[Denise Bottmann]
[N.E.] a Revista Pittacos pinçou do perfil facebookiano de Denise Bottmann o post que reproduzimos aqui. Ficamos contentes por sua permissão para reproduzi-lo, e mais contentes em publica-lo tal e qual foi esboçado, com a agilidade da escrita de uma postagem, sem edições.
vejam que quebra-cabeça. em 1937, saiu a suposta tradução de jorge luis borges para die verwandlung de kafka, com o título de “la metamorfosis” (que chegou a nós nos anos 1960, via torrieri guimarães). afinal, uns quarenta anos atrás, o pesquisador argentino fernando sorrentino comprovou definitivamente, inclusive em conversa com borges, que sua suposta tradução na verdade era copiada de uma tradução espanhola anterior. sorrentino localizou: tinha saído em 1925-26 na revista de occidente, de ortega y gasset.
ora, além disso, por muito tempo considerou-se que a primeira tradução tinha sido para o francês, feita por la villette, 1936, “la métamorphose”. assim, não só sorrentino recuperou a verdadeira fonte da pretensa tradução borgiana, como ficou demonstrado que a primeira tradução fora feita para o espanhol (anônima; existem alguns palpites).
mas aí é que entra algo que não faz muito sentido, e é já uma questão interna do texto. é a frase final do primeiro parágrafo, que parece sem pé nem cabeça (e acontece que todo tradutor, por péssimo que seja, baseia-se num texto que, em princípio, tem algum pé e alguma cabeça). a frase em espanhol é: “Innumerables patas […] ofrecían a sus ojos el espectáculo de una agitación sin consistencia” (devidamente vertida por nosso torrieri como “Inúmeras patas … ofereciam a seus olhos o espetáculo de uma agitação sem consistência”).
ma che cazzo, como dizem os italianos, há de ser uma agitação sem consistência? já essa bizarrice havia chamado a atenção de celso cruz, em seu belo estudo “as metamorfoses de kafka”.
bom, a coisa passou, meu interesse maior no levantamento das obras de kafka no brasil era outro e não parei muito nisso. hoje, tentando alinhavar um artigo mais consolidado, caio de novo na agitação sem consistência e encontro uma tradução também em espanhol falando em “se agitaban sin concierto”. sim, claro, bingo, aí faz algum sentido, as patinhas se debatendo cada uma para um lado, descompassadas, desacertadas, isto é, em inglês, “with no consistency” ou “without consistency” ou algo assim (aliás, diga-se de passagem o que tem de gente que traduz “consistency” por consistência!)
mas voltando, aí falei: “claro, denise, assim se explicaria de onde saiu aquela ‘agitacíon sin consistencia’: um decalque do inglês”. só que, só que, só que a primeira tradução em inglês de “die verwandlung” é de 1948, mais de vinte anos depois da espanhola.
ainda por cima, não é que haja qualquer coisa imediatamente relacionada com “sem consistência” no alemão: é um simples “hilflos”, ou seja, aí entrou o dedo do tradutor, mas até aí tudo bem. então fiquei encafifada: eu até entenderia o caminho mental de um hilflos para um without consistency (ou algo assim) e daí para um sin consistencia. mas cronologicamente a coisa não bate.
em suma, a menos que meu espanhol seja muito pior do que imagino e “sin consistencia” possa ser uma tradução concebível de “hilflos”, estou quase me sentindo forçada a imaginar que a tradução espanhola de 1925 teria tomado o inglês como língua de interposição… e aí as perguntas se multiplicariam: qual, onde, quando, como seria essa tradução do inglês?
[N.E] Textos relacionados podem ser lidos no blog da autora clicando nos links abaixo:
http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/2009/11/kafka-no-brasil-iii-ingles-frances.html
http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/2009/11/kafka-borgiano.html
http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/2009/11/kafka-em-espanhol.html
http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/2009/11/kafka-anonimo-borgiano.html
http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/2009/11/kafka-anonimo-borgiano-torrieriano.html