Shaw ao Menos Puxou o Rabo da Bicha

[Paulo Francis]

Me lembro que em Londres tentei entrevistar Stanley Kubrick via um amigo comum, Jack Braun, ex-jornalista (esteve no Brasil), autor de um livro sobre os Beatles e produtor de cinema. Não deu pé. Braun me explicou que Kubrick fica muito nervoso com a im­prensa. Que quando disse a ele que eu tinha entrevistado Bertrand Russell e Konrad Lorenz, a coisa piorou, e Kubrick disse: “Diz a ele que eu concordo com tudo que eles disseram”. Atenção, massas: is­so é humor, qua, qua.

Mas, agora, o Mestre falou, e entendi bem porque ele não quis me ver. Fez muito bem. Azar o meu, que prato, meninos. Falou pra um cara do Times, Craig McGregor, muito favorável a ele. Lendo, notei uma coisa em que bobeei quando pedi a entrevista a Braun (minha conversa com Braun foi no primeiro bar inglês que tinha gelo suficiente). Braun me perguntou o que eu achava dos filmes de Kubrick. Eu, com a franqueza certa no momento errado, disse que não achava grande coisa, mas que, sendo a inteligência dos editores o que é, uma matéria sobre ele, Kubrick, era facilmente vendável, e eu escrevo por dinheiro. Não sei se Braun me cagoetou, mas, afinal, e amigo íntimo de Kubrick, e ainda que a minha matéria fosse publicada em Queimada e eu um total desconhecido, o mercado de cinema dos EUA é hoje 60% no exterior.

Kubrick a McGregor: “2001 dá uma idéia dos meus interesses metafísicos”. Atenção, massas: isso não é humor. O cara está falan­do a sério. Quanto renderão ao ano esses interesses metafísicos, per­gunto eu? 12%? A melhor crítica de 2001 é de Renata Adler, que resumo: “fica entre o hipnótico e o tremendamente chato”. Mas o Mestre diz mais: “Eu ficaria muito surpreso se o universo não esti­vesse permeado de uma inteligência que para nós parece divina. Acho emocionante ter uma crença semi-lógica de que existe muita coisa no universo que não entendemos, e de que há uma inteligência de incrível magnitude fora da terra”. Desde que Sócrates disse a Alcebíades: “Rapaz, você vai acabar mal”, não ouço coisa tão profun­da. E isso tudo em 2001, imagine só, Hedda.

Mas o motivo real da entrevista do Mestre é A Clockwork Oran­ge, filme que vocês provavelmente não vão ver. Os críticos aqui se babaram. Kubrick nunca teve nos EUA sucesso maior de crítica. Mas há um certo mal-estar, pequenino e enganador, no ar. Kubrick foi capa de Newsweeíc e Saturday Review, o que é ótimo, do ponto de vista publicitário. Peso intelectual: 0,5, se tanto. E o Mestre é um Ar­tista. Pauline Kael, o crítico de cinema mais instruído dos EUA, des­ceu a lenha. Kubrick sabe que daqui a alguns anos, ninguém mais se lembrará das capas de Newsweek etc., mas que a opinião de gente como Miss Kael tende a perdurar. Miss Kael levou quase um mês depois da estréia para escrever, provavelmente caprichando para tomar uma posição que ia contra um filme que quase todo mundo estava saudando como “sátira satânica”. Eu próprio, que mandei minha primeira crítica depois da estréia pra Tribuna da Imprensa, tive aquela sensação que todo crítico auto-suficiente tem, nesses casos: “Será que estou maluco, ou eles”? Resolvi que eram eles. Porque A Clockwork Oran­ge é uma exploração e um apelo comercial ao sadismo, que pretende ser uma crítica satírica à sociedade e à na­tureza humana. Ou, como diz o Mestre: “O homem não é um sel­vagem nobre, é um selvagem ignóbil. É irracional, brutal, fraco, tolo, incapaz de ser objetivo quando os interesses dele estão envol­vidos. Estou interessado na natureza brutal e violenta do homem, porque é um retrato verdadeiro dele. E qualquer tentativa de criar instituições sociais com uma visão falsa da natureza do homem está provavelmente condenada ao fracasso”. Kubrick, que é judeu, diz que isso ele extraiu da teologia cristã. Protesto, massas. Até o pobre McGregor nota que isso é maniqueísmo e não cristianismo. E até o pobre McGregor está enganado. Maniqueu era bem mais sutil.

Tirando o “provavelmente”, o resto da fala do Mestre é pura adolescência e leituras mal digeridas. Um debatedor de ginásio, per­guntaria logo: “Está bom. Se a natureza do homem é isso que você diz, como é que você homem (ou será marciano?), pode apresentar um retrato verdadeiro dele? E os teus interesses pessoais, boneca? Ou só o Mestre Kubrick é imune?”

Mas, a sério, a teologia cristã, ética, falando nisso, seria a melhor palavra, teologia é outra coisa, a ética reconhece que o homem é falível e corrupto, mas reconhece também que ele pode melhorar, se tiver valores que transcendam os próprios apetites. É um troço complicadíssimo, sujeito a chuvas e trovoadas. Porque Kubrick quer dizer: “Se o estupro é inevitável etc. etc.” Ele está aderindo a aqueles que são os violentos e corruptos, em vez de analisá-los e enfrentá-los. E não é preciso conhecer muito as diversas dialéticas para perceber que nunca, na História, houve linhas retas. A crença na linha reta é coisa de criança, ou de adulto intelectual­mente atrofiado, como o Mestre. Os EUA, por exemplo, não fazem tudo que querem no Vietnam, nem dentro dos EUA. Citei logo o exemplo clichê-padrão, mas é mesmo o melhor. Logo, a violência é resistível, provoca a contraviolência. Civilização é o que sobra do choque.

E que instituições são essas que têm “visão falsa do homem” a que Kubrick se refere? Novamente a historiadas linhas retas. Kubrick, sem dizer expressamente, está falando da juventude universitária americana. Abro um parêntese para assinalar que nunca pensei que o Movimento tivesse tanto prestígio. Meço o prestígio pelo ódio que desperta. Não há liberal da velha guarda aqui que não odeie — a palavra certa — esses jovens. Se ofendem com tudo que os moços fazem, da subcultura do rock e quejandos, das inalações não bem de Kaufman, da agressividade com que arrebentam alguns laboratórios universitários, usados para planejar estratégias de bombardeios no Vietnam (“A morte chovendo dos céus”, na fase do analista Ithiel de Sola Pool, da M.I.T.), ou para produzir pesticidas, herbicidas etc, que, na verdade, são humanicidas. Engraçado (pois sim) que os tais li­berais suportam perfeitamente a violência sistemática do Estado em que vivem, incomparavelmente superiora dos jovens. Claro, a violên­cia do Estado não lhes quebra os potes de creme. Os jovens, certo — notei, meninos — também são partidários das linhas retas, mas o que eles fazem ou são me parece muito menos ofensivo do que a adesão da maioria do Establishment intelectual à Guerra Fria até 1967-8, quando os Schlesingers e Cia., ao verificarem o fracasso americano no Vietnam, e o que estava provocando internamente no país — ameaçando uma desagregação que poderia prejudicar o status de Schlesingers e Cia., entre outras coisas — começaram a se opor à guerra.

Mas Kubrick, que apresenta o jovem (não é acidental) delin­qüente como o paradigma social, não entende Ihufas de sociedade, nunca nos diz o que é um delinqüente, ou até o que é o delinqüente específico dele. Só vemos o tipo em ação. O filme se passa num vago “futuro”. Ou seja, é um vácuo social.

Kubrick diz que reagimos a Alex, a personagem, porque nos identificamos com ele. No que me concerne, nucopardoca. Eu pra me identificar com alguém, preciso saber o que pensa. Alex, Kubrick, não pensa. E estamos conversados.

Cenas: quando Oscar Wilde foi perseguido por croquetagem, Frank Harris preparou um manifesto em defesa e pediu a Bernard Shaw que assinasse. Shaw disse não, alegando que o nome dele só criaria maiores problemas para Wilde. Harris achou covardia. Análise: Shaw, na época, era tido como “perigoso radical” e agitava pelo socialismo, em pessoa & panfletos. A Rainha Vitória continuava viva. Harris morreu antes de terminar uma biografia de Shaw, atacando-o. Shaw corrigiu as provas finais e escreveu um epílogo muito simpático a Harris.

Na guerra de 1914, Shaw lançou um panfleto, Common Sense About the War, mostrando que Inglaterra (“aliados”) e Alemanha serviam a propósitos imperialistas e capitalistas, mas que, dito isso, preferia uma vitória inglesa. Edmund Wilson acusa-o, em The Triple Thinkers, de “acomodação”. Uma pergunta e um comentário: você, meu caro leitor, em face do mesmo problema, o que faria ? Favorece­ria o Kaiser? Ou se tornaria pacifista, à la Bertrand Russell? Suponha­mos que Russell “vencesse”, e os ingleses baixassem as armas (três pontos, em verdade). O comentário: Wilson, em 1938 (data dos Triple Thinkers), acreditava que guerras eram sórdidas maquinações in­glesas que bebiam o sangue e o capital dos EUA. Wilson só mudou essa opinião pitoresca em 1963.

Shaw apoiou Hitler, Mussolini e Stalin. Detestava o anti-semitismo de Hitler e previu que acabaria destruindo-o. Nunca acreditou que Trotsky fosse o vilão da literatura stalinista, ou que Stalin não passasse do bandido da literatura trotsquista. No mais, achava que os três cavalheiros eram revolucionários modernizadores do liberalismo podre e falso da Europa.

Bernard Shaw foi o grande amor da minha adolescência. Es­colhi-o como tema do 300° número deste jornal porque Shaw é o humorista número uno (sem acento no “u”, fazendo o favor) da nos­sa fuckedup era e porque sei que ninguém mais se lembrará dele, logo, honra ao mérito. Reconheço o meu caretismo em falar de Shaw porque ele é um intelectual e nóis tem Berre, beatles, help, o rock horror show, motocicletas, surf (planchar, me dizem), Kojack, a teoria do auteur e, claro, Guttenberg já era, e Allan Bullock en­cabeçou uma comissão analisando porque a maioria dos univer­sitários em Oxford não sabe ler ou escrever. Quando William Archer conheceu Shaw na sala de leitura do Museu Britânico o distinto lia, alternadamente, O Capital, de Marx, e a partitura de Tristão e Isolda, de Wagner, uma combinação hemorrágica, de que estamos, feliz­mente, livres. Para sempre, gu, gu, gu.

E, no entretanto, abram qualquer página, de um prefácio que seja. Jacques Barzun notou numa única 80 referências diferentes. E, acrescento eu, é quase sempre de morrer de rir. Na defesa que faz do stalinismo, ele nos dá uma versão hilariante de como a imprensa inglesa, controlada por meia dúzia de piratas, molda a opinião pública a serviço dos interesses da plutocracia, falsificando fatos, acontecimentos etc., com a mesma alegria que encontramos nas páginas de Pravda. Nada disso é novo, claro, mas Shaw deu um estilo, um humor, uma clareza (acessível a qualquer ginasiano não totalmente estupidificado por hash ou David Bowie), uma amplitude a essa crítica de que nunca existiu, ou existe, paralelo. Nada escapou à visão dele.

Já sei, vocês querem que eu explique a defesa de Hitler, Mus­solini e Stalin. Edmund Wilson subiu pelas paredes e não foi o único. Até admiradores extremados, Eric Bentley etc, consideram um baixo. Eu acho coerente. Nas peças, Shaw sempre apresenta todas as opiniões por igual. Em Major Barbara, um “mercador da morte”, um fabricante de munições, Undershaft, faz uma defesa do capitalismo de que nenhum capitalista que conheço é ou foi capaz. Os inqui­sidores de Santa Joana se saem muito bem, lógica e historicamente. Quando Shaw saiu pró-Hitler, Mussolini e Stalin, o mundo estava na Grande Depressão, o capitalismo-liberal deteriorava sobre o cadáver-em-vida de milhões de desempregados e miseráveis e, obs­tinadamente, os donos da bola, se recusavam sequer a reformá-lo. É “bem” horrorizar-se com os fornos crematórios de Hitler e os expur­gos de Stalin, agora permanece inconvencional notar que a mani­pulação de preços de fertilizantes na índia pela familia Rockefeller via o Departamento de Estado tem o mesmo efeito sobre dezenas de milhões de pessoas. Shaw não caía nessa.

Shaw percebeu os elementos modernizadores do fascismo. Há alguns meses atrás, li um ensaio de Geoffrey Barraclough, onde ele diz o mesmo, repudiando versões liberais do nazismo (cujo fim da linha é o cinema de Hollywood, “a mente diabólica de Adolf Hittler” etc). Shaw percebeu Adolf Hitler em 1934, os historiadores conven­cionais a partir de Origens da II Guera Mundial, de A.J.P. Taylor, atacadíssimo na época, hoje rotina.

Não se trata de justificar os crimes abomináveis (OK, o clichê esperado) de Stalin, Hitler ou Mussolini (este muito superestimado em criminalidade), e Shaw, claro, morto em 1950, não pegou as pes­quisas de que nos beneficiamos na década de 1960: Os liberais, porém, que atacavam o führer, na década de 1930, o duce e o “guia genial das massas”, porque antilibertários e homicidas, não salvam da indignação o tratamento dado pelo Império Britânico aos súditos ou as devastações do capitalismo americano, capitalismo este que, ao contrário do desdentado leão inglês, ao sentir-se ameaçado, nos deu e nos dá o Vietnam, Camboja, Pinochet, Franco, Suharto etc. etc, que “nada ficam a dever” ao nazismo ou stalinismo. É até argumentável que ser posto num forno crematório “doi menos” do que morrer de fome durante 10 anos.

A crítica possível a Shaw é que ele deveria ser individualmente contra toda a espécie de desumanidade, lixando-se para sistemas ou “visões a longo prazo”. Shaw, porém, era um racionalista, um salvacionista sistemático, e não um humanista à la Simone Weil, que chorava as desgraças do mundo. Shaw trouxe ao Século XX, com brilho incomparável, a tradição do iluminismo do Século XVIII. Acreditava na vida. Aos que desistiram, ele é, compreensivelmente, intolerável. Os verdadeiros anti-Shaw são Pinter e Beckett. Talvez sejamos aquilo que eles dizem, o que não é muito agradável, agora eu prefiro o mundo de Shaw ao de Henry Kissinger, este o “livre”, imundo.

E nada disso nos impede de gozar o homem que escreveu Cinderela e a fonética (vulgo My Fair Lady), que estabeleceu a perfeita relação entre o careta e o não careta (Candida), que trouxe Joana D’Arc à terra, dando-nos uma aula sobre nacionalismo, feudalismo, inspiração e mediocridade que não se aprende no colégio, ou que deduziu, sempre comicamente, que o fim de uma classe dirigente não é o lamento, à la Chekov ou Eliot, e, sim, a bomba (Heartbreak House, grande sucesso do Old Vic, em Londres, quando escrevo), que nos ensinou, críticos de teatro, a diferença entre ator e estrelai que nos revelou Oscar Wilde (bobeando apenas e feio em The Im­portance of Being Earnest), o arauto de Wagner, Ibsen e de um fe­minismo inteligente (sem sucessores). E até os religiosos podem aprender. Desconheço versão mais satisfatória do Novo Testamento do que o prefácio de Androcles and the Lion. Se é falsa, o que são as outras?

Parte da implicância contra Shaw em círculos alfabetizados é explicável pelo humor dele. Nada ofende tanto aos pomposos se­nhores da terra como o humor, de Platão em diante (Platão queria banir os poetas da República porque Aristófanes o ridicularizava). Essa gente quer ser tomada a sério, “seu”, o Brezhnev cara de porco, o AE na Casa Branca, os cavalheiros de penduricalhos.

Shaw era humano o bastante para colocar-lhe na boca pensa­mentos expressos articuladamente — o que é excesso de generosida­de, no meu entender — mas ria deles, virava-lhes as pretensões ao avesso. E os críticos insistem em chamá-lo de “olímpico”, inumano, haverá coisa mais ridícula? Shaw fez muito em tratar-nos como seres racionais.

Se a vaca vai mesmo para o brejo, Shaw ao menos puxou o rabo da bicha.

shaw-francis

[N.E] Titulo original  ” A Cuca de Kublick”  extraído do livro Paulo Francis Nu e Cru  de 1976

Um comentário sobre “Shaw ao Menos Puxou o Rabo da Bicha

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