[Vinicius Siqueira]
A mastectomia de Angelina Jolie foi palco para debates sobre sua validade: se era necessário passar por essa cirurgia por conta do risco de desenvolver um câncer [1], por conta da irresponsabilidade que ela poderia ter praticado ao colocar tal ato num cotidiano que não deveria ser tão banal [2], se as críticas em relação a sua estética eram válidas [3] e sobre a coragem de falar em público sobre tal assunto [4].
Pontuações Iniciais e a Personalidade Pública
Pode-se dizer que sua operação de risco é uma representação ótima de como vivemos sem realmente querer viver. Digo isso pois, se havia um risco de ter o câncer, este câncer poderia nem ter se desenvolvido. Retirar os seios por prevenção pode ser tido como uma maneira de evitar a parte ruim de ser um humano. Uma coisa é fato, ninguém quer morrer cedo e, para que isso não aconteça, as pessoas se utilizam de qualquer medida para aumentar seu tempo de vida e sua probabilidade de continuar viva.
Há um outro ponto: o corpo é dela, não do público que assiste seus filmes. A personalidade pública não é pública porque quer, simplesmente. Na verdade, se ela quer, não faz muita diferença. A personalidade pública é um resultado dos investimentos das diferentes formas de mídia em sua imagem. Angelina Jolie, enquanto personalidade pública, é aquilo que a mídia direciona – os jornalistas, paparazzi, repórteres e etc e etc não são mais do que reprodutores e produtores da imagem da artista.
A posição que colocam qualquer personalidade pública, como alguém que deve algo para seus fãs, é uma posição falsa – ao mesmo tempo verdadeira. Sua personalidade só pode continuar a ser pública se conseguir agradar os meios de comunicação e os fãs, afinal, os meios de comunicação precisam veicular a imagem da personalidade para alguém, este alguém seriam os fãs, que, por sua vez, precisam de algum meio para conseguir informações de seus ídolos.
O interessante é que essa relação não precisa ser nem um pouco forte. É possível passar horas em frente a televisão assistindo um programa sobre a vida dos famosos sem nem saber o nome dos três últimos trabalhos de cada um deles. Mas ele é famoso. Isso conta. Estar na categoria de personalidade pública é algo que depende muito mais da adequação às regras da vida de famoso do que de um reconhecimento prévio. Este reconhecimento, por sua vez, vem depois… Primeiramente é necessário que o sujeito seja reconhecível.
Nada disso envolve um querer do famoso. O famoso se situa numa posição onde pode ser substituído por qualquer outro sujeito. Angelina Jolie também. O que nos coloca a consideração de que a vida de Angelina Jolie não nos interessa e ela não tem a menor obrigação de falar publicamente a respeito disso. Ela não nos deve nada. Sua posição a obriga a ser “responsável com seu público”, mas isso só demonstra que seu trabalho é secundário, que sua personalidade pública é sua distinção.
Dentro disso, creio ser possível visualizar que a cirurgia não é tão importante como parece, o que é importante é a necessidade de vir à público para falar sobre a cirurgia. Uma coisa é fato, ela é dona do próprio corpo e faz o que quer com ele. Isso não é discutível. Mas por que escrever isso num jornal de grande circulação? Para ajudar outras mulheres em situações parecidas? Para dar um testemunho válido?
Aí Vem o Patriarcado
Eu creio que, primeiramente, ir à público para expor algo tão íntimo faz parte da posição que ela ocupa dentro do universo das personalidades públicas. Esse imperativo ético de que suas ações podem servir de exemplo e ajuda para outras pessoas, de que suas atitudes são influenciadoras e etc e etc é um imperativo instalado. Uma personalidade pública precisa ser assim, da mesma forma que precisa esconder determinados símbolos de estigma que a retirariam de sua posição. A própria noção do sujeito que sofre com uma doença rara e que precisa tomar uma decisão arriscada é um ponto de prestígio. É como o rockeiro drogado que dá a volta por cima. Essa volta, este processo, é que importa.
Mas além disso, durante seu texto, Jolie diz que não sentiu que perdeu sua feminilidade e que já reconstituiu seus seios [5]. Perceba, ir à público para dizer que foi necessário fazer uma cirurgia para retirada dos seios sob o risco de ter câncer não é simplesmente um ato de testemunho: é algo que fortalece a posição em que o sujeito se encontra. No caso, uma mulher considerada uma das mais sexy’s do mundo e personalidade pública.
Ela poderia não ter falado que isso aconteceu com ela. Poderia ter escrito algo em terceira pessoa. Mas por que em primeira pessoa?
Isso me parece ser mais do que um imperativo instalado pelo campo midiático. Isso me parece ser um imperativo instalado pelo próprio patriarcado. Ter que se retratar enquanto mulher sobre as modificações que fez em seu próprio corpo e, pior ainda, ainda ter que enunciar que não se sente menos feminina por isso, é parte da adequação que o próprio machismo precisa passar para se manter em sociedades que não sabem lidar com a morte, com o envelhecimento, com os danos incontornáveis do tempo.
Se, atualmente, se vive sem realmente viver, se se vive contornando todos os males (beber com moderação, não fumar, não comer a gordura da carne, evitar manteiga, praticar um mínimo de 1 hora de exercícios e etc e etc) e sem entrar de cabeça em nada, se tudo precisa ser mediado por um referencial de longevidade, então o corpo da mulher precisa, ao ser objeto deste referencial de longevidade, se submeter a tais imposições – entretanto, sem perder a feminilidade.
A declaração de Angelina Jolie funciona mais como uma reprodução da figura da personalidade pública que “dá a volta por cima”, que precisa prestar contas com quem supostamente os da suporte (o público) e da mulher que não pode perder a feminilidade (como se já nascesse feminina). Dois discursos que não fazem sentido, já que não é o público que fortalece a personalidade pública, mas é a tomada de posição em sincronia com determinadas normas de conduta, maneiras de ser e fazer pré-determinadas e, claro, já que não há necessariedade nenhuma de uma mulher ser feminina.
Referências
[1] http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/05/a-mastectomia-de-angelina-jolie.html
[2] http://noticias.r7.com/blogs/andre-forastieri/2013/05/16/angelina-jolie-a-heroina-cretina/
[3] http://www.bulevoador.com.br/2013/05/mastectomia-da-angelina-jolie-e-bombas-relogio/
[4] http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2013/05/enquanto-os-broncos-brincam-angelina.html
[5] http://www.nytimes.com/2013/05/14/opinion/my-medical-choice.html?hp&_r=0