HANNAH ARENDT – A Banalidade do Mal : Pensamentos a partir do filme

[Maria Aparecida Abreu]

É difícil não sair seduzido do filme Hannah Arendt de Margarethe von Trotta. O objeto do roteiro é uma parte da vida de sem dúvida um dos indivíduos mais extraordinários do século XX. Antes de ver o filme, estava preocupada com duas coisas: uma banal, a falta de semelhança física entre a atriz escolhida, Barbara Sukowa, e a autora biografada, além da dificuldade de transmitir a densidade facial e corporal de um ser em estado de pensamento sem recorrer a caricaturas; e outra mais importante, sobre como um filme relataria um dos momentos mais relevantes e brilhantes da vida e da obra de Arendt, que é a passagem de uma concepção de “mal radical” – adotada desde As Origens do Totalitarismo (1949), e de inspiração kantiana –  para a de “banalidade do mal”,  expressão cuja elaboração isolada provavelmente já daria a Arendt um lugar entre os grandes autores de seu século.

O filme é muito bem sucedido. A começar pelo recorte escolhido. O relato do julgamento de Adolf Eichmann (1961) é uma das partes mais instigantes da obra de Hannah Arendt e o evento, em si, muito bem apresentado com a alternância de imagens de documentário – o verdadeiro julgamento – e a ficção – a relatoria narrada – foram a escolha correta para manter até mesmo o espectador leigo atento aos detalhes. Além disso, a importância de personagens históricos que tiveram influência intelectual e pessoal na vida de Hannah – especialmente Mary McCarthy, Heinrich Blücher, Hans Jonas e Martin Heidegger, é sugerida de forma bastante fiel à realidade, pelo menos tal como relatam suas biografias.

Todo este recorte acertado permite que a sedução da inteligência e da coragem desta intelectual que deixou sua marca no pensamento político ocidental se realize sem grandes resistências. Estamos diante de alguém extraordinário, sem dúvida. E esse alguém é uma mulher, uma das poucas que figuram entre os grandes dos novecentos. Ao lado dela, provavelmente, Simone de Beauvoir.

Seduzidos, então, mergulhamos nos fatos que levaram a autora a abandonar uma interpretação de que um dos conceitos que ajudaria a compreender o totalitarismo seria o de “mal radical”, tal como sugerido nas Origens do Totalitarismo. De acordo com este conceito, a prática do mal por um indivíduo – tal como Kant já indicara – dependia de um desvio de sua vontade, incapaz de legislar de forma afinada com regras que valeriam para toda a humanidade – o imperativo categórico – e capaz de cometer qualquer atrocidade, desconsiderando inclusive o mais intuitivo dos mandamentos da vida social, o “não matarás”. Esta concepção de mal radical era o que parecia explicar o que estava por trás dos crimes contra a humanidade. Todos, e principalmente os judeus, acreditavam serem os nazistas monstros. Não por acaso – e o filme destaca isto precisamente – o acusado é exibido no julgamento em uma jaula de vidro.

Não. Não se tratava de um monstro. Não se tratava de um psicopata ou canibal que a qualquer momento poderia voar sobre alguém da plateia, ainda que esse alguém tivesse traços judeus. Hannah Arendt é certeira: ele nem mesmo era antissemita, muito menos um assassino sanguinário. Era apenas o mais fiel obediente às leis. O desvio que o acometia, portanto, era sua incapacidade de questionar a razoabilidade, a legitimidade, a justiça e a humanidade dessas leis. Arendt sentencia: seu problema, e de todos os outros burocratas nazistas, era a incapacidade de pensar. Sem a força corrosiva e desconstrutiva do pensamento, qualquer ação é possível, qualquer lei pode ser racionalmente justificada.

E agora desenvolvo uma ideia que, tenho a impressão, está na obra de Arendt, mas não no filme. A partir do momento que os crimes contra os judeus eram cometidos em razão da incapacidade de pensar de boa parte de seus agentes – não estão incluídos entre eles, claro, o führer e a alta cúpula nazista –, o sucesso da dominação pretendida com a estrutura burocrática montada pelo sistema totalitário estava garantida. Se o sistema necessitasse de muitos monstros, provavelmente não os encontraria. É justamente porque a Solução Final poderia ser colocada em prática por seres humanos comuns é que o sistema pôde adquirir as dimensões que teve. Daí a banalidade do mal abranger dois aspectos: o primeiro, bastante abordado no filme, é o da premissa de que os seres humanos são supérfluos. O outro, que acredito não ter sido muito bem explorado, é o de que é quando temos um sistema – e não seres humanos – estruturado para a prática do mal é que ele pode se espalhar e, se não contido, abranger toda a humanidade. Nesse sentido é que o mal banal é “superficial”, não é radical. E justamente por isso ele é muito mais perigoso, porque, aparentemente, sob a sua influência, as pessoas estão agindo de forma racional e, acima de tudo obediente.

Então, se Adolf Eichmann não era um monstro, o que era? Um burocrata, um ninguém, um palhaço, que era capaz de afirmar, de forma sincera, sem qualquer pejo ou embaraço, que suas ações nada tinham a ver com a morte dos judeus: eles morreriam, com ou sem ele.

A capacidade de Hannah Arendt sair de sua condição de judia e enxergar o que ninguém até ali tinha visto é admirável, ainda mais quando consideramos a reação, inclusive de amigos, que ela teve de enfrentar. Reação cuja melhor resposta dada pela autora foi: ela procurou compreender[1] o que estava ocorrendo e compreender não é perdoar. Em busca de compreender, Arendt sai de si e é capaz de pensar radicalmente.

Até aqui o brilhantismo de Arendt é inegável. No entanto, houve outro ponto polêmico de seu relato: o fato de ela ter questionado o comportamento de algumas lideranças judaicas durante o nazismo. Este questionamento soou para os leitores judeus como uma atribuição de corresponsabilidade pelos crimes nazistas. Em resposta a isso, ela sofreu a acusação de ter pouco amor pelo povo judeu, o que no filme foi, de forma comovente, expressada por um de seus melhores amigos, Kurt Blumenfeld, em seu leito de morte, em Jerusalém, à qual Arendt respondeu que nunca havia amado povo algum, nem mesmo o judeu. Ela amava seus amigos. Esse era o amor de que era capaz. Hannah Arendt está completamente coerente com seu pensamento. Seus atos refletem bastante suas ideias. Para ela, amor é um sentimento da esfera privada, reservada às relações mantidas nessa esfera.

Hans Jonas, de forma mais cruel, mesmo após a aula pública dada por Arendt com o objetivo de explicar o que queria dizer com a “banalidade do mal”, atribui o erro de julgamento de Arendt à sua arrogância, falta de conhecimento dos assuntos do povo judeu e à sua fidelidade intelectual a Heidegger.

Minha interpretação é a de que talvez os judeus estivessem parcialmente corretos nessa segunda cobrança. Hannah Arendt procurou tanto compreender Eichmann, e teve uma impressionante lucidez nessa tarefa, que talvez não tenha compreendido a atuação dos judeus. Não porque não amasse seu povo, talvez sim por sua fidelidade a Heidegger, embora não naquilo que provavelmente Hans Jonas estava sugerindo – antissemitismo e descompromisso com a realidade por um excessivo compromisso com o pensamento -, mas pelo seu desprezo, manifestado várias vezes ao longo de sua obra, pela sociologia. Munida do instrumental já então erigido por Weber em suas formulações sobre a sociologia da dominação, seria provável que ela percebesse que os judeus – não sei se como povo, ou se como grupo –, durante a dominação nazista, agiram como os dominados agem quando buscam a sobrevivência: aderem à lógica e às regras do dominador, muitas vezes internalizando-as. Pode-se não admirar alguém que age de acordo com os ditames da sobrevivência. No entanto, da mesma forma, não se pode exigir desse alguém conduta diferente. Mas, ao que parece, isso não foi reivindicado da autora naquele momento, só décadas mais tarde, ao longo da recepção de sua obra.

[N.A. 1] A palavra em inglês é understanding, que nas legendas do filme foi traduzida por entender. Mas como entender remete a atividades da razão e, na obra de Hannah Arendt, isso adquire outro sentido, vou adotar aqui a tradução consagrada – compreender.

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10 comentários sobre “HANNAH ARENDT – A Banalidade do Mal : Pensamentos a partir do filme

  1. Excelente análise. Hannah estava certíssima e foi mal compreendida. Não foram exterminados só judeus na época do nazismo. É preciso que se diga isso para compreender melhor a teoria de Hannah. A ‘burocracia do extermínio’ atingiu outros grupos étnicos, em especial, os ciganos. Muito mais de um milhão de ciganos foram deslocados e morreram nos campos de concentração nos mesmos fornos em que jogaram os judeus. É bom lembrar que este grupo étnico continua a ser perseguido pelos atuais fascistas europeus seja na Itália ou na França. É emblemático o fato de até hoje os ciganos serem assassinados sem explicação, o que ocorreu até recentemente na moderna Hungria, capitalista e membro da União Europeia.

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  2. Parabéns pela análise. A influência que sofreu de Heidegger não a tornou fiel intelectualmente à ele e não acredito que esse tenha sido o motivo de sua posição em relação ao colaboracionismo judeu. Acho mais que ela achou que os judeus demoraram para perceber o que estava acontecendo ou seja “dormiram no ponto”.

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  3. De Marco Antônio Pontes, jornalista, Brasília:
    Excelentes, os “Pensamentos a partir…”. A autora compreendeu (prefiro esse verbo, também neste caso) e expôs com maestria a contradição vivida pela judia-alemã, visceralmente contra o autoritarismo (o nazista e todos os outros) porém fiel ao dever de pensar independentemente e a seu compromisso com a verdade — e como exercitá-lo?, como buscar a verdade? sem tentar compreender os fatos, seus protagonistas, motivações… Aliás, Hannah foi coerente em seu repúdio ao autoritarismo quando não se submeteu ao poderosíssimo lobby judeu que, então, não admitia qualquer fissura (mesmo só aparente) na condenação radical e absoluta do nazismo e seus agentes. Na verdade era antes uma questão de marketing do Estado de Israel (reconheça-se: necessário à nação cercada de inimigos) que de teses filosóficas. Só mais um destaque: pode-se depreender da leitura de “Eichmann em Jerusalém”, e o filme mostra-o bem, que Hannah reviu anteriores afirmações e estabeleceu instigante distinção, ao discutir o conceito de “mal”, entre “radical” e “absoluto”.

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  4. A questão central, no que respeita a tese da “banalidade do Mal”, defendido por Arendt, é seu equivocado pressuposto, como se Adolf Eichmann não tivesse consciência de seus atos. Ele não apenas tinha, como concordava ideologicamente com eles! Esse o ponto que Arendt não leva em consideração, e fragiliza seu argumento sobre “a banalidade do Mal”. Há uma série de documentos que comprovam, por parte do regime nazista, uma mecânica de destruição de “espécies inferiores e adversários do regime, como judeus, ciganos, eslavos, comunistas, etc. Pensada em seus mínimos detalhes e levada avante por um partido e burocracia estatal que estavam absolutamente convencidos de suas “razões de Estado” e correção de tais medidas! Esse aspecto que nunca deve deixar de ser considerado, a aceitação voluntária e concordante de tal ignomínia, por pressupostos ideológicos conscientemente aceitos!

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  5. Percebi que a questão sionista é corporativa que se fecha em relação ao pensamento livre da Filósofa que mesmo tendo origens judias não se deixa envolver até nas chantagens de seus colegas professores da universidade, quando as aulas são ministradas e ela matem sua coerência com um pensamento questionar e instigante contra as pessoas que só cumprem seu dever de ofício.
    Uma exemplar intelectual que morreu combatendo a superficialidade.

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  6. Acho que não é o colaboracionismo do povo judeu o que H.A criticou, mas precisamente o mesmo que criticou na ordem estatal totalitária: as hierarquias, a organização, a institucionalização, que permitiu que, cooptando as lideranças, fosse possível administrar o comportamento do rebanho judeu. O que se sugere, no recorte feito pelo filme, é que se o povo judéu não tivesse organização, instituições, hierarquias, lideranças, isto é, se a sociedade judia tivesse uma modalidade mais caótica de existência, o genocídio sistemático não teria sido possível. Essa aposta de H.A. parece ser confirmada com o acontecido na Conquista de América, onde povos sem estado, de baixa tecnologia, dispersos nas terras baixas das florestas, conseguiram permanecer por muitos mais séculos sem ser integrados ao processo da colonização.

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  7. Cara Rita, eu não vi essa sugestão no filme. De qualquer forma, ela não encontra respaldo na obra de Hannah Arendt, pois em “As Origens do Totalitarismo”, no volume sobre anti-semitismo, ela comenta sobre a necessidade dos judeus de se assimilarem à civilização e cultura europeias e a de erroneamente não terem buscado reconhecimento jurídico, mas terem apenas existido socialmente. Isso sugere uma dispersão e não uma organização reconhecida legitimamente desse povo. Tal opção pela assimilação cultural, difundida entre os judeus, ao invés da busca de um status jurídico de cidadãos teria sido uma das razões que possibilitou seu genocídio.

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