A tese da punição injusta positivista e a questão da maioridade penal no Brasil
[Marcus Vinicius Matos, A Palavra Humilhada]
Em 1979, um filme colocou em xeque as posições políticas de atores do sistema judiciário norte-americano: trata-se de “…And Justice for All”, estrelado por Al Pacino e dirigido por Norman Jewison. O filme teve um impacto significativo nos Poder Judiciário e na ABA (OAB Estadunidense), talvez semelhante ao impacto de Tropa de Elite (2007) na Polícia carioca e na sociedade brasileira. A estratégia de produção e roteiro era basicamente a mesma: ampla pesquisa documental, entrevistas com juízes, advogados, promotores, jurados, réus, prisioneiros, etc; e, posteriormente, construção de personagens mais ou menos baseados nestes arquétipos recolhidos nas entrevistas. Teve, ainda, o mérito de ter sido o primeiro filme a levar às telas as ideias que permeavam as – então recentes – teorias críticas do direito, bem como aquelas contidas em ‘Levando os Direitos à Sério’ (Ronald Dworkin) – que viria a se tornar um clássico nas décadas seguintes.
Neste texto quero chamar atenção para o fato de que alguns discursos presentes naquela época nos Estados Unidos da América, continuam influenciando concepções políticas, conceitos jurídicos e posicionamentos ideológicos para onde foram exportados – seja pela força das produção acadêmica e/ou audiovisual estadunidenses, seja porque foram impostos pela força em ditaduras apoiadas por aquele país. Particularmente, quero demonstrar que continuam presentes no Brasil, onde certas posições políticas conservadoras têm encontrado eco tanto nas mídias sociais quanto na grande mídia , no momento de um suposto esgotamento teórico e moral de um projeto político “de esquerda”. Estes posicionamentos tem se tornado particularmente visíveis nos debates relacionados a redução da maioridade penal, matéria que conta com ao menos cinco Projetos de Lei no Congresso Nacional.
Em primeiro lugar, vale a pena reler o discurso do próprio diretor do filme, Norwan Jewison, quando entrevistado, anos depois, sobre o contexto e objeto da obra cinematográfica:
“Descobri umas duas ou três coisas fazendo este filme. Há uma justiça para os ricos e outra para os pobres. Há uma justiça para os brancos e outra para os negros. Há uma justiça para minorias e outra para as maiorias. Acho que essa é, essencialmente, a verdade. Infelizmente. Todos nós gostaríamos de acreditar que a lei está acima de tudo. Mas não está. A coisa não é bem assim.”
Esse discurso de questionamento do modelo de justiça liberal implementado nas democracias ocidentais também está presente na visão do roteirista Barry Levinson. Segundo ele, o próprio Pledge of Allegiance norte americano, inspirado em idéias universalistas – que buscam tornar todos em iguais sujeitos de direito, independentemente de suas condições de gênero, raça ou classe social – permite uma segregação de fato, que só pode ser percebida olhando para a realização material do direito. Sobre esta base de discurso universal, as injustiças produzidas pelo sistema judiciário passariam desapercebidas pela classe média, mascaradas por uma burocratização despersonalizada do direito, atingindo apenas aqueles que se encontram em condição econômica inferior:
“O sistema legal é fascinante. Tem seus pontos altos e baixos. Às vezes temos processos abusivos. Às vezes a defesa vai tão longe para livrar a pessoa que sentimos quase como se ultrapassassem os limites e abusassem das razões pelas quais o sistema foi criado. Mas isso só acontece nos casos envolvendo gente importante. No outro extremo, as pessoas são negligenciadas e presas quando, na verdade, não tiveram um julgamento. Todos estavam ocupados com outra coisa. Era um advogado apontado pelo Estado e ele não estava atento, ou qualquer coisa assim. E aquela pessoa vai para a prisão e, só fica sabendo depois.”
Se estas condições materiais supostamente presentes no sistema judicial norte-americano, nas décadas de 1970-1980, são perturbadoras para os dois film makers citados, me pergunto que filme não teriam feito se aplicassem o mesmo método ao Brasil contemporâneo. A busca por uma imagem “real” em torno da qual o Direito ideologicamente se constrói no Brasil – ou a tentativa de traçar um retrato crítico da situação do Poder Judiciário no país – só poderia resultar em uma imagem de terror. Duas certamente seriam possíveis, pelas semelhanças das condições: o campo de concentração; e os campos de refugiados.
Diferentemente do que se pensa, no Brasil não existe tanta “impunidade” – termo comumente associado a crimes de corrupção cometidos por políticos, empresários, e personagens da elite econômica que, raramente, tem pena de prisão decretada – e cumprida sem graus de liberdade. O que existe, genericamente, é a punição seletiva de determinadas categorias da população. Ou seja: a pena de prisão é aplicada dependendo das condições em que um crime for cometido; dependendo da natureza de classe, raça e cor de quem o comete; e dependendo da quantidade de recursos financeiros disponíveis para o réu. Para comprovar essas afirmações, não é preciso nem citar fontes. O senso comum do brasileiro sabe que, se há algo de podre no país, certamente a putrefação passa por dentro do Poder Judiciário, da Administração dos presídios e casas de detenção pelo Poder Executivo, e das Forças de Segurança estaduais – as polícias Civil e Militar.
Assim, ao invés de citar fontes, vou exemplificar o quadro com uma experiência pessoal (6): a observação de uma audiência em Vara Criminal em um Fórum nas redondezas da cidade do Rio de Janeiro (RJ). Uma vez presenciei um caso que exemplifica a impossibilidade da Justiça no nosso sistema. Um rapaz de 18 anos, cuja família e toda sua comunidade sabia que não tinha envolvimento com narcotráfico, foi preso, por acidente – estava no lugar errado e na hora errada – junto com mais três traficantes, menores de 18 anos. Na ocasião da prisão, os policiais militares torturaram todos eles, e encontraram uma quantidade de drogas considerável escondida na favela. O mais torturado (aparentemente por mais de 2h) foi justamente o rapaz que nada tinha que ver com isso, uma vez que não sabia o que dizer aos policiais. Ao término da sessão de horrores, e confrontados pelo pai do menino, os policiais lhe disseram que, por 5 mil reais, deixariam o menino livre. O pai, que sabia da inocência do filho, se recusou a pagar qualquer valor. Como o menino era o único maior de 18 anos, toda a apreensão de drogas foi imputada a ele, que ficou preso sem qualquer possibilidade de relaxamento da prisão. Depois de inúmeras tentativas de livrar seu filho por meios legais, e entregue ao desespero, a família recorreu a Corregedoria da Polícia, alegando que iria denunciar os policiais em troca de proteção. Só que havia um problema: o Estado poderia proteger a família; mas não teria como proteger o rapaz que estava em presídio – afinal, os presídios não são controlados, de fato, pelo Estado, mas por facções criminosas em diferentes graus de conluio com a corrupção policial. A única opção da família era ficar de mão atadas esperando o julgamento – e o pior.
Este caso, aparentemente dramático, termina mal – embora pudesse ter sido pior. O rapaz preso sofre todo tipo de violência no presídio. Os outros, menores de idade, são soltos em poucos meses, enquanto o único inocente do grupo, preso por engano e sob tortura, cumpre quase um ano de detenção a espera de julgamento. O julgamento não poderia ser pior: três audiências ocorriam ao mesmo tempo – marcadas para o mesmo horário -, com os mesmos juízes, promotores e defensores públicos, que mal conseguiam dar conta de conhecer cada processo, cada caso. Lembro de conversar com o promotor e, questionando sobre este caso, ouvir a seguinte frase: “mas isso que você está falando acontece direito, é normal. Que é que a gente pode fazer?”. Esta frase de um ator estatal deve nos levar a pensar que o caso não pode ser tomado como exceção: ao contrário, vivemos num tempo que a exceção virou a regra.
Meu ponto aqui é que, mesmo diante de todos os absurdos contidos nesse caso, é impossível defender o sistema penal instalado no país e suas torpes consequências – incluindo o fato de que, neste caso, os traficantes de 17 anos alcançaram liberdade antes do único inocente, maior de 18 anos. Um sistema absolutamente injusto só pode produzir injustiça. Assim, se ao observar práticas de tortura e pedidos de suborno pela Polícia Militar; omissões, contradições e mais pedidos de suborno por parte da Polícia Civil; e a situação de caos e falta de controle público sobre o que acontece dentro dos presídios; se diante de tudo isso, ainda nos prestamos ao discurso da redução da maioridade penal, não há dúvidas: contribuiremos para continuar com este ciclo maldito que ocorre sob os cuidados do Poder Judiciário dos Estados Federativos brasileiros, que jamais produzirá justiça alguma.
Há, no entanto, um movimento contrário que se articula pela punição injusta. Diversos partidos políticos e grupos de mobilização social conservadora defendem o contrário: que é preciso punir jovens entre 16 e 18 anos, nas mesmas condições em que maiores de 18 são punidos hoje. Estas pessoas não desconhecem, por exemplo, as torpes condições dos presídios brasileiros – e mesmo das instituições encarregada de encarcerar menores -, onde os presos vivem leis impostas por facções criminosas, que frequentemente levam as recentes rebeliões decorrentes desta situação no Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Rio Grande do Sul, e Ceará. Elas não desconhecem casos como o da Polinter de Neves, no Rio de Janeiro – que colocou crimes contra a humanidade em um patamar mais próximo de nós, fazendo de cada brasileiro um cúmplice. Eles sabem que, praticamente todas as instituições punitivas brasileiras onde rebeliões acontecem, tem mais prisioneiros ou detentos do que sua capacidade máxima.
O que leva, então, cidadãos que conhecem esse quadro a defender a extensão deste sistema a jovens brasileiros cuja idade esteja entre 16 e 18 anos – ou menos? Penso que é aquilo que denomino “tese da punição injusta positivista”: a compreensão perversa de que o Estado deve agir com crueldade e terror – ainda que em desrespeito a Constituição Federal – contra cidadãos que cometeram crimes. Esta posição, geralmente defendida por grupos que se enquadram como “direita” no espectro político, se articula de maneira coerente na obra de Norwan Jewinson na personagem do Judge Fleming, um juiz positivista, cético, ligado ao movimento de “Lei e Ordem” estadunidense, que pode nos ajudar a compreender a defesa da redução da maioridade penal no Brasil. Em uma das cenas incluídas na Edição Especial do DVD, há outro diálogo com Fleming, em que este expõe seus motivos e sua teoria social, que embasariam suas decisões legalistas:
“A cadeia tem que ser assustadora. Deixe que os criminosos criem seu próprio inferno. Sabe, a punição justa não funciona. Precisamos de punição injusta. Enforque alguém por assalto à mão armada. Nada temos a perder (…). Você não entende. Vocês com suas idéias de reabilitação. Esse conceito de reabilitação é uma farsa.” (Judge Fleming)
Em referência a esta cena – e comprovando o retrato do juiz positivista como adepto de um ceticismo ético – o diretor revela:
“É como se o personagem de Fleming (…) pomposo e altamente egoístico, que é totalmente antiético (…) estivesse dizendo: ‘Não há ética. Não há moralidade. Está tudo escrito no livro. E, de acordo com o livro, você é culpado‘” (Norman Jewinson)
Neste texto, gostaria de deixar claro para quem ainda tem dúvida, que a redução da maioridade penal na conjuntura atual, não apenas não reduzirá a violência, como contribuirá para sua perpetuação e aumento. Na medida em que esta pauta, como discurso político, fortalece grupos cujo objetivo é legitimar a perpetração de injustiças pelo Estado contra determinados grupos, etnias e classes, é preciso se opor a esta medida. A articulação teórica da redução da maioridade penal, neste momento, se dá no contexto em que os governos Estaduais não tem controle dos próprios presídios – onde boa parte da administração penitenciária é feita por facções criminosas e em condições de holocausto nazista.
É necessário investir dinheiro, recursos públicos, no sistema prisional. Infelizmente, as mesmas pessoas e grupos que defendem a redução da maioridade penal – ou seja, defendem a sujeição de jovens detentos a condições de degredo e/ou tortura – são as primeiras a se opor a estas medidas. Assim, sempre surge o discurso de que “este dinheiro deveria ser investido em educação” quando qualquer governo procura mudar este quadro – o que só prova que o mesmo grupo deseja a perpetuação da injustiça como teoria social de controle sobre determinadas categorias sociais – geralmente “pretos” e “pobres”. Tal qual o juiz Fleming, há pessoas que articulam teoricamente seu pensamento para produzir resultados injustos, através de medidas de terror e sofrimento aos que odeiam.
[N.E] Postagem original no Blog do Autor http://marcusviniciusmatos.wordpress.com/2013/05/15/perversidade-justica-para-todos-mas-punicao-para-alguns/
“É necessário investir dinheiro, recursos públicos, no sistema prisional.”
Discordo, é necessário somente não desviar os recursos públicos destinados ao sistema prisional.
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Pingback: Perversidade: Justiça para todos, mas punição para alguns | A Palavra Humilhada
Esse filme é dos mais trabalhados em curso de Direito Principalmente no primeiro semestre. Alguém tiver a grandeza de desertar alguma prerrogativas e deveres do Estatuto do advogado seria muito bacana , pois ajudaria a galera do primeiro semestre a compreensão do que é o Estatuto e como se caminha um aplicador da lei dentro desses contextos e aspectos desse maravilhoso flime .
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