Cinquenta Drummonds de Cinza

[Beto Vianna]

Dona Albelia chega às 6 da tarde em ponto na Faculdade de Letras e Filosofia. Sempre chegou e, até a anunciada aposentadoria, sempre vai chegar às 6 em ponto, de segunda a sexta (em período letivo), na Faculdade de Letras e Filosofia, onde leciona literatura brasileira. Pisa o solo sagrado da sala de aula e faz a primeira chamada às 7 em ponto. Os alunos estão carecas de saber disso, e por isso a maioria sempre lá está às 7 em ponto para garantir a presença registrada, que é a única presença que vale no impassível cronograma da burocrática professora.

Dona Albelia tem 56 anos em ponto. Em ponto de bala, é preciso dizer, posto que o funcionário público Efigênio Eustáquio Figueira Campos, por brochice ou mineireza moral, não se permite intimidades íntimas com a esposa há sabe-se lá quantas luas. Mas isso há de se resolver aqui neste conto. Leia só.

Dona Albelia anuncia que o tema-autor da presente aula é Carlos Drummond de Andrade. Os alunos antecipam o bocejo. Nem mesmo o universal itabirano Drummond, de quem alguns alunos até ouviram falar, de quem outros até parecem gostar, e de quem os demais até ouviram falar que é legal gostar, salva a arenga arrastada e previsível da mestra, em que autores, movimentos, estilos e gêneros literários parecem só mudar de endereço sendo, no mais, só mais do mesmo. A professora despeja nos alunos quatro ou cinco períodos compostos situando Drummond em vida, fases e obra.

Dona Albelia saca seu velho caderno de capa dura forrado de tecido verde (com jeito e mancha de gordura de livro de receita de vó), abre na página marcada (que aqui não há lugar para improvisos) e, cabeça baixa e olhos sempre postos no texto, pausadamente e acentuando as tônicas com o vagar que fizera sua fama nos saraus da juventude, diz um poema do celebrado Drummond:

Oh! Sejamos pornográficos

(docemente pornográficos).

Por que seremos mais castos

Que o nosso avô português?

Oh ! sejamos navegantes

Bandeirantes e guerreiros

Sejamos tudo que quiserem

Sobretudo pornográficos.

 

Dona Albelia não afasta o olhar do caderno ao terminar a leitura. A classe está em silêncio. A classe sempre está em silêncio nas aulas de tão sisuda professora, mas o silêncio que agora ouvimos é estonteantemente distinto. O silêncio modorrento que costuma acompanhar as aulas de literatura brasileira dá lugar ao silêncio elétrico, respirativo, tremeliço, fricativo.

Dona Albelia, sem dizer um cisco, apenas entreolhando a turma estática, num relance lança no meio da classe o ensebado caderno verde, que atinge em cheio a cabeça de Manoel Espechitti, aluno moderadamente aplicado que, desperto do transe, mal tem tempo de se refazer do susto e já agarra com as duas mãos o volume, as páginas aleatoriamente abertas viradas para seus próprios e arregalados olhos. Lê em voz alta, mas trêmula, o aluno Manoel Espechitti:

 

A dançarina espanhola de Montes Claros

dança e redança na sala mestiça

Cem olhos morenos estão despindo

seu corpo gordo picado de mosquito.

 

Dona Albelia não aparenta surpresa (ou finge nem reparar) quando Carla Emiliana Torres, aluna verdadeiramente aplicada, sendo ela de Montes Claros (mas, não, dançarina espanhola), achando talvez que o poema falasse consigo, surge por detrás de Manoel Espechitti, abraça-o vigorosamente e tasca-lhe um beijo no ouvido enquanto arrebata o caderno verde para em seguida, com os lábios ainda úmidos, terminar o poema, a voz estridente, caçoada:

Tem um sinal de bala na coxa direita,

o riso postiço de um dente de ouro,

mas é linda, linda gorda e satisfeita.

Como rebola as nádegas amarelas!

Cem olhos brasileiros estão seguindo

o balanço doce e mole de suas tetas…

Dona Albelia parece sorrir (há naquele rosto um sorriso, ainda que não se note a olho nu) no momento em que o excelente aluno Pedro de Almeida toma o seu mediano colega Sérgio Estevão pela mão, atravessa a classe correndo e rouba o caderno de Carla Emiliana. Em pé no meio da sala, os dois mancebos ignoram os versos (ou inspiram-se neles) e se abraçam com paixão sôfrega, e uma certa Juliana Gonçalves, que não sendo boa aluna é ginasta promissora, debruça-se sobre a carteira ao lado e consegue ler, mesmo de cabeça pra baixo, o caderno que pende aberto dos jovens corpos machos entrelaçados:

Sugar e ser sugado pelo amor

no mesmo instante boca milvalente

o corpo dois em um o gozo pleno

Que não pertence a mim nem te pertence

um gozo de fusão difusa transfusão

o lamber o chupar o ser chupado

no mesmo espasmo

é tudo boca boca boca boca

sessenta e nove vezes boquilíngua.

Dona Albelia solta um suspiro fundo e, não mais se contendo ante tão brasileira literatura, deixa abrir largo o sorriso, em que não apenas se entreveem os firmes dentes, mas agora também a sua douta e carnuda língua. Chama para si novamente o controle da classe. Ordena a Antônio Alberto Quintela, aluno sofrível, mas lindo e sarado como ele só, que lhe trouxesse o caderno imediatamente. Antônio Alberto rasga a camisetinha de playboy, avança como um tigre (agora ele é um tigre) entre os corpos unidos dos colegas amantes e o corpo sinuoso da colega contorcionista, captura o volume com a boca e, no mesmo ímpeto felino, cruza a sala de quatro e deposita-o aos pés da dominadora mestra. O tigre retoma a forma humana (pois só esta, dizem os cientistas, encerra o dom da linguagem) e, mirando as páginas abertas, proclama, ofegante:

O nojo do substantivo – foi há trint’anos –

ao sol de hoje se derrete. Nádegas aparecem

em anúncios, ruas, ônibus, tevês.

O corpo soltou-se. A luz do dia saúda-o,

nudez conquistada, proclamada.

Estuda-se nova geografia.

Canais implícitos, adianta nomeá-los? Esperam o beijo

do consumidor-amante, língua e membro exploradores.

 

Dona Albelia está orgulhosa. Seu mais mauricinho aluno agora exibe belíssimos dotes literários. Afora os outros, físicos, químicos, túrgidos. Com esses a professora já contava. “Prossiga, prossiga”, ela incita o seu lírico gatão, referindo-se, é claro, tanto à leitura quanto à luxúria.

 

E a língua vai osculando a castanha clitórida,

a penumbra retal.

A amada quer expressamente falar e gozar

gozar e falar

vocábulos antes proibidos

e a volúpia do vocábulo emoldura a sagrada volúpia.

Dona Albelia sente as mãos – as patas? – do feroz aluno roçarem-lhe as pernas, prudentemente cobertas pelo brim azul marinho da saia longa, ainda que, tal como as fortalezas de outrora, toda saia, longa ou não, permita-se mil invasões se diligentemente atacada por baixo. A bocarra do aluno-tigre é inofensiva enquanto ocupada da recitação. E perigosíssima depois. Sem olhos para lê-lo ou bocas para dizê-lo, o caderno agora jaz aberto no chão da classe efervescente. E assim permaneceria se sua abertura, a exemplo das aberturas docentes e discentes que ali se dilatavam e se preenchiam, não chamasse a atenção de Maria Luísa Prates, boa aluna (aparentemente) tímida, tida (equivocadamente) como feinha ou sem graça. Luisinha (como a chamavam) arrasta-se quase despercebida em meio aos braços e abraços dos outros e recupera o precioso volume. Abrindo-o numa página precisa e galgando a primeira carteira que vê pela frente, ruge com inusitada e barítona voz de trovão:

E prossegue e se espraia de tal sorte

que, além de nós, além da própria vida,

como ativa abstração que se faz carne,

a idéia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,

menos que isto, sons, arquejos, ais,

um só espasmo em nós atinge o climax:

é quando o amor morre de amor, divino.

Dona Albelia, com o tigre a seus pés e às suas pernas, tem tempo de testemunhar, como toda a classe testemunhou entre tantos uis e tantos ais, que o brado retumbante de Luisinha não havia sido em vão. Glaucia Perpétua, Thiago Fontana e Silvia Santana trepam todos os três, e ao mesmo tempo, no acadêmico púlpito de Luisinha, apalpam-na e lambem-na languidamente, trocando, além das safadas carícias, o caderno verde de mãos, encetando um jogral que há tempos não se via (por verdadeiro e molhado) na história da civilização ocidental:

Quantas vezes morremos um no outro,

no úmido subterrâneo da vagina,

nessa morte mais suave do que o sono:

a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,

estendidos na cama, qual estátuas

vestidas de suor, agradecendo

o que a um deus acrescenta o amor terrestre.

Dona Albelia chega às 11 em ponto em casa e flagra o funcionário público Efigênio Eustáquio Figueira Campos tomando cerveja e assistindo Tela Quente. Pobre Efigênio que, uma noite inteira adestrado a chicote, mordaça, algema e palmatória, por toda a vida dali em diante recitaria a seguinte pérola do poeta de Itabira:

Era manhã de setembro

E ela me beijava o membro.

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