[Sérgio Bruno Martins]
Duas notícias da maior importância colocaram em pauta, na última semana, a zona portuária carioca. A primeira fala da Bhering, antiga fábrica de doces no Santo Cristo que abriga um relevante conjunto de ateliês de artistas e outros criadores, bem como algumas pequenas empresas (todos pagando seus devidos aluguéis, diga-se). Por conta de dívidas com a União, o imóvel histórico foi leiloado e arrematado por um valor pífio. Os inquilinos rapidamente receberam ordens de despejo: trinta dias para sair, e contando. Um dos novos proprietários, dono de uma cervejaria em Teresópolis, diz reconhecer a vocação cultural do prédio. O problema é o que exatamente ele entende por ‘cultura’: um restaurante da cervejaria e uma série de ‘artesãos’ selecionados pela empresa, pagando aluguéis reajustados. Ou ainda, em suas próprias palavras: ‘Meu interesse é gerar dinheiro, sou um empresário.’ Sem dúvida, esse também é o interesse de Donald Trump, protagonista da segunda notícia. Consta que o magnata pretende construir seis torres de cinquenta andares na Leopoldina, completas com lojas no térreo e praça de alimentação. Basta juntar os pontos para perceber que a zona portuária está caminhando menos na direção de corredor histórico e cultural e mais para corredor de shopping center. No processo, história e cultura tornam-se meras palavras soltas em prospectos imobiliários.
Concordo plenamente com o desabafo de Fred Coelho sobre o assunto: não há duvidas de que o caso da Bhering é decisivo para o futuro da cidade [http://objetosimobjetonao.blogspot.com/2012/07/o-caso-bhering.html]. Nesse sentido, o anúncio das Trump Towers tupiniquins até que vem a calhar, já que elas ilustram com exatidão o que está em jogo. Para ir direto ao ponto, creio que se trata de uma chantagem. Digo isso porque penso a chantagem como uma espécie de figura retórica que segue a forma ‘ou/ou’. A chantagem em questão é portanto a seguinte: ou bem entregamos a zona portuária à especulação e à gentrificação, ou não tem jeito, ela permanece degradada como está. Sem entrar no mérito da segunda parte dessa equação (por exemplo, o que exatamente significa dizer que uma área encontra-se degradada? E aos olhos de quem?) o importante aqui é perceber que a chantagem é um fechamento: não há opção, não há alternativas – não há, enfim, lugar para a imaginação. O melhor que o Rio de Janeiro pode fazer é macaquear o modelo urbano da metrópoles ditas desenvolvidas (ou seja, devidamente loteadas pelo capital) e competir com outras cidades por um pan-americano aqui, uma olimpíada ali e uma Trump Tower acolá.
O que está por trás disso, claro, não é um aprendizado com casos bem-sucedidos. É, isso sim, uma concepção profundamente equivocada de sucesso. Como dualismo que é, a chantagem também pode ser entendida em termos quantitativos, em mais e menos. Degradação é menos e revitalização, por outro lado, é mais: mais desenvolvimento, mais acontecimentos, mais dinheiro. Ou ficamos com a degradação (menos), ou abrimos as portas para sucesso (mais é melhor). A chantagem, portanto, traduz para a retórica dos discursos públicos e midiáticos a lógica do capital: o crescimento a qualquer custo, o fazer acontecer ou, na gíria carioca, o ‘bombar’. Cervejaria em Santo Cristo? Torres de cinquenta andares? É a zona portuária bombando.
Justiça seja feita, o prefeito anunciou em seu twitter que vai fazer o possível para intervir na situação, em favor dos atuais inquilinos da Bhering. Isso é essencial, mas é também o mínimo, e o mínimo não basta. Não basta agir reativamente e paliativamente de forma a resguardar este ou aquele caso de um processo especulativo que, em última análise, é fomentado por políticas do próprio poder público (políticas essas que incluem a despolitização da prefeitura, como se ao prefeito coubesse apenas gerenciar mais eficientemente a cidade ao invés de imaginar ativamente seu futuro). É preciso ir além e quebrar, no trato com o espaço urbano e com todas as outras dimensões da cidade, a lógica da chantagem. Mundo afora, é sabido que a arte traz a reboque de si a especulação imobiliária. Não sejamos ingênuos; num certo sentido, a ocupação da Bhering é vítima do seu próprio sucesso. A pergunta é: tem que ser necessariamente assim? Talvez não, mas isso depende não só de uma consciência crítica mais aguçada do meio de arte em relação ao seu papel ambivalente na dinâmica urbana, como também de uma atitude proativa do poder público no sentido de criar mecanismos que protejam os espaços da cidade da especulação predatória ao invés de azeitá-la.
É preciso ainda que a cidade seja reativada politicamente. O que isso significa? Se a chantagem corresponde ao fim da imaginação – inclusive da imaginação política – ela nem por isso é um estado natural de coisas, mas uma amarra ideológica que torna os destinos da cidade aparentemente decididos de antemão. Se tudo se resume ao ‘ou/ou’, então há pouco a escolher. Mas, politicamente falando, a cidade pode mais que isso. Por sua própria organicidade, é nela que novos fermentos políticos têm o potencial de ganhar corpo. Se nas esferas estadual e federal o jogo político parece excessivamente mediado por um sistema partidário esclerosado – no qual parece impossível entrar sem ser cooptado – é no âmbito municipal que essa lógica pode ser quebrada, pois é ali que se dá a fricção entre os representantes eleitos, as bases partidárias e a diversidade de forças da sociedade civil.
Isso é especialmente visível na atual encruzilhada que vive o Rio de Janeiro. O Rio pode não ser mais a capital do país, mas ganhou um novo e incômodo protagonismo: o de emblema maior, de cidade-marca da nova inserção internacional do Brasil. Digo que esse protagonismo é incômodo pois ele alimenta a fúria especulativa que assola a cidade. Mas, por outro lado, isso também significa que os dilemas urbanos do Rio tornaram-se uma espécie de metonímia de certas questões nacionais. Não é difícil ver na lógica chantagista que descrevi um eco da retórica nacional-desenvolvimentista, segundo a qual só se colocam duas opções: seguir adiante (custe o que custar), ou perder o bonde.
Isso significa que a política municipal, ao contrário do que normalmente se pensa, talvez seja a mais relevante de todas as esferas, especialmente numa cidade como o Rio de Janeiro. É através dela que se pode repensar a relação com a cidade, e é a partir dessa relação que talvez se possa refundar a prática política (não há porque omitir: é esta a razão maior de meu voto em Marcelo Freixo). As notícias dessa semana e seus desdobramentos nos próximos meses são e continuarão sendo um palco da maior importância nesse sentido. Se estes eventos nos apontarem caminhos que escapem à lógica da chantagem, o atual momento crítico que a Bhering atravessa terá sido de longe o mais importante de sua história.
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