[Jorge Coloneze]
A morte do líder político Hugo Chávez, Presidente da Venezuela, me fez resgatar algumas recordações do tempo em que lá vivi. Por dever de profissão, fixei residência em Caracas no segundo semestre de 1993. Foram, a partir de então, sete longos anos de crises, anteriores ao governo de Chávez, que chega à presidência da república em 1998. Logo no primeiro mês de 1994, a Venezuela foi impactada – e com isso, o meu trabalho a frente do Banco do Brasil – por uma crise bancária que duraria dois anos e levaria para o ralo sessenta por cento dos recursos dos bancos e das companhias de seguros. Entraram em falência várias instituições, desesperando milhares de correntistas e desempregando um grande número de funcionários do setor financeiro.
A Venezuela era um pântano para quem dirigia um banco, devido aos enormes riscos de desvalorização da moeda nacional, o bolívar, dentre outros graves problemas. A forte insegurança jurídica fazia o sobressalto ser permanente. Quase todos os anos enfrentávamos alguma crise: ora de fora, como a redução dos preços do petróleo, principal riqueza do país; ora de dentro, como a da falência dos bancos.
Os primeiros seis meses de minha estadia naquele país, ainda em 1993, foram de intenso aprendizado. Eu buscava compreender as razões das profundas mazelas da Venezuela. Sem muito custo, pude perceber que as elites haviam “desmantelado” as receitas nacionais do ouro negro desde o fim da ditadura do general Perez Jimenez, em 1958, até a primeira eleição do Chávez, quarenta anos depois.
Dizia-se que essas elites possuíam no exterior o equivalente ao PIB do país, além de negócios e residências em Miami, distante menos de três horas aéreas de Caracas. Parece exagero, mas quem lá viveu e conheceu autoridades, políticos, banqueiros, empresários e dirigentes da empresa estatal de petróleo – PDVSA – , sabe que isso era não apenas possível, mas claramente verossímil. Nestes 40 anos, a riqueza do petróleo gerada pelo país produziu duas ou três obras importantes, tendo o restante sumido, em descaminhos previsíveis.
Com esse quadro de espoliação da riqueza nacional, é compreensível que a população não desenvolvesse qualquer confiança na democracia instalada após o término da ditadura do general Jimenez, em 1958. A miséria aumentou lenta mas significativamente; a maioria dos cidadãos venezuelanos foi sistematicamente submetida a escolas muito ruins, péssima assistência à saúde e condições degradantes de moradia. A criminalidade alcançou níveis dos mais altos da América Latina, consequência trágica do estado de coisas existente. Os ressentimentos da população com relação aos segmentos mais abastados da sociedade se acirravam.
Estrategicamente, as elites cuidavam em manter uma polícia muito bem equipada e treinada, que usava de extrema violência na garantia da ordem pública. Jamais havia presenciado um sistema de justiça de práticas tão condenáveis, ainda mais parcial que o do Brasil, e que só levava às prisões os pobres ou miseráveis.
Confesso que quando cheguei, no segundo semestre de 1993, fiquei muito preocupado pela segurança da minha família. No ano anterior, em 1992, Chávez havia liderado um golpe militar sangrento, frustrado, contra o governo de Carlos Andrés Perez e foi preso. Dizia-se que a polícia tinha matado muita gente nas ruas e nos presídios, nos dias do ataque a lugares específicos da cidade de Caracas. Ouvi isso de venezuelanos e de brasileiros que lá trabalhavam, que ainda guardavam os eventos bem vivos na memória. Era voz corrente que o número de mortos teria sido de mais de mil pessoas.
Alguns brasileiros, executivos de empresas e bancos estrangeiros, me relataram que a situação era tão perigosa que eles e seus vizinhos se organizaram para um revezamento, com vistas à segurança armada de seus prédios.
Chávez ficou dois anos preso. Ainda em 1993, o Presidente Carlos Andrés Perez sofre impeachment, iniciando-se, em seguida, uma acirrada campanha eleitoral entre os dois partidos que controlavam o país há 35 anos, alternando-se no poder e na “propriedade” da chave do cofre. Rafael Caldera, Presidente eleito para o período de 1994 a 1998, procurando evitar transformar Chávez num herói, concedeu-lhe o indulto. Chávez, então, mudou de estratégia: criou um partido político e correu o país angariando apoios e aliados. Fez uma campanha avassaladora, com um discurso enérgico e inflamado, e em novembro de 1998 foi eleito, assumindo em fevereiro de 1999, nos braços do povo.
A campanha de 1998 foi tão conflituosa que os embaixadores de vários países, inclusive o do Brasil, organizaram esquemas de retirada de seus cidadãos do país, em caso de convulsão social, que era o esperado. Pânico era o núcleo do comportamento dos que perdiam o poder; ouvia-se por toda parte boatos de que não deixariam Chávez assumir, ao que os chavistas respondiam que iriam garantir a posse. Na colônia brasileira, fiquei incumbido de ser o contato de um certo número de brasileiros, caso houvesse a tal retirada. Era difícil crer que vivíamos uma tal situação, de fato, imensamente tensa e insegura, de modo que a titulação do vencedor das eleições foi, afinal, um grande alívio para nós estrangeiros.
Na cerimônia de posse, Chávez declarou que fazia o juramento sobre uma Constituição moribunda. Ao assumir, iniciou imediatas transformações: retirou do poder os inimigos políticos, encastelados no executivo, legislativo e judiciário, e preparou as mudanças na Constituição, submetidas ao crivo da sociedade.
Conheci o Presidente Chávez em um encontro de representantes de banqueiros no Palácio Miraflores, convocados que fomos para assinar um acordo sobre a taxa de juros. A Associação de Bancos percebeu que não havia espaço para contestação e que era conveniente assinar o acordo. Levei uma pequena lembrança, um livro de fotos do Brasil e um CD de MPB, brindes que o banco oferecia a clientes. Ao final da reunião, aproximei-me dele, que concedia entrevista a um jornal. Ele percebeu que eu o aguardava, e imediatamente terminou com o jornalista e esperou que eu falasse. Quando eu disse que era o Gerente Geral do Banco do Brasil na Venezuela, abriu um enorme sorriso e me deu um forte abraço, dizendo que o Brasil era um país irmão e que encontraria com o Presidente Fernando Henrique Cardoso, em poucos dias, na fronteira do Brasil com a Venezuela. Disse ainda que se eu quisesse qualquer coisa, ele falaria com o FHC. Conversamos um pouco sobre os interesses comerciais dos nossos países e me despedi. Nesse momento, antes que me afastasse, chamou um assessor e disse que trocasse número de telefone comigo e que me atendesse em qualquer necessidade.
Cito esse episódio, ocorrido logo no início de seu governo, para mostrar como ele era envolvente, estabelecendo logo uma relação próxima com o interlocutor: sorriso largo, abraço forte, tapinhas nas costas, cochicho. Nisso, muito semelhante ao Presidente Luís Inácio Lula da Silva. Achei mesmo que ele agia assim porque era uma característica de sua personalidade e não porque forjava uma figura política carismática, usando a empatia como estratégia eleitoral. Foi uma das pessoas mais cativantes que conheci. Era implacável com os adversários; carinhoso e generoso com quem ele considerava amigo.
Residindo na Venezuela, convivi com o governo de Hugo Chávez ainda por um ano e meio. Até meu retorno para o Brasil, em meados do ano 2000, acompanhei pela televisão vários dos seus pronunciamentos, pois precisava seguir de perto tudo o que o governo fosse fazer. Em eventos públicos, Chávez falava durante muito tempo. Era um político estudioso e bastante hábil. Sentia-se que a população tinha uma ligação direta com ele: era carismático, certamente, mas não no sentido de um líder populista, se isso significa o uso do carisma para ludibriar a população.
Ao longo dos anos, modifiquei algumas vezes minha avaliação sobre Chávez. Ali, em 1998, entendi ter sido muito bom para o povo pobre venezuelano que ele tivesse ganhado as eleições diante daquelas oligarquias parasitas e carcomidas. Depois, já de volta ao Brasil, passei a ter uma percepção ruim do seu governo, sem contraponto, vendo-o como um típico caudilho latino-americano. Hoje, penso que esta percepção negativa se fez pela perda de sensibilidade: longe do solo venezuelano, eu me afastei da visão imediata que me fazia compreender as razões e a importância do surgimento daquele líder popular
Chávez foi um líder político polêmico, muito difícil de avaliar. Com o tempo, o conhecimento sobre seu legado se ampliará, certamente. Desde sua morte, vejo muitas análises sobre tudo o que ele fez e verifico que ele agiu em inúmeras dimensões, tanto no âmbito interno, quanto no plano das relações internacionais. Para o bem e para o mal. O balanço da análise dependerá do perfil do analista e do tempo decorrido. Seu governo foi, por exemplo, muito eficaz na implementação de diversas políticas sociais, reduzindo enormemente a miséria e a pobreza. Por outro lado, foi muito mal na gestão da economia, fragilizando o país perante a comunidade internacional.
O déficit fiscal crescente, a inflação descontrolada e o câmbio sobrevalorizado passaram a comprometer a manutenção dos programas sociais nos mesmos níveis do período da bonança. Em seu último embate eleitoral, viu seu prestígio ser arranhado pelo avanço da oposição, que conseguiu reconquistar parcelas insatisfeitas da classe média. A população pobre o venera; os demais, o odeiam. Há, naquele país, uma cisão não resolvida, e que não é nem um pouco irrelevante para o futuro da Venezuela.
Para a economia do Brasil, o governo de Chávez foi bom. Empresas brasileiras foram muito beneficiadas com o grande crescimento de suas vendas ao parceiro andino, o que contribuiu bastante para o crescimento das nossas reservas internacionais. No início do governo Chávez, o Brasil enfrentava um pequeno saldo comercial negativo e hoje exibe, a cada ano, um superávit de US$ 4 bilhões, passível de crescimento, pois o Brasil ocupa o quarto lugar como fornecedor de mercadorias e serviços à Venezuela, com uma pauta de produtos bastante diversificada. Governos anteriores ao governo Chávez não se interessavam pelo Brasil e só apoiavam iniciativas e projetos na área comercial com os Estados Unidos. Na política externa, Chávez protagonizou inúmeros episódios, no mínimo mal explicados. Mas sempre trabalhou com empenho pela integração dos países latino-americanos, tendo iniciativas importantes que o Brasil deveria e poderia ter tido.
Era um homem de muita coragem, como se sabe, e isso a maioria das pessoas admira, ainda que possa discordar de seus métodos de fazer política.
Muito bom. Uma das análises mais isentas sobre Chavez que eu li até hoje. Livre do viés das paixões político-ideológicas.
Grato
Edison Torres
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