[Leopoldo Vander Hall]
Tenho conhecimento curioso pela produção de conhecimento neste país, incluindo, sobre nossa história. Sou daqueles que pensa que o viés acadêmico da pós-graduação brasileira inibe mais do que auxilia na diversificação do sistema educacional brasileiro, quanto à diversidade de interesses, papeis e o seu aperfeiçoamento. O predomínio dos mestrados acadêmicos é a ponta de um iceberg de um sistema educacional provinciano, voltado para si mesmo, que causa atualmente pouco impacto científico porque não é capaz de reconhecer e diferenciar as vocações e aptidões singulares de cada departamento e instituição, tratando todos os estudantes como iguais, todos os cursos e programas como iguais, criando um verdadeiro “faz-de-conta” na pesquisa e na produção da pós-graduação.
Recentemente, deparei-me com um texto particularmente interessante sobre este assunto, disponível em uma rede social para historiadores. Li-o com interesse. Li-o especificamente porque começa com uma referência a Heidegger… e em alemão! Sinto-me sempre atraído pelas demonstrações gratuitas de sapiência. Já nas primeiras linhas, o autor se assume um “historicista conformado” – o que me agradou tão profundamente que me inspirou,* mais do que isso, impeliu-me a escrever algumas linhas.
Historicismo é realmente qualquer coisa polissêmica. Mas nesse caso, acompanhado do adjetivo “conformado” revela já um anúncio do que se seguirá. A combinação Heidegger + elogio ao historicismo + conformismo logo dirá a que veio. Ao que também me adianto e afirmo: não pensem que surgirá aqui uma crítica social a esta perspectiva. Do meu ponto de vista, intransigentemente rigoroso, diria até mesmo radical, não posso senão que bater palmas para a proposta que se segue. Meu desejo é apresentar o argumento de tal proposta e ir além, com algumas sugestões imediatas para pôr em prática o que podemos designar como um futuro para a profissão de historiador.
Comecemos, pois, pelo começo: a Fundação da cátedra de História por Ranke em Berlim. Veja bem, não estamos nos referindo aqui ao saber que Heródoto “herdou” das musas, mas ao conhecimento científico estabelecido pelos alemães – ah sempre eles! no século XIX. A Origem da Ciência Histórica tem lastro – este homem bom, de família luterana, que sabia muito bem latim e grego, e é claro, alemão. E não apenas Ranke. A historiografia moderna, a Ciência Histórica, foi fundada por homens de berço. Jules Michelet, na França, é apenas exceção que confirma a regra. Mesmo nossa historiografia tupiquinim nasceu sob o auspício nobre do IHGB.
No século XX, a bem nascida e bem formada burguesia paulista deu continuidade ao grandioso projeto de nossa história nacional e, nos anos 1970, os programas de pós-graduação supostamente deveriam dar continuidade ao trabalho de reflexão e pesquisa historiográfica brasileira. No início, houve uma junção até certo ponto harmoniosa entre financiamento público e atuação de uma elite pensante, a quem era atribuída, por mérito e direito, a tarefa de pesquisar e de escrever a História de nosso pequeno grande país. Contudo, eis que em algum momento a coisa saiu do controle e cá estamos: somos 54 PPG’s, 81 cursos, 54 mestrados acadêmicos, 26 doutorados!!
Agora é chegado o momento de questionar, depois de tantos esforços e recursos empreendidos neste país de dimensão lamentavelmente continental: será a vocação de cada um desses programas fazer pesquisa científica, produzir teses e dissertações rigorosas e de boa qualidade? Haverá em todos eles aquele lastro, o azul do sangue de Ranke nas veias, a nobreza aristocrata que de Ranke a Braudel marcou aqueles que se dedicam a escrever e a pensar a História dos grandes países? Na minha humilde opinião, como conhecedor da história que sou, só posso assegurar que não. É preciso, portanto, centralizar e fortalecer os já consagrados centros de excelência em pesquisa histórica. Aos novos programas de pesquisa deixemos como horizonte e futuro possível os mestrados profissionalizantes. Afinal, os tempos são outros e, sobretudo para aqueles departamentos sem tradição, sem infraestrutura e sem “milhares” de teses defendidas, não há que se esperar outra coisa que mestrados lato-sensu. O tempo de Ranke, Braudel, Sérgio Buarque passou. Não se produzem mais grandes obras como O Mediterrâneo e Visões do Paraíso. É hora e vez de repensarmos nossa missão no cenário brasileiro. E o mestrado profissional pode ser o caminho para o fortalecimento da área e do país.
O brilhantismo de tal constatação demanda brilhantes desdobramentos, das quais proponho algumas para se pensar. A primeira providência a ser tomada seria endireitar jovens programas de mestrado que, desorientados pelos sonhos de grandeza, lutam para abrir seus doutorados. Vamos ajudar esses departamentos a encontrarem sua verdadeira vocação. O caso do departamento de história da UFOP em Mariana-MG pode ser um bom exemplo. Qualquer um que conheça esta cidade pode ver que a vocação para temas relacionados ao patrimônio cultural, turismo e restauração é de fato patente. Logo, substituamos o jovem programa de mestrado em história da UFOP por um bom mestrado profissionalizante em patrimônio, lazer e preservação, em harmonia com a vocação, com a alma, com o ethos desta bela cidade mineira. Malgré os méritos dos professores deste programa, empenhados em editar revistas e organizar seminários sobre assuntos diversos, a verdade é que o departamento de história da UFMG já tem um doutorado gigante em todos os sentidos (não sei se com “milhares de teses defendidas” mas com dezenas certamente) em Belo Horizonte, que convenhamos, é ali do lado, a uma hora de automóvel.
Outro caso que se enquadra perfeitamente dentro deste propósito seria o programa de pós-graduação da Unirio, criado em 2007 e situado na Cidade do Rio de Janeiro, que já conta com vários centros consolidados de pesquisa e pós-graduação de renome no país. O que pode justificar um programa de pesquisa neste departamento, a não ser a falta de entendimento da historicidade da profissão e do futuro do historiador no Brasil do século XXI? O mesmo tipo de medida se aplica aos departamentos de história da UFG, UFCG, UFAL e tantos outros que estão afastados de sua autêntica destinação. Precisamos estar em conformidade com a vocação de cada departamento, de cada universidade, isto é, cabe à periferia enviar seus cérebros promissores para o centro, seja esse movimento interno a um país, seja de um país ao outro.
Há que se enquadrar os cursos e pós-graduações à nova realidade do país. Na proposta desenvolvida aqui, cabe aos cursos e PPgs mais jovens um papel diferente do assumido pelos grandes centros. Estes, por guardarem uma tradição atrás de si – sendo, portanto, menos flexíveis às inovações que somente a juventude pode desenvolver– concederiam aos jovens programas o papel de realizar as novas necessidades profissionais tais como preservação da memória e patrimônio, lazer e tempo livre, mídia e novas tecnologias e linguagens de comunicação e mesmo o business.
Os historiadores devem valorizar sua sensibilidade para perceber a historicidade (segundo Heidegger, Geschichtlichkeit – ‘a historicidade imanente à própria vida’) e, em conformidade, pensar a historicidade da profissão, no seu tempo presente e nas suas perspectivas futuras. Foi-se o tempo da ilusão democrática de que todas as regiões do país deveriam ter acesso aos recursos públicos para produzir conhecimento e desenvolver pesquisas de excelência de modo liberal e equânime. Deixemos este privilégio para quem o merece e o tem feito exemplarmente há mais tempo. Aos novos, a novidade, aos antigos todo o resto. Uma proposta como essa, precisa e contundente, pensada na época em que os então professores universitários federais estão fazendo corpo mole numa greve – atividade que, como mostra a historicidade dos nossos tempos, está completamente caduca – tem a ousadia de ir contra a corrente da opinião dos defensores de uma universidade para todos. Ainda que humilde, guardo alguma vaidade que me deixa maravilhado com o acinte e a coragem da minha sensibilidade em apreender a historicidade dos novos tempos e indicar, assim, os caminhos adequados para a história no tempo presente. Serei eternamente feliz quando propostas como a minha puderem ser acolhidas por colegas aqui no Brasil ou pensada por colegas que, no dever da profissão, estão distante dos seus departamentos para se inserirem concretamente na realização dessas propostas e alterações tão importantes para a nossa pós-graduação.
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*[N.E.] O texto que nosso colaborador alega tê-lo inspirado está disponível em http://cafehistoria.ning.com/page/artigo-ser-historiador-no-brasil-do-seculo-xxi