Imagina Depois da Copa

[Antonio Engelke]

Suponha, por exemplo, que sua filha adolescente esteja quase a ponto de repetir o ano na escola. Você a pagaria para estudar, caso ela sugerisse que uma mesada mais generosa seria um ótimo incentivo? Ou então: imagine que você e sua irmã estão decidindo como repartir os bens deixados pelo seu pai. Vocês colocariam absolutamente tudo à venda, inclusive os objetos que encarnam a memória da família? Vender todos os bens seria de fato a solução mais vantajosa economicamente, mas vocês perderiam aquilo que consideram mais valioso. Pagar para sua filha estudar poderia até evitar a repetição de ano, mas você estaria lhe ensinando que o conhecimento não tem valor intrínseco algum.

Toda vez que a lógica econômica, que reduz tudo a um cálculo de dinheiro baseado na relação custo x benefício, sai de seu habitat natural (o mercado) e invade outros lugares, gera um mal estar. O Mensalão chocou pelo mesmo motivo. Deputados devem aprovar leis porque acreditam que elas sejam necessárias ou benéficas à sociedade como um todo, e não porque são subornados periodicamente pelo partido que está no poder. Se os parlamentares envolvidos no Mensalão tivessem votado exatamente da mesma forma que o fizeram, só que sem terem sido pagos pelo PT, não haveria escândalo algum. O fato deles terem recebido dinheiro para votar é o que muda tudo. Este fato, não podemos aceitá-lo, sob pena de esvaziarmos a política democrática de sua substância – a busca de consensos orientados para a realização do interesse público.

O curioso é que quando se trata de pensar a cidade, o espaço público, a maioria das pessoas não aplica o mesmo raciocínio. “A cidade é uma empresa”, diz-se. É uma opinião bastante comum: estamos acostumados a enxergar a empresa como um modelo exemplar de organização, o que explica a vontade de querer transplantá-lo para outras esferas da vida. Aí o problema: uma empresa existe em função do lucro; sem ele, fecha as portas. Já a cidade é um espaço de convivência de cidadãos que compartilham uma trajetória coletiva. Obviamente, uma cidade que gasta mais do que arrecada terá dificuldades em prover os serviços indispensáveis à sociedade. Mas se dissermos que a “cidade é uma empresa”, estaremos abrindo caminho para que o espaço público seja regido apenas pela lógica econômica. Como no caso da herança, da filha preguiçosa ou da compra de votos, isto também gera mal estar, e por motivos semelhantes.

Sabemos que o Rio vem se recuperando economicamente e que precisa se preparar para receber os eventos internacionais dos próximos anos. Mas é preciso observar como isto está sendo feito, ou melhor, os princípios que estão orientando as políticas públicas destinadas a transformar a cidade e a vida de seus habitantes. Por exemplo: o maior gargalo de transporte público no Rio de Janeiro não está na Zona Sul da cidade, mas sim na Baixada Fluminense. No entanto, a maior obra no setor, já em andamento, é a linha 4 do Metrô – e ainda por cima num traçado que não foi o reivindicado pela sociedade. Considere também o caso da “revitalização” da Zona Portuária. Para levá-la adiante, a Prefeitura está removendo, com alguma truculência, 671 famílias do morro da Providência. Se reconhecemos que o dinheiro não é mais importante do que a memória encarnada num objeto decorativo que herdamos, por que haveríamos de achar normal que famílias inteiras sejam expulsas do lugar em que nasceram, cresceram e criaram raízes, apenas para que a região fique mais “bonita”?

Quando o assunto é Copa e Olimpíada, temos mais do mesmo. Que dizer da tentativa da Prefeitura de demolir a escola pública Friedrenreich para dar lugar a um estacionamento para a Copa do Mundo? O simbolismo aqui é tão escancarado que quase se faz literal: o espaço da educação vindo ao chão apenas para que carros possam ficar parados. Também é literal a lição da recente interdição do Engenhão. Construído às pressas para o Pan de 2007, o Engenhão estourou em mais de 5 vezes o orçamento previsto. Odebrecht e OAS assumiram as obras já em andamento, dado que a Delta, construtora que recebeu mais de 2 bilhões em obras do governo do Estado, se assumiu incapaz de construir a cobertura do estádio.

No entanto, por que as pessoas sentem indignação quando vêem sinais de corrupção ou superfaturamento em projetos como o do Maracanã e Cidade da Música, mas são incapazes de avaliar criticamente o quão pouco de interesse público há por trás de sua concepção? Não seria melhor se exercêssemos este senso crítico não apenas quando o assunto é corrupção, mas para pensar todos os níveis das relações entre governo e sociedade?* O sujeito abre o jornal, lê que o Museu do Índio será demolido para dar lugar a uma obra qualquer para a Copa e… ignora, logo passando à próxima notícia. Dias depois, chega a Paris em viagem de férias e, embasbacado com a beleza das ruas, elogia a maravilha que é um povo que sabe preservar sua história.

Se a cidade é uma empresa, não sobra muito espaço para atender ao interesse público. E então ficamos reféns daquilo que o historiador Sérgio Bruno Martins, num artigo publicado aqui na Pittacos, chamou de “lógica da chantagem”: ou bem fazemos tudo de acordo com os interesses do mercado, ou não fazemos nada e a cidade permanece degradada. “O importante”, diz Sérgio, “é perceber que a chantagem é um fechamento: não há opção, não há alternativas – não há, enfim, lugar para a imaginação”. Depois de suportar por tanto tempo as mazelas do esvaziamento econômico, seria natural que os cariocas se apegassem com otimismo ao primeiro sinal de recuperação da cidade. Mas para que o otimismo não resulte num ufanismo ingênuo é preciso dar um passo atrás, rejeitar a euforia que transborda dos jornais e perguntar em que cidade queremos viver depois da Copa.

Não estamos condenados a esta falsa oposição entre um Rio de Janeiro decadente, abandonado ao crime e à miséria, e um suposto “novo” Rio cidade-empresa, que “bomba” porque possui um dos metros quadrados mais caros do mundo. Podemos imaginar um meio termo, uma cidade que se desenvolva sem jogar para escanteio os interesses de seus habitantes. Antes de mais nada, faríamos bem em atentar para esta invasão da lógica econômica sobre as decisões políticas, e rejeitá-la. O dinheiro importa. O dinheiro não é tudo que importa.

* Devo o argumento a Sérgio Bruno Martins, a quem agradeço a leitura e a crítica à uma versão preliminar deste artigo.

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