[Rose Ferreira]
Quando o ciclista Americano Lance Armstrong (41) confessou ter usado substâncias proibidas em todas as sete vezes que venceu a competição ciclística Tour de France, seu concorrente Britânico Bradley Wiggins 32 assim resumiu a questão: “Eu olho para trás agora e penso que ele certamente me roubou talvez o terceiro lugar no Tour de France [de 2009], a chance de subir naquele pódio e de experimentar que gosto tinha”.
O tom lastimoso da mensagem de Wiggins não se origina, no entanto, no sentimento de derrota. Ele não sabe, e nunca saberá, se aquele terceiro lugar lhe pertenceria fossem outras as circunstâncias. A verdadeira fonte da comoção do Atleta, e que impacta quem o assiste, é o rancor daqueles que se descobrem logrados. Confesse o que confessar, Armstrong provou da glória dos campeões no momento da vitória. É o único que pode dizer que gosto tinha. E nada agora pode mudar isso. O que torna esse logro tão odioso é que – ademais de incitar a aversão popular ao uso de drogas, e desafiar a inclinação instintiva que temos pelo fair play – ele fere um preceito antigo que reza que apenas os melhores dentre os melhores devem ser coroados pela glória. Princípio que regia a ética cavalheiresca medieval. O apelo à ética dos antigos contra os artifícios de Armstrong é evocado no desabafo de Wiggins: “me recordo dando uma entrevista nos Champs Elysees dizendo: ‘eu não me importo de admitir isso, mas eu fui batido por três corredores muito melhores, e eu estou feliz por estar entre eles e terminar em quarto lugar”. Ou seja, a admissão da trapaça convertia o herói em um mero impostor infiltrado no reino dos eleitos.
Wiggins não está ciente de que o princípio que evoca contra Armstrong foi de há muito corrompido pela lógica que inspirou sua alegada antiética. Armstrong não é um cavalheiro; não foi, certamente, o orgulho de pertencer a uma casta ascendida a algum reino vedado aos mortais que o induziu à trapaça. Tampouco é credível que tenha sido por pudor ou remorso que se precipitou em confissão publica pela TV. Armstrong é um moderno. É a fome, a voracidade, o desespero por reconhecimento, publicidade e fama que o move. Terrível admitir, mas tudo perfeitamente natural para um moderno.
Giremos a lente para outro herói dos tempos modernos, dessa vez na aurora da modernidade. Seu nome é John Keats, um jovem poeta que viveu na Inglaterra entre 1795 e 1821. John viveu em 24 anos uma tormentosa existência. Como Wiggins, ele acreditava sinceramente na ética dos antigos, e a celebrizou em uma frase que ficaria famosa: “’if poetry comes not naturally as leaves to a tree, then it had better not come at all”. Se a criação não viesse pelo talento, era melhor não vir de forma alguma. Mas, como Armstrong, ele era obcecado pela fama e imortalidade. Seu herói era, então, o poeta mais reverenciado de todo o mundo Ocidental e John queria desesperadamente juntar-se a ele. Morreu no dia 23 de Fevereiro, ironicamente, dia em que os antigos Romanos celebravam o festival de Terminália, em honra ao deus Terminus, último dia do ano romano. Por epitáfio ele mesmo sugeriu: “Aqui jaz alguém cujo nome foi escrito na água”.
Enganava-se. Quase duzentos anos depois, um passante por uma magnífica ruela do belíssimo bairro de Hampstead, em Londres, vai ler em uma pequena placa azul que emerge de entre casarões e jardins a inscrição: “Aqui viveu o poeta Jonh Keats”. Cruze o passante o pequeno jardim e adentre a vivenda, será ali tomado de impressões contraditórias. O que quer que tenha inspirado a grandiosidade de John Keats não está inscrito nas paredes da mansão, nem na mobília de época cuidadosamente arranjada, nem em qualquer outro recanto da casa. Para o seu desapontamento, o visitante não vai encontrar ao redor traços nítidos do que tenha induzido qualquer esplendor poético. Mas há algo de perturbador ali. Talvez na intuição da dor, ainda fresca na máscara mortuária… Ou quem sabe no retrato de uma frágil figura agonizando no leito de morte dependurado na parede, ou, ainda, na carta escrita pouco antes morrer, enfim, nos vestígios perturbadoramente vívidos da marcha irreversível, inapelável para a morte. Tudo está inscrito ali. No rosa pálido da parede do quarto do poeta, em cada fragmento de carta, nos traços deixados por um passamento dolorido e, sobretudo, nos olhos dos visitantes que absorvem em silêncio essas impressões perturbadoras… Porque o drama de Keats é o drama de todos; a tragédia de Keats é a tragédia da modernidade: uma aterradora onisciência da finitude! O ardor do poeta pela glória fora a ânsia pela imortalidade.
É verdade que keats trabalhou arduamente no seu intento de sucesso. Mas por que os seus contemporâneos não tinham do seu talento muita convicção? Por que foram as gerações futuras a reabilitar-lhe a qualidade estética e dar-lhe a popularidade tão ardorosamente perseguida?
Parte da resposta pode estar contida em uma nova biografia do poeta, publicada recentemente pelo professor de Literatura Inglesa Nicholas Roe. Uma das conclusões do estudo de Roe tem causado muita controvérsia: Keats era viciado em ópio! Sua poesia não só não brotou tão naturalmente como folhas em árvores como provavelmente é frutos de recriação dos devaneios e visões experimentadas durante o transe narcótico. A notícia estourou em todos os tons de sensacionalismo. Mas Keats não está sozinho. Aparentemente, quase todas as grandes obras do romantismo britânico são tributárias do ópio. Coleridge, Thomas de Quincey, Lord Byron, Walter Scott foram todos usuários da droga. Para nós, no entanto, isso coloca uma questão inquietante: teria a tão celebrada “sensilibilité romantic” não passado de ecos sombrios de delírios narcóticos? Terá a nossa moldura ética, estética e política nascido já embebida na trapaça?
Uma coisa há que admitir: os criadores do romantismo são já criaturas românticas, amalgamados em uma percepção estética e existencial irremediavelmente embebida na insuportável onisciência da finitude. São modernos. Assim, quaisquer que sejam as virtudes literárias de John Keats, não terá sido a ignorância dos estetas do seu tempo que o condenou ao fracasso. Foi, por outro lado, a transformação de si próprio em matéria lírica que deliciou o gosto moderno. A obsessão de Keats pelo sucesso ancorado em um talento duvidosamente natural, seu drama pessoal e, sobretudo, sua precoce e dolorida morte, caiu como luva no gosto de uma civilização esquizofrênica: fascinada pelo deleite da dor e aterrorizada pela certeza da morte.
Que dizer a essa altura do ciclista Lance Armstrong, se não que também ele é um logrado da trapaça romântica? Keats e Armstrong são facetas de um único e mesmo drama, de resto resumido pelo próprio Armstrong: “a luta contra o câncer me trouxe uma atitude de vencer a qualquer preço”. Ou seja, a proximidade da morte se converteu em necessidade de agarrar desesperadamente qualquer centelha de existência que pudesse ter sabor de eternidade. Deve ser o gosto do pódio!