[Karina Ribeiro]
Tantas vezes recomeço minhas pesquisas, quantas ela ressurge, renasce pra mim. Tantas vezes chego àquele junho de 72, quantas o choro me vem. É quase uma dor de quem perde uma colega querida, uma amiga. Como tal ela me agrada e me irrita, me ensina e me decepciona, me emociona e me entedia.
Ela apareceu na minha vida meio por acaso. Perdida no trabalho, meu único rumo era o tema das mudanças dos comportamentos nos anos 60 e 70. Isto, porém, não bastava. Uma amiga sugeriu: Leila Diniz.
Como quase todo mundo, eu já tinha ouvido falar dela, a barriga grávida no biquíni, a entrevista d’O Pasquim… Já havia, inclusive, lido partes desta as quais não chegaram a ser publicadas no jornal: “o Pau é um ser maravilhoso”. Como não se intrigar com essa mulher que de repente destaca “a parte do todo”, que se permite tal ousadia sem nem pretender ser ousada?
Assim fomos nos conhecendo melhor: na verdade ela era e não era esse escândalo que todos dizem por aí. Falava alto sim, mas nem fazia questão de ser ouvida. Ela era amiga de todo mundo, ao mesmo tempo em que gostava de ser uma pessoa sozinha; dava muita risada, mas refletia e choramingava sozinha com seu diário todas as noites. Mulher espontânea, porém pensava muito nos seus atos. O que mais me encanta nela era essa capacidade de “ser sem esconder o ser”*, dava a cara a tapa, fazia o que bem queria e não se escondia, ao contrário, existia uma pontinha nela que queria mostrar que era assim que deveria ser, não que ela achasse que todos deviam ser como ela, isso não. Uma das maravilhas de Leila era apoiar todos os atos pessoais contanto que fossem honestos, que fossem verdades dentro do ser. Moça “pra-frente”, sempre respeitou as meninas que quisessem ser “tradicionais”. A transa de Leila sempre foi essa, um anarquismo individualista, cada um deve ser honesto consigo mesmo, conhecer e aceitar suas vontades e seus passos. Partindo daí, era só deixar fluir.
Sua meta final em tudo que fazia era o prazer, é certo. Mas me incomoda pensar que ela era uma desvairada, não era. Sempre lidou com as consequências de seus atos tomando para si as responsabilidades. Em certos pontos diria até que teve uma vida regrada. Sem grana, não teve grandes dívidas; em casa tinha hora pra acordar (mas nunca pra dormir); preocupava-se com uma boa alimentação; nunca se atrasava para as filmagens nem para os ensaios; tinha cuidados. Arrependimentos e orgulhos. E assim foi costurando seus caminhos, dando forma a esse mito que se fez ainda em vida, um tanto por ela mesma, outro tanto pelo que propagandeavam dela.
Vanguarda? Sim e não. Na verdade, acho que Leila soube acompanhar as vanguardas, soube colocá-las na sua vida de maneira positiva tanto na vida particular como na profissional, mas soube interpretá-las e reinventá-las ao seu favor e assim fez novidades e escândalos. Transitava entre os meios conservadores e revolucionários, trazendo à sociedade respostas diferentes e novas para se realizar como pessoa, como mulher e como profissional.
Em uma frase, eu diria que Leila foi uma mulher que soube viver bem. E teve consciência disto.
A primeira vez em que a vi morrer, eu estava no metrô. Um pouco envergonhada pela presença do público que entrava e saía a cada estação, as lágrimas escorriam às escondidas, o livro já fechado nas mãos. Porém logo em seguida o trabalho continuava e ela já estava lá, viva de novo nos meus documentos.
A última vez que ela morreu foi numa pequena nota d’O Pasquim: “Oitenta e duas pessoas morreram na queda de um DC-3 da Japan Airlines (…). Na relação dos passageiros fornecida pela empresa consta o nome da brasileira Leila Roque Diniz”. Uma foto dela de página inteira, linda (das mais bonitas), séria (o que não era muito comum) e estava ainda mais linda que sorrindo. Dessa vez segurei o choro, não podia danificar o documento guardado com tanto zelo pela biblioteca.
Agora recomeço. Revistas, biografias… ela vem, renasce, como se nem tivesse morrido, gargalhando, linda, sapeca, danada, zombando da minha dor e, sem raiva, eu sorrio, recebendo de braços abertos ela que se tornou minha amiga querida.
Durante a faculdade a gente aprende que é necessário manter uma distância emocional do objeto de estudo, mas é preciso não ter nervos para tal façanha. Vivo com Leila todos os dias, ela se tornou muito íntima pra mim. Criamos uma cumplicidade tamanha que ela faz parte das minhas conversações no bar, falo dela como se fofocasse sobre qualquer outra companheira. Às vezes, pensando na vida sozinha, peço-lhe conselhos (e, de vez em quando, ela me responde).
Leila transforma delicadamente (ainda que com palavrões) a minha vida.
E onde está a novidade? Ela já transformou a de tantas…
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* [N.A.] Poema de Carlos Drummond de Andrade em homenagem à Leila Diniz após sua morte.