A Salvação Nacional e Algo Qualquer

[Marcelo Diana]

A marcha de protestos que se seguiu no país na última semana levantou velhos gigantes adormecidos pelo soar de hinos de redenção e deslumbramento guardados e escondidos. Entender a massa reunida para protestar só pode ser lindo se for para algo prático. Por pura experiência “estética” (achar LINDO o povo nas ruas não necessariamente significa entender o que esse povo todo faz na rua e muito menos que todos os que estão na rua compartilham do padrão de LINDEZA esperado) torna-se vazio e bastante perigoso. Ao invés de fazer projeções sobre o que virá das marchas a partir de agora, vou me ater aos fatos que nos chegaram até o presente.

Durante o período das manifestações, pautas importantes foram votadas em todo o Brasil, especialmente, na Câmara dos Deputados em Brasília. O estatuto do nascituro e a “cura gay” foram pelo menos duas das mais conhecidas, na medida em que versam sobre algo que torna um tema que é diverso em unidade: o direito ao próprio corpo. Enquanto policiais prendem e jogam balas de borracha e bombas de efeito moral sobre os corpos de cidadãos nas ruas, na Câmara em Brasília é aprovada a lei que regulamenta o direito de decidir sobre os nossos corpos cotidianamente, na intimidade. A violência está sendo aprovada institucionalmente, na surdina. Com uma canetada e sem nenhum aparato policial.

A polícia é truculenta? É. Foi absolutamente horrendo o que aconteceu nas cidades do Brasil, de repressão aos movimentos nas ruas? Foi. Mas algo mais grave está vindo, e não se trata exatamente de um golpe militar. Presenciamos um cenário de golpe invisível, camuflado, mimetizado em causas mais gerais que deslocam o foco de uma pauta que diz respeito a convivência social dos cidadãos para problemas institucionais nacionais abstratos, como a corrupção e a inflação.

Toda causa é justa, inclusive a causa da corrupção. O que não é justo, porém, é que outras causas não possam ascender com justiça ao conhecimento público. O que dizer da PEC 37? Alguém sabe os prós e contras dessa emenda à constituição? Dos riscos e dos benefícios dela? E a reforma agrária? Todos entendem a importância deste tema para o problema da desigualdade social no Brasil? E as leis urbanas de remoção? E as cotas? Por que não se levou à sério bandeiras sociais em um protesto onde se afirmava ter o gigante que adormecia se levantado?

Ao recuar diante de causas sociais, a “nova geração” conscientizada permitiu que o movimento social aglomerado em torno dos protestos nas ruas fosse dirigido por abstrações e clichês de insatisfação popular, geralmente, comandados por direções autoritárias infiltradas. Quem nunca esteve cansado de políticos corruptos? Quem apoiaria a inflação à despeito dos custos sociais que isso provoca? Acho que ninguém. Mas, por que demorou tanto o aparecimento de causas sociais na multidão? Por que não se ensejou uma assembleia popular onde as pautas pudessem ser debatidas por quem quisesse o debate? Por que buscar nos políticos a resposta que se quer, quando nem mesmo sabia-se reivindicar uma pauta específica social a ser direcionada para eles?

Não defendo a classe política governante, aqui. Sobretudo porque desde o começo deste ano o que presenciei foi uma avalanche de besteiras e deboches que os poderes políticos, de maneira geral, inundou o país. Uma classe política debochada – que ignora o celeuma de uma sociedade cada vez mais endividada pelo que justamente se afirma ter sido a sua salvação, o acesso ao crédito – trouxe para o campo de lutas políticas uma consciência tediosa, indignada com tanto descaso, e vazia.

Não se pode esperar que o governo salve o nacional, quando sabemos que o nacional não une a todos. E quem estiver de fora do berço esplêndido? Sobra? E quem não amar a pátria, mas aceitar viver sob as suas leis por um entendimento específico do que é convivência social, é elitista? Anti-povo?

Parece ser, a meu ver, fundamental pensar em uma razão social que dimensione os problemas nacionais, e não o contrário. Nacionalismo de toda e qualquer ordem gera exclusão. Nenhum país é unitário, assim como nenhuma causa social é consensual. Mas o consenso em torno de princípios humanos individuais deverá levar em conta temas da estrutura social, como o direito à terra, à saúde, à educação e não o sentimento e o ufanismo da nação ou o êxtase e deslumbramento de ver o povo sem direção nas ruas. Nós precisamos dos direitos civis, políticos e sociais porque somos humanos e vivemos no Brasil. Mas se vivêssemos, por exemplo, na Espanha ou na Grécia ou na França, estes mesmos direitos seriam reivindicações gerais de uma pauta social. O que quero dizer com isso é que jogar as demandas sociais para o tema da nação é perder de foco a origem dos nossos problemas – que o “povo brasileiro” nas ruas acordou e seria evidência de algo que está mudando. Talvez esteja. Mas para onde?

É preciso crescer, politicamente. Isto virá quando expressões como acordar e conscientizar não forem usadas para justificar a ida às ruas por um motivo geral, abstrato e pouco claro. Pensar que o “novo”, o fluxo do movimento, a diversidade e liquidez das causas indicam algum ritmo espontâneo que nasce na rua, ou na internet, ou em qualquer aglomeração de bem intencionados, é olhar apenas para um lado da história, e ainda caolho. O novo não existe. O que existe é o pensamento, a reflexão, a crítica, que pondera entre o que existe e o que deve ou deveria vir a ser feito para existir. Nada surge do nada, a não ser deus. O novo, o que nos desperta, surge de um pensamento conseqüente sobre alguma coisa do passado, não do deslumbramento com sentimentos do presente. Isto vale, inclusive, para a história da Revolução Francesa – alardeada como exemplo onde o povo historicamente fez a diferença, porém se esquecendo, hoje, que nada naquela Revolução foi novidade a não ser o fato de que não se sabia para onde se estava indo, tamanha a violência despertada entre os seus diversos segmentos manifestantes. Tradição e divergências radicais que a França carrega até hoje.

Despertar a massa não pode ser uma atitude fanática ou estética. Precisa ser algo concreto e político.

Seguiremos iguais a zumbis, meio-despertos, meio-cansados, meio-ávidos por mudanças, meio-arrastados pelas crenças de que o novo virá feito messias para nos redimir e nos religar? Precisamos incitar a desordem, para que a ordem seja alterada? Não sei. Mas o que pressinto é que não precisamos exatamente de na nação, mas de reflexão para se propor o novo que virá amanhã onde moramos, onde nascemos e onde nos reconhecemos. As ruínas do nosso presente mais imediato (sobretudo, os restos de esperança que motivaram milhares para ir às ruas em protesto) não podem esconder as lutas do passado sob a “falsa” conscientização das lutas do presente. O presente é um acúmulo e não uma tabula–rasa. Isto é importante, pois estamos sob o risco de cair no conto-de-fadas do gigante, que de tanto andar, cansava-se de tempos em tempos e adormecia. Isto é perigoso, além de inconseqüente e cruel.

O que seria prudente agora, passados os ânimos momentaneamente, é recusar qualquer ideia de salvação nacional, a fim de se evitar ainda mais o esteticismo, o fanatismo e o irracionalismo que se dirige para junto das massas. Afinal, todos querem se sentir parte de algo, mas não de um algo qualquer, não? Saber onde colocamos – e colocam – os nossos corpos não pode ser um pensamento postergado para depois da luta. Ele informa a luta e define a sua verdade.

PROTESTO CONTRA AUMENTO DO VALOR DAS PASSAGENS DO TRANSPORTE PÚBLICO EM SÃO PAULO http://revistapittacos.org/ http://revistapittacos.org/ http://revistapittacos.org/ http://revistapittacos.org/

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Um comentário sobre “A Salvação Nacional e Algo Qualquer

  1. “Mas o consenso em torno de princípios humanos individuais deverá levar em conta temas da estrutura social, como o direito à terra, à saúde, à educação e não o sentimento e o ufanismo da nação ou o êxtase e deslumbramento de ver o povo sem direção nas ruas.”

    Excelente!

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