Líbia, Violência e Liberdade de Expressão

[Stanley Fish]*

Quando Salman Rushdie foi objeto de uma fatwa, por ter seu livro “Os Versos Satânicos” considerado por muitos iranianos uma blasfêmia contra o Profeta, estive numa conferência na qual um painel de discussão foi dedicado ao caso. Um membro da platéia levantou a mão e, sem nenhum resquício de ironia, perguntou: “Qual o problema desses iranianos? Nunca ouviram falar da Primeira Emenda?”

Implícita na pergunta estava a noção de que se eles tivessem lido e entendido a mensagem da Primeira Emenda, teriam compreendido que não se condena ou ataca pessoas em função do que escreveram; que não se reage a palavras, mesmo que as consideremos duras e lesivas, como se fossem golpes físicos. Agora, na esteira dos eventos ocorridos na Líbia, o mesmo tipo de coisa está sendo dita por comentadores e políticos americanos. Se você sintonizar num programa de notícias no rádio, vai escutar várias pessoas (incluindo a Secretária de Estado Hillary Rodham Clinton) dizendo que é claro que o vídeo que demoniza o Islã é repreensível, mas que, no entanto, nada pode justificar a erupção da “violência sem sentido”.

 “Sem sentido” significa sem razões, e a premissa aqui é que o fato de que alguém tenha feito um vídeo denegrindo sua religião não é razão para que você coloque fogo na embaixada do país onde tal vídeo foi produzido. Afinal, se sua religião for digna e forte ela sobreviverá à uma representação maldosa. Além disso, um ataque à sua religião não é um ataque a você; não é pessoal. Este foi o argumento do pastor Terry Jones, da Flórida, que insiste em dizer que o vídeo (ao qual ele está associado de uma maneira ainda não esclarecida) “não foi feito para atacar muçulmanos, mas para mostrar a ideologia destrutiva do Islã”. Em outras palavras, nós não estamos atacando você, somente algumas ideias que você acredita, uma afirmação que faz sentido se você pensar que a religião é apenas um adendo à essência de sua personalidade, como o partido político ao qual você é filiado ou o time de futebol que torce.

Esta é a concepção de religião que herdamos de John Locke e outros protestantes “acomodacionistas”, que fizeram um acordo com o estado: permitam-nos liberdade de culto, não se intrometam em nossos assuntos, que nós não interferiremos em questões cívicas ou tentaremos fazer as instituições públicas refletirem doutrinas teológicas. Em sua “Carta sobre a Tolerância”, Locke é eloqüente ao explicar como esta divisão do mundo em duas esferas distintas – a pública e a privada – irá por fim a violência que quase sempre irrompe quando imperativos religiosos escapam de sua morada nos corações e igrejas (ou mesquitas e sinagogas) para insistir em ordenar todos os aspectos da vida. Se a igreja e o estado estão “cada qual a conterem-se dentro de seus próprios limites, um atendendo ao bem-estar da comunidade, o outro à salvação das almas, é impossível que qualquer discórdia aconteça entre eles”.

Aqueles que assumem esta divisão do trabalho e da autoridade serão eles mesmos entidades bipartidas. Em suas vidas privadas, viverão o máximo possível de acordo com os imperativos da religião. Em suas vidas públicas – suas vidas de cidadãos –, vão atenuar suas convicções religiosas e exibir uma tolerância que talvez não sintam no fundo de seus corações. Percebemos esta dualidade de identidade quando declaramos, fiéis à Primeira Emenda: “Eu odeio e repudio o que você diz, mas vou defender até a morte seu direito de dizê-lo”.

Quase nem é preciso assinalar que os manifestantes na Líbia e Egito não  dirão isso – não porque eles não entendam a Primeira Emenda, a separação entre religião e vida civil, a distinção entre a identidade de cidadão e identidade religiosa, ou a diferença entre palavras e golpes físicos, mas sim porque eles rejeitam tudo isso, e, na verdade, as consideram coisas ruins. Aos olhos dos manifestantes, uma religião que confina a si própria ao coração e à capela, e que portanto é exercida intermitentemente enquanto os afazeres diários são realizados, não é realmente uma religião. Uma religião verdadeira não solta as amarras quando você deixa o templo de devoção; ela exige sua lealdade o tempo todo e em todos os lugares. E o “eu” ao qual esta lealdade é exigida não é dividido em um “eu” público e outro privado; ele é o mesmo em casa e em qualquer lugar do mundo.

Dado que para eles a religião não é um assunto interno, privado, protegido das realidades do mundo, mas um imperativo prioritário que tais realidades deveriam refletir, um ataque verbal ou imagético ao Islã não será entendido como um aborrecimento externo e efêmero, como “mera” representação; será recebido como uma ferida no coração, um golpe, e um golpe cuja retaliação apropriada demanda outros golpes em resposta. Para eles, não há algo como “paus e pedras podem quebrar meus ossos, mas xingamentos nunca vão me machucar”.

Portanto, o pacote inteiro do liberalismo americano – a distinção entre discurso e ação, a disposição de proteger o discurso não importando o quão desagradável ele possa ser, a insistência de que crentes religiosos devem afrouxar suas convicções quando entrarem na esfera pública – é algo que os manifestantes necessariamente rejeitam. Quando lhes é dito que o governo dos Estados Unidos não tomou parte na produção do vídeo e deplora seu conteúdo, líbios e egípcios escolarizados respondem (dizem os repórteres): “Bem, se eles pensam que é errado e contra os valores deles, por que não impediram ou puniram quem o produziu”. A resposta padrão é que nós americanos não censuramos ou penalizamos opiniões que consideramos erradas ou até mesmo perigosas; em consonância com a Primeira Emenda, nós as toleramos e permitimos que possam estar disponíveis para possível adoção no mercado de ideias.

Mas isto significa que proteger o mercado por recusar a imposição de limites ao que nele pode entrar é o maior valor que afirmamos, e nós o afirmamos a despeito das verdades que possam ser vilipendiadas e falsidades que consigam se fazer aceitas. Nós decidimos que as conseqüências potencialmente infelizes de um forte regime de liberdade de expressão devem ser toleradas porque o princípio é mais importante do que prevenir qualquer dano que ele possa permitir. Nós não devemos nos surpreender, contudo, se outros no mundo – a maioria dos outros, na verdade –, discordarem, não porque são cegos e ignorantes, mas porque louvam a Deus e à verdade ao invés da Primeira Emenda, que não apenas mantém Deus e a verdade à distância como também os enxerga com profunda desconfiança.

* Tradução de Antonio Engelke. Original em inglês disponível em:  http://opinionator.blogs.nytimes.com/2012/09/17/libya-violence-and-free-speech/

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