interrogação a sério!! Respondam-me! Quanto a mim, em minha humildade, prefiro a liberdade democrática, a alternância de ombros, o pugilato político. Mas deploro e me dirijo com o bom-senso entre as mãos àquele que, assentado em bela capa, procura conduzi-la ao mar bravio da política nacional. Havemos de ter respeito por aqueles que conduzimos; se está há tanto tempo agarrado ao pescoço de notório togado, que já de muito lhe causa dor as costas, por que não conduzi-lo ao merecido descanso? Findo ao processo, esse colega pode merecidamente festejar junto a Azeredo a conclusão da obra. Mas precisa se mirar no exemplo deste. Tenha paciência, paciência. Sempre haverá salvadores da pátria, ombros largos não faltarão.
Outros conjuram-me. Devo ser breve. Com a permissão dos senhores, em minhas próximas missivas, pretendo elucidar o caráter de meu labor, dar dicas a meus colegas (sei que muitos neste momento esticam o pescoço e compartilham da leitura com seus clientes) e homenagear humildemente as conquistas de meus companheiros, e claro fazer com que entendam porque sou um dos melhores no que faço. Se alguns psicodélicos não me dão o reconhecimento devido, obtê-lo-ei de meus amados e gentis leitores. Apresentá-los-ei a um mundo de grunges, erês e psicodélicos.
Ab auditione mala non timebit
Ditado pelo espirito Ozório, psicografado por Rodrigo Mudesto.
[R.M.] O texto busca ser fiel às palavras perturbadoras de Ozorio. E dada a gravidade da revelação, acho necessário eximir meus colegas da Revista Pittacos, que apenas concordaram com a publicação quando evoquei nosso compromisso com o pluralismo político e religioso.