[Rafael Zacca]
Ontem à noite o prefeito Eduardo Paes socou a minha cara, duas vezes. Cuspi sangue e o mandei à merda. Ele nasceu em 1969, se formou em direito na PUC e é irmão anacrônico de Georges-Eugène Haussmann, um antigo prefeito de Paris que desceu o cacete em muita gente. Hoje em dia Paris é bonitinha e os casais de namorados tirando foto do alto da torre Eiffel continuam espancando os catadores de trapo e a boemia da capital francesa. Tenho a impressão que foi um casal de namorados, de iPhone em punhos, que me segurou, enquanto o prefeito descarregava as duas mãos em meu rosto. As pesquisas apontam que não é mais seguro andar na Jardim Botânico; o horário em que eles mais costumam atacar é às 18h, a chamada Rushkrieg. Ontem à noite desceram todos do Parque Residencial Jardim Botânico e tocaram o terror: todos com aquelas roupas que me dão arrepios, uns pareciam vir de Nova York, outros de Berlim. E falavam inglês, alemão – alguns falavam até francês – isso tudo assim, às 18, 19h. Rushkrieg. O prefeito é o novo chefe de um grupo chamado “O maraca é meu”. O grito de guerra foi retirado do facebook, após mais de um milhão de compartilhamentos, por decisão do STF. Tudo se lavra sob essa sigla – acho que é alemã. O lance é que o tal grito de guerra foi classificado como imoral: “O maraca é meu / o meu pai comprou pra eu”. Pelo menos alguma coisa funciona nesse país. Agora estão dizendo que a especulação imobiliária está avançando pela Zona Norte do Rio; enquanto a desgraça aumenta por aqui, vamos torcendo pela pacificação do Jardim Botânico (sem falar na situação de abandono em que se encontram a Urca, a Barra da Tijuca e o Leblon). Ontem o prefeito Eduardo Paes socou minha cara. Enquanto me socava perguntava quem foi que te bateu? Eu respondi assim, meio sem jeito, que foi o senhor. Ele respondeu que tinha sido eu mesmo, e que eu era um merda. Saí do episódio um pouco violento. Por sorte esbarrei com Ali Kamel na rua; dei-lhe um tapa na fuça, e gritei que é você quem financia essa merda, enquanto esfregava o jornal O Globo em seu rosto, com a cara do prefeito na primeira capa. O STF está querendo que eu me desculpe publicamente com o Ali Kamel. Nem tudo funciona nesse país.
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Nota sobre a manhã: Esse texto foi redigido por volta de maio de 2013, por ocasião do soco que o prefeito deu em um cidadão e da preparação da segunda edição da Revista Chão (sobre “pacificação”). Ia ser publicado lá, mas todas as vezes que eu relia essa coisa, que é um pouco crônica um pouco invenção (mentira mesmo, eu acho que não tem), eu ficava preocupado. Não publiquei por pensar que meu texto contribuía mais para as forças fascistas do que para as forças construtoras da vida. Mas vieram as manifestações e foram como foram. Todos se lembram do 20 de junho. E depois teve o lance dos rolês. Agora o dos justiceiros. Fiquei com a breve impressão de que Jung estava certo quando dizia que nossa capacidade inventiva tem o dom de antecipar coisas, por causa do inconsciente coletivo. (Quando inventamos, somos uma espécie de cavalo de santo do espírito da época.) A agressividade alcança índices surpreendentes todos os dias, e não estou falando das estatísticas sobre assaltos. Falo da fera do fascismo, que bebe seu leite em duas fontes.
Uma delas é a do medo. Drummond sabia que o amor não tem lugar quando o medo nos alimenta: “Provisoriamente não cantaremos o amor, / que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. / Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços”[1]. A fera, adormecida em todos nós, acorda quando temos pesadelos e nos devora os abraços. É então que cantamos “o medo dos ditadores”, “o medo da morte” e “o medo de depois da morte.” Nascem, por fim, “sobre nossos túmulos” as “flores amarelas e medrosas”. Da época de Pereira Passos à de Eduardo Paes, de Pedro Álvares Cabral aos nossos ferozes banqueiros, o passado é um triste acúmulo de girassóis de Van Gogh. Ou, para falar uma língua clara aos trópicos, uma triste sombra de bananeira – “esta sombra mole, preguiçosa”[2]. A violência que surge desse medo é sem tamanho, desmedida, e eterna. E ela brota em todos nós. Nós somos o medo e suas flores.
A outra fonte que alimenta a fera fascista é inebriante e estetiza a vida. Dos manifestos futuristas – como quando Marinetti apoiou a guerra colonialista a que chamou de “guerra bela” – à utopia verde-amarela dos integralistas; do ufanismo varguista à estetização da pobreza de nossos dias (para os moradores do Rio, o Museu de Arte do Rio deveria ser um exemplo escandalosamente didático do fascismo); dos homens de branco na Ku Klux Klan aos homens de bem e de branco na avenida: se os sentidos se embotam, a percepção cria a justificativa que pode para a carnificina sem fim. Seguimos mais canibais que os nossos antepassados que serviram de modelo para as utopias antropofágicas.
Existe, porém, uma violência que encerra o ciclo mítico da carnificina. Walter Benjamin chamava isso de “violência divina”; ou ainda, dizia que nesses momentos a humanidade puxava o travão de emergência do comboio em que seguia – chamado civilização – e, um pouco brusca e surpreendentemente alegre, se despedia de seu passado lutuoso. Difícil é saber qual é essa violência capaz de encerrar o ciclo interminável.
Drummond foi um homem muito triste. Em parte, isso se devia à descoberta dessa fera que dormita no peito humano. Mas nunca cansou de afirmar a vida. Drummond não tinha medo, nem se entregava. Escreveria ainda no Claro enigma sobre a sua “angústia espiralante”[3]. Mas advertia:
Passarei a vida entoando uma flor, pois não sei cantar
nem a guerra, nem o amor cruel, nem os ódios organizados,
e olho para os pés dos homens, e cismo.
Agora, em fevereiro de 2014, a releitura dessa crônica ilumina certas reflexões. Penso que certos escritos só ganham força com o desenrolar histórico. Por isso decidi enviar para a publicação na Pittacos. Ainda com medo do fascismo (é preciso que não temamos): não apenas daquele do Estado, mas daquele que mora em nós, e que dá suporte ao de Estado. Espero que as forças construtoras vençam, e que ninguém mais tome aquele soco do prefeito. O que cantar para não cantar o fascismo? Com Drummond, repito:
Nossos donos temporais ainda não devassaram
o claro estoque de manhãs
que cada um traz no sangue, no vento.