[Nelson Rodrigues, 1964]
Amigos, ao contrário do que se pensa, o Brasil nem sempre foi um país tropical. No tempo de Machado de Assis, ou de Epitácio Pessoa, ou de Paulo de Frontin, o sujeito andava de fraque, colete, colarinho duro, polainas, o diabo. As santas e abomináveis senhoras da época se cobriam até o pescoço. Em suma: — o brasileiro vestiase como se isto aqui fosse a Sibéria, o Alasca, sei lá.
Hoje não. Procura-se um fraque e não se encontra um fraque. Os mais vestidos andam seminus. No passado, o sujeito que entrasse sem gravata num bonde — era de lá expulso a patadas. E, agora, anda-se de biquíni nos lotações. Um sol hediondo vai derretendo as catedrais e amolecendo os obeliscos. Não há dúvida: — somos finalmente tropicais.
Olhem as nossas praias. A nudez jorra aos borbotões. Em 1905, o turista que visse Machado de Assis havia de anotar no caderninho: — “Este é o povo mais vestido do mundo!”. Em nossos dias, o mesmo turista havia de escrever inversamente: — Este é o mais despido dos povos!”. Pois bem. E, no entanto, vejam vocês: — ocorre aqui uma reação curiosíssima.
Sim, diante do calor, o brasileiro esperneia e pragueja. O que fazem com o futebol chega a ser burlesco. Em pleno verão, suspendem os clássicos e as peladas. O Maracanã cerra as suas portas. Todas as botinadas são proibidas. E ninguém percebe o absurdo. O justo, o lógico, o adequado é que um craque tropical, como o nosso, jogue no verão e descanse no inverno.
Não me venham com o argumento de higiene. Para um tropical, a higiene é um sol homicida. E se reclamamos, se esbravejamos, se uivamos contra o sol, cabe uma dúvida honesta. É possível que sejamos tropicais por engano. E, nesse caso, certo estaria Machado de Assis ao pôr fraque e galochas, assim desafiando o hediondo sol do meio-dia.
O futebol antigo era mais inteligente. O jogador entrava em campo e os jogos caniculares tinham mais élan, mais saúde, mais euforia. Por exemplo: — em 1910, ano em que o Botafogo foi campeão. Naquele tempo, o Brasil era tropical sem o saber. Lembro que um craque alvinegro, famosíssimo, jogava com uma vasta toalha felpuda enrolada no pescoço. Quarenta graus à sombra e ele varava o campo como um centauro de cobertor.
E nunca houve, no velho futebol, nenhuma insolação. Pelo contrário: — o craque tinha uma resistência de hipopótamo. Na célebre gripe espanhola morreu todo mundo. A mortandade foi pior do que a da primeira batalha do Marne. Mas como eu ia dizendo: — uns morriam e outros eram enterrados. E, quando o sujeito relutava em morrer, era liquidado a pauladas como uma ratazana. Muito bem: — só os jogadores de futebol sobreviveram.
Não havia Departamento Médico nos clubes. Mas o sol potencializava o jogador e o protegia contra o tifo, a malária e a peste bubônica. Sim, bons tempos em que o Brasil não era ainda tropical ou por outra: — não sabia que o era! O craque usava bigodões imensos, carapuça e mais: — seus calções escorriam até as canelas. Lindo, lindo. E assim, encouraçado de sol, abarrotado de calor, o craque ou o perna-de-pau eram uma bastilha deslumbrante de saúde.
[N.E.] Texto presente na coletânea “A Sombra das Chuteiras Imortais” que reúne cronicas futebolísticas de Nelson Rodrigues Publicado originalmente no jornal “O Globo” em 03/04/1964