Novos Nômades: Emirados Ricos

[Cristina Buarque]

Este texto nasce ao final de uma jornada de cinco meses no campus da New York University Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos. Trata-se de um projeto superlativo, como tudo na região. Lá estão a maior torre, o prédio mais torto, a maior ilha e o maior porto artificial do mundo, entre inúmeras outras peças de espetáculo urbano. A estética local rejeita a monotonia dos ângulos retos. No imaginário sobre Dubai e Abu Dhabi – os Emirados ricos – o delírio arquitetônico é metáfora do que se quer uma experiência social: qualquer ideia pode virar realidade, a imaginação desconhece limites. O capitalismo ganhou versão icônica no Golfo Pérsico. Para a população local de estrangeiros em altos cargos, os expats, os termos do convite são: “venha, faça dinheiro e consuma”.

O luxo converteu-se num traço forte do modo de vida local e devora boa parte dos petrodólares que circulam na região (em tempo: Abu Dhabi acumula 8% da reserva de petróleo do mundo). Mas seria apressado parar por aqui. As grifes que circulam nos Emirados são de todo tipo: além de um sem número de marcas de roupa e joias, tem também Louvre, Guggenheim e Sorbonne (que disputa capital simbólico com a competidora americana). Desde 1971, a dinastia Al Nahyan, que conduziu a independência dos Emirados em solução de continuidade com o governo britânico, cuidou de planejar e diversificar a economia para fugir da sina monotemática dos países produtores de petróleo. Além de capital do consumo, Abu Dhabi também almeja lugar de ponta nos mercados de arte e educação, sem restrições financeiras na criação de uma infraestrutura de base para isso.

Além de museus de fôlego, o ambicioso projeto de Saadiyat Island, ainda em curso, também abrigará o novo campus da New York University. Estabelecida há três anos, a NYU de Abu Dhabi disputa alunos com Harvard, Princeton e outras entre as principais Universidades nos Estados Unidos. Recrutados em escolas de elite em toda parte do mundo, os estudantes têm incentivo de peso para escolher o Oriente Médio: custos de moradia e estudos em instituição com prestígio internacional subsidiados pelo governo de Abu Dhabi. Universidade e governo parecem bem afinados num objetivo comum: formar profissionais disputados nos seus respectivos mercados de trabalho que levem a marca NYU Abu Dhabi pelo mundo afora. Tanto na arte quanto na educação, os sinais de reconhecimento em busca visam os mundos ocidental e árabe.

Tudo isso se passa numa cena autoritária e de extremo conservadorismo religioso. Os Emirados são uma federação de estados absolutistas, entre os últimos do mundo, com notável estabilidade política, sem ecos aparentes da primavera árabe. Diferente de outros países produtores de petróleo, em que uma elite beneficiada pela exploração exibe sua fortuna a uma massa de desvalidos, não existe aqui população nacional miserável. Há nos Emirados uma importante rede de proteção social a serviço da diminuta população local, com estado de bem estar social invejável e estratégias vigorosas de proteção de mercado. Todos os negócios sediados no país, por exemplo, devem ter cidadãos nacionais como sócios majoritários, o que os isenta de investimentos e limita a fuga de capital. Soma-se a isto a reserva de empregos públicos aos locais. A desigualdade entre nacionais não configura, portanto, contrastes sociais relevantes. O que resulta disto é um cenário de nacionalismo pronunciado.

Em pouco mais de quarenta anos, a nação de beduínos no deserto converteu-se em população abastada, apoiada num exército de mão de obra imigrante em precárias condições de vida. Esta é a contra-face violenta do luxo. Babás, empregadas domésticas, operários de construção civil e motoristas de taxi, entre outros trabalhadores de baixa qualificação, são importados sobretudo da Índia, do Paquistão, do Bangladesh e das Filipinas em contratos muitas vezes denunciados por organizações de direitos humanos como irregulares. O principal meio de controle social dirigido a estas populações é a permissão de residência. Há um sistema rigoroso de vinculação do empregado ao empregador que significa, na prática, a supressão de liberdade laboral. Os tempos curtos de visto – e a imprevisibilidade sobre sua renovação ou não – impedem planos de médio e longo prazo na região. As idas e vindas de seus países de origem, com fins de renovação de contrato ou mesmo recontratação, constituem a dinâmica da permanência precária nos Emirados, que não ultrapassa a vida útil do trabalhador. A residência é condicionada a visto de trabalho ativo e a cidadania local sequer figura no horizonte de possibilidades do imigrante. Há hoje uma segunda geração deles, nascidos e criados nos Emirados que, uma vez ingressos na idade adulta, são obrigados a deixar o país para fugir da ilegalidade. E muitas vezes o fazem pela primeira vez.

Na outra ponta da linha da imigração estão os expats, atraídos para a cidade com altos salários e benefícios que não alcançariam em seus países de origem. Em comum com os labours, eles têm a condição de permanente impermanência, como chama atenção Sayed Ali em livro esclarecedor sobre Dubai. Juntos, expats e labours somam cerca de 90% da população residente nos Emirados. Sem nenhum sentido de futuro no país – ou ao menos, sem nenhuma clareza sobre o futuro imaginado – experimentam a condição de novos nômades. A não ser para os cidadãos locais, os Emirados são lugar de transição ou de permanência insegura, ameaçada pela extradição potencial.

A despeito da distinção essencial entre os dois grupos, outra condição comum ainda parece atravessá-los: por desinteresse ou renúncia (voluntária ou impelida), a política não ocupa suas vidas. Ao definir os Emirados como destino, o imigrante parece aderir à condição tácita de não se imiscuir em temas da vida pública. O desvio deste padrão é punido com extradição. O que resulta disso é um cenário de esvaziamento da política, descartada como desimportante ou desfuncional.

Curioso é notar que um dos principais eixos do capitalismo na cena contemporânea tende a ser descartado como objeto pouco nobre de estudo. A bibliografia sobre Emirados, escassa, não resiste a um mês de leitura intensa. Cientistas sociais parecem aderir ao lugar comum na referência a Dubai e Abu Dhabi: o lamento pela ausência de história. Sem um passado palpável, materializado em prédios e centro históricos, as duas capitais e suas megalomanias arquitetônicas seriam artificiais – e por consequência desinteressantes.

Esta perspectiva assinala duas visões simplificadoras da história. A primeira delas é a compreensão da história como fenômeno estritamente material e público. Em todo mundo, esse tradicionalismo selou, por exemplo, o desinteresse por populações nativas, que deixaram frágeis lastros materiais. Com a cultura beduína não é diferente: nômade, tendeu a localizar-se nos espaços privados, em prejuízo das práticas de exibição de sociabilidade, tão caras a culturas ocidentais. As altas temperaturas durante período extenso do ano não inspiraram e não inspiram reunião em lugar público. Apesar do abismo cultural entre esta geração e a de cinquenta anos atrás, quando o petróleo e o ar condicionado ainda não haviam revolucionado os modos de vida local, elas parecem ainda ligadas pelos hábitos de hospitalidade. Os visitantes são peça central na arquitetura doméstica dos beduínos, reconstituída nos centros históricos de cada um dos Emirados. Os espaços de convivência, dedicados a muito mais pessoas do que o núcleo familiar duro, prevalecem sobre todos os demais. Hoje em dia, impressiona ao Ocidental em trânsito, por exemplo, que as lojas de móveis em Abu Dhabi exibam mesas e sofás para acolher grandes núcleos familiares e de amigos. Mesa para quatro e sofá para duas ou três pessoas são itens escassos. O advento do shopping center como lugar de sociabilidade nos Emirados não parece ter suprimido a importância do espaço doméstico.

A segunda simplificação mencionada é o confinamento da história ao tempo passado. No caso dos Emirados, essa leitura só é possível se apoiada na aceitação da primeira premissa, isto é, a desimportância do imaterial e do não-público. Há poucos sinais materiais das primeiras habitações na região, que remontam ao período neolítico. Há também vestígios escassos sobre Dubai e Abu Dhabi antes da suas versões globais, em fins do século XIX e princípios do século XX, quando a indústria de pérolas prosperou. Pouco se sabe ainda sobre a economia de contrabando que se valeu do rompimento de relações diplomáticas entre Índia e Paquistão e do embargo norte-americano ao Irã. De todo modo, com ou sem evidências do tempo vivido, a visão essencialista da história como passado combina-se ao desprezo pelo tempo presente. Nesta perspectiva, os edifícios monumentais parecem ter o efeito de supressão da história. Sufocam por sua contemporaneidade.

No lugar de negar a história, talvez mais pertinente seja perguntar: que história é essa?

Um comentário sobre “Novos Nômades: Emirados Ricos

  1. Escrita agradável e instigante de Cristina Buarque! Que projeto de história é esse, afinal, no qual os imigrantes pobre e ricos não são chamados a ter raiz e os “locais” “somem” sob os monumentos radicalmente modernos? Aliás, além de perguntar que projeto de história é esse, é preciso perguntar quem desenhou este projeto, quem o leva adiante, quem se beneficia dele?

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