[Entrevista com Dona Zica]
A Revista Pittacos reproduz trechos da transcrição da entrevista dada em 1994 por Euzébia Silva do Nascimento (1913-2003) ao Programa Roda Viva. Mulher de quem Cartola teve a honra de ser marido e de quem D. Neuma foi amiga. D. Zica é destas figuras que precisam ser lembradas para que não avancemos mais no processo de transformar o carnaval em mera festa de gringo, para o gringo, pelo gringo. Coisa que irreversivelmente já fizemos com nosso futebol. Escolhemos alguns trechos da entrevista, verdadeiro documento, mas que merece ser lido em sua integra e visto em vídeo, para tanto ao final indicamos os devidos links. Mais umas dessa figuras que a Revista Pittacos julga imprescindíveis. Boa Leitura.
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[Para entrevistar Dona Zica esta noite no Roda Viva, Zuza Homem de Mello, crítico e produtor musical; Marília Trindade Barbosa, pesquisadora de música popular brasileira, autora da biografia de Cartola e da História da Mangueira; Maria Luiza Kfouri, diretora da rádio Cultura AM de São Paulo; Assis Ângelo, jornalista e pesquisador da cultura musical brasileira; Aydano André Motta, repórter do jornal O Globo no Rio de Janeiro; J. Paulo da Silva, chefe de redação do jornal O Estado de S. Paulo da sucursal do Rio de Janeiro e Osvaldo Martins, jornalista. 14-Fev-1994]
Jorge Escosteguy: Hoje a Mangueira mesmo é praticamente uma empresa do carnaval e hoje também se costuma, outras escolas de samba fazem a mesma coisa, por exemplo, a pessoa compra a fantasia e vai desfilar. Como a senhora se sente em relação a isso, e se isso é discutido um pouco na escola e as pessoas acham que é inevitável, e se é inevitável, vamos nos adaptar a esses tempos.
Dona Zica: Não é? Temos que adaptar aos costumes, porque as coisas evoluem e vão por esse caminho, nós temos que aceitar e queremos é carnaval.
Jorge Escosteguy: Mas dessas mudanças, o que se perdeu, o que a senhora sente mais falta do que perdeu ao longo dos desfiles das escolas de samba?
Dona Zica: Eu sinto mais falta do carnaval que começava em dezembro, as batalhas de confete. Tinha a rainha da batalha, que era a dona Zulmira e a Dona Luiza; a gente já começava a brincar em dezembro, quando chegava o carnaval a gente já tinha brincado muito. Agora não, ficou restrito só àqueles três dias, e a escola de samba e nada mais. Tinha aquelas fantasias bonitas, tinha corsos, tinha tudo o que era de bonito. Carnaval os três dias, sociedade, ranchos, e aquilo tudo era bonito e era gostoso, que foi acabando, acabando e hoje está reduzido só nas escolas de samba.
Jorge Escosteguy: A senhora acha que isso foi terminando porque a cidade mudou ou porque as escolas acabaram virando um pouco uma empresa pela necessidade de arrecadar dinheiro?
Dona Zica: Não sei, o povo em si, não sei o que deu, que virou, mas nós estamos felizes de ter os três dias de carnaval. Mas a gente sentia aquele gosto antes. Os armarinhos, a gente via aquele gosto de carnaval, as ruas. Agora não, a gente sabe que é carnaval, porque está na folhinha: hoje é domingo de carnaval. É o que nós sabemos. Já antigamente não, eu, por exemplo, na minha casa, a gente já dormia fantasiada para de manhã não perder tempo.
Jorge Escosteguy: E cada um fazia a sua roupa, como que era a confecção para o desfile?
Dona Zica: Cada um fazia a sua roupa, não tinha esse negócio de […] não. Cada um fazia a sua roupa, as baianas das escolas eram feitas escondidas, só sabia o segredo na hora que a escola se aprontava para desfilar. Os enredos, era tudo mais escondido. Agora não, todos já sabem, já tem o desfile das fantasias antes do carnaval. Mudou completamente. Mas como eu sou carnavalesca, eu quero o carnaval, o que importa é o carnaval.
Maria Luiza Kfouri: A senhora é ciumenta, Dona Zica?
Dona Zica: Não. Nem ele tinha de mim e nem eu dele, porque eu sabia, eu compreendia que a vida dele de artista era uma vida boêmia. Não ia estar eu na luta, ele fazia o que ele queria. Meu prazer era ver ele fazer o que ele queria. Aí teve uma vez nós estávamos brincando, assim coisa de marido e mulher, conversando, eu disse assim: “Ah, você não gosta de mim, você gostou das outras mulheres que você teve e tal”. E ele: “Ah, mulher, deixa de dizer bobagem, não tem o que falar, fala bobagem”. Daí daqui a pouco, ele veio [Dona Zica canta] “tive sim, outro grande amor, antes de ti, eu tive, sim”. Ele viveu 22 anos… Nós nos conhecemos meninos, fomos criados… Quando ele fundou a Mangueira, ele tinha 19 anos, mas já vivia com uma senhora, viveu 22 anos com essa senhora. E eu tinha 15 anos quando fundou a Mangueira, ele tinha 19, e eu tinha 15. Ele era mais velho que eu quatro anos, ele já morava com essa dona. Então, eu respeitava muito ele, ela, e quando fundou a escola, ela passou a ser a primeira diretora da escola. Então eu era menina, a gente… [Zuza completa: “Guardava distância”] Não tinha nada que pensar em namoro, era só pela escola que a gente ama, então eu que sou apegada mesmo, eu amo a escola, e eu queria saber da escola. E naquele tempo era rígido o ensaio. A gente castigava, o Chico Porrão era o primeiro ensaiador, então ele castigava, se a gente não sambasse direito, não cantasse o samba direito, ele castigava, a gente ficava sem poder ir ao ensaio três dias, três vezes. Assim, sabe. Aí criamos juntos, mas não… Então ele aí foi e fez esse samba de […], de Natal, que não foi gravado, ele diz que fez para mim… Eu fiz a mesa de Natal e tudo, depois eu estava na cidade, que nós fomos fazer, estrear o […] de Cartola, então nós […] e Cartola… Eu tomava conta da sociedade, que eu sempre morei na Mangueira, mas deixei a minha filha e fui morar lá nessa casa para tomar conta da Associação das Escolas de Samba do Brasil. E ele limpava, fazia limpeza, ele estava desempregado, né? E eu ajudava lá, eu gosto muito de cozinhar, então eu fazia a comidinha para o pessoal. Então aí nós fizemos, chegou Natal e ele gostava de acabar de comer e dormir, tirar aquele sono. Aí eu falei para ele: “Olha, você vai dormir, eu não estou com sono, eu vou sair, vou na casa das minhas irmãs, vê-las, que é Natal, né?” E aí, embrulhei umas coisas aí e fui levar para as minhas irmãs. Ele acordou, eu não estava ainda, eu não tinha chegado, porque a gente não saía, ele saía pra um lado, eu saía por outro, não tinha esse negócio. Aí ele fez um samba. Então isso para ele, “pois é, eu vou lá e você fica dormindo, eu quero ficar me divertindo”. Então ele fez o samba, dizendo que eu disse que “talvez lá fora houvesse mais alegria, este ano eu recebi um presente que certamente nunca teve igual, encontrei um bilhete junto à árvore de Natal”. Ele imaginou, aí o samba dizia que eu ia passear, porque lá fora haveria mais alegria.
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Assis Ângelo: A participação do bicheiro no carnaval carioca, se fala muito na estatização do carnaval, na privatização do carnaval, na independência do carnaval, como era antes, aliás, que era uma coisa espontânea e, portanto, podemos dizer que era um carnaval independente, que independia de ajuda do município, do Estado, de iniciativa privada, enfim. Como é que a senhora vê, qual seria a idéia que passaria pela senhora para que o povo voltasse novamente às ruas e vibrasse com naturalidade o carnaval não só carioca, mas do Brasil inteiro. A senhora vê o caminho da privatização, o caminho da estatização, ou seja, permanece a estatização, ou a privatização seria o caminho? E os bicheiros já não são uma forma de privatização, mesmo à margem da lei, uma coisa bandida, uma coisa fora de ordem?
Dona Zica: Eles ajudam lá ao modo deles, mas eu acho que o que prendeu mais o carnaval foi ser ali. Porque o Brizola quis fazer o lugar, porque chegava o carnaval, teve um ano que disse que iam até desfilar no Maracanã, como é que uma escola ia desfilar no Maracanã? [“Mas é politicagem, né, isso aí é politicagem, um jogo meramente político”, diz Assis Ângelo] Ou então ia desfilar em Jacarepaguá. Então a escola não tinha o seu lugar de desfilar. Acabou a avenida, porque não pode, porque ali debaixo passa tudo e tem medo do povo, aquilo ia dar um prejuizão. Não pode na Praça Onze, porque agora já é outra coisa, antigamente era melhor a Praça Onze. Depois passou para a avenida, já desfilou na Antônio Carlos. Então o Brizola fez aquele…
Assis Ângelo: Nunca teve o lugar certo.
Dona Zica: Mas o sambródromo não dá vazão pra aquilo.
Assis Ângelo: Mas para a televisão é perfeito.
Dona Zica: Pra a televisão é perfeito…
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Dona Zica: Mas agora estamos procurando isso, mas por incrível que pareça, também teve essa religião agora que eles arrumaram, a Bíblia, tirou muita gente. A Mangueira está com fantasias para dar, para vestir a comunidade e não tem [pessoas].
Jorge Escosteguy: Por que, Dona Zica? A religião não está permitindo? Esses pastores….
Dona Zica: É, viraram tudo bíblia, as moças, viraram bíblia os rapazes, estão tudo na…
Osvaldo Martins: Quantas igrejas dessa tem no morro da Mangueira?
Dona Zica: No morro da Mangueira a maior parte toda é da religião.
Osvaldo Martins: São quantas igrejas mais ou menos?
Dona Zica: Lá no morro da Mangueira tem três, mas eles não saem dali da Mangueira. Vão para outros lugares onde tem.
Osvaldo Martins: Vê o estrago que isso aí causa no samba, o grande mestre-sala da Mangueira, o Lilico, foi acobertado por uma igreja dessas, abandonou o samba e renega o samba, diz que é coisa do diabo.
Dona Zica: Minha neta foi da bateria desde os oito anos, foi da bateria, depois passou a ser mestre-sala, abandonou, porque virou… largou tudo, porque ela virou aí da seita, né.
Jorge Escosteguy: Mas o pessoal da escola não tentou conversar um pouco com essas igrejas?
Dona Zica: Não, depois que eles encasquetam aquilo na idéia, não adianta.
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Maria Luiza Kfouri: (…) a senhora, um pouco antes de terminar a primeira parte do programa, a senhora disse que recebe uma pensão de funcionário público dele e tudo o mais. A rádio Cultura AM, que é a rádio que eu dirijo e que é também dessa casa, é uma rádio só de música brasileira. O Cartola cantando é tocado no mínimo duas vezes por dia na rádio, fora as músicas dele com os diversos cantores e instrumentistas que gravaram a obra dele, a senhora recebe direito autoral?
Dona Zica: Olha, eu recebo, mas eu sei que eu poderia receber muito mais, mas eu sozinha, vou brigar? Não posso, eu recebo o que eles me dão. Eu recebo, ele tem samba no Japão, em Portugal, tudo canta ele, todos os estados cantam ele.
Assis Ângelo: Dona Zica, até agora falamos bastante de muita coisa e esquecemos de falar do [bar] Zicartola, que nasceu no dia 5 de setembro de 1963 e acabou no dia 26 de maio de 65, portanto, um ano e meio mais ou menos. Qual era a importância do Zicartola para a cultura popular, especialmente no Rio de Janeiro? Tinha carnaval lá também no mês de fevereiro?
Dona Zica: Tinha. O Zicartola foi a coqueluche do momento, porque não tinha casa, comida e samba.
Assis Ângelo: Ele foi o responsável pelo ressurgimento da velha guarda.
Dona Zica: E nós fizemos e conseguimos fazer. Então naquele tempo não tinha, só tinha a [Gafieira] Estudantina [Musical, casa de samba criada em 1932, existe até hoje na Praça Tiradentes, centro do Rio de Janeiro] mas não era isso, era outro jeito, então nós fomos a coqueluche do momento. Toda a fina flor foi na minha casa, mas oCartola não dava para isso.
Maria Luiza Kfouri: Não deu conta nem da barraca lá.
Dona Zica: É, o Cartola dava pra violão e fazia música.
Maria Luiza Kfouri: E dava bem, né?
J. Paulo da Silva: Não precisava fazer mais nada, né? [risos e comentários simultâneos]
Dona Zica: [começa a explicar o início e o fim do Zicartola] Uma pessoa que me deu aquela… foi o Eugênio Augustine Neto, que hoje está em Miami, e os dois primos dele, que gostavam muito de mim, porque graças a Deus eu tenho um sangue doce, todo mundo me ama pelo meu jeito, não sei, Deus me deu essa graça. Então ele disse para a mim, eu falei com o meu padrinho de casamento, que era deputado, eu falei: “Ô doutor Mario, o senhor não arranja uma casa para mim assim na cidade” – porque antigamente aquelas casas que iam abaixo, ficavam um, dois, três anos, quatro, sem ir abaixo, e aí iam, nós ficávamos lá em pé. Ele disse: “Eu vou arranjar uma casa para você”. “Para mim fazer uma pensãozinha que eu sou doida por cozinha”. Aí ele me arrumou uma casa na rua dos Andradas para ser a escola de samba, a Associação das Escolas de Samba e ele me deu em cima para mim morar, para fazer a minha tal pensãozinha que eu queria. Então o Cartola, toda sexta-feira, reunia os amigos, reunia ele, o Paulinho da Viola [Paulo César Batista de Faria (1942-), violonista e compositor brasileiro, iniciou sua carreira artística no Zicartola], o Zé Kéti [nome artístico de José Flores de Jesus (1921-1999), carioca, cantor e compositor de samba, começou a atuar nos anos 40 na ala dos compositores da Portela], muitos deles, o Elton Medeiros [compositor brasileiro de vários clássicos do samba e um dos iniciadores do Zicartola], faziam aquele sambinha. Então vinham uns meninos, os estudantes, o Cartola até quase foi preso, porque foi naquele tempo do… Cismaram que o Cartola era…
Jorge Escosteguy: Estava fazendo algum aparelho ali subversivo.
Dona Zica: É, mas não era pra cantar, os meninos cantavam. O Cartola era muito querido, isso ele foi muito querido na vida para cantar. Ele ia fazer esses shows nessas escolas, sabe, nessas faculdades, os meninos ficavam ali como uma mosca e não cantavam. Tudo ali, Cartola cantando, eles tinham aquele amor pelo Cartola. Então os meninos iam, estudantes iam, faziam. Então um dia o Eugênio perguntou para mim: “Ô Zica, o que você queria”? Eu disse: “Olha, Eugênio, eu queria ter assim uma salinha com seis mesinhas para mim dar pensão, para mim tanto dar pensão que eu gosto, e lidar com público, que eu gosto muito de lidar, que eu gosto muito de conversar, gosto de lidar com a vida, com o povo”. E ele aí foi ver uma casa. Ele disse: “Ah, você faz isso. Procure uma sala para você”. Aí eu fui, no outro dia comprei o jornal, mostrei a ele: “Eugênio, aqui tem uma sala assim, assim”… Nós fomos na rua da Carioca, 53, tinha anunciado uma sala, chegou lá, ele viu a sala, mas embaixo tinha um salão. Ele perguntou pro síndico: “E esse salão aí embaixo”? “Esse salão também está para alugar”. Ele disse: “Olha, lá, Zica, quem sabe”? Eu disse: “Mas, Eugênio, aquele salão não é para mim, eu não agüento aquilo. Você vê que o Cartola não tem jeito”. Eu tenho jeito. Eu sei cozinhar. Eu cozinho para dez, cozinho pra cem, cozinho pra quinhentos, cozinho pra mil.
Osvaldo Martins: Sua feijoada é famosa, né, Dona Zica?
Dona Zica: Tenho meu jeito de cozinha… Mas não sou letrada para guiar uma casa. Eu nunca tive na escola. Então a minha vida é um livro aberto. Eu nunca tive na escola, minha mãe não pode me botar na escola, coitadinha, ela era viúva, tinha que criar aqueles filhos todos, ficou viúva e não deu tempo de botar na escola, de maneira que eu sei é pela minha vontade e pelo meu jeito de viver. Então eu não sei lidar com uma casa, não sou letrada pra…Ele falou: “Não, você quer a casa”? “Eugênio, não posso”. “Vamos alugar”. Aí ele alugou, alugou a tal, mandou reformar a casa toda, fez cozinha, tudo conforme era dito pela prefeitura e me deu a casa. Mas enquanto eles foram…, foi dois anos que durou a casa, enquanto eles ficaram comigo, um ano que eles ficaram comigo, eles botaram gerente, botaram tudo, eles controlavam a casa, deu, deu, porque eu sabia a comida que eu ia fazer, para dez, para vinte, eu sabia, agora o resto, de conta, eu não sabia. Aí quando ele pagou, pagamos a dívida, que ele fez a casa, ele gastou para pagar, “Zica, olha, a casa gastamos tanto para montar, taí vocês já pagaram. Agora a casa é sua”. Aí foi a encrenca. Aí ele me deu a casa para mim, aí enquanto eles estavam ali, todo mundo comia, pagava, mas depois que passou “É do Cartola”? [“Pendurava a conta”, diz Maria Luiza Kfouri; “Todo mundo pendurava”, pergunta Jorge Escosteguy]. Ui…. preguinho mais alto…”Cartola, amanhã a gente passa aí”…
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A entrevista na integra está disponível em vídeo e texto em:
http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/100/entrevistados/dona_zica_da_mangueira_1994.htm