Uma Economia Mais Difícil com uma Política Mais Complicada

[Maurício Santoro]

Em outubro de 2011 Cristina Fernández de Kirchner foi reeleita presidente da Argentina com 54% dos votos – o maior percentual desde o retorno da democracia. Na mesma eleição, seu partido conquistou maioria na Câmara dos Deputados e no Senado. Feito notável para sua corrente política, que ascendeu das margens do peronismo em 2003, quando seu marido chegou à Casa Rosada menos de 25% do eleitorado.

Contudo, o que parecia ser uma consagração e a promessa de estabilidade tem se mostrado o início de um período turbulento, marcado pelo que o analista Rosendo Fraga definiu como uma “economia mais difícil com uma política mais complicada”. Os pontos mais ásperos dos novos conflitos são a nacionalização da petrolífera YPF, que estava sob controle da espanhola Repsol e a política de restrição à compra de dólares.

O Modelo K

Cristina Kirchner e seu falecido marido Néstor governaram a Argentina ao longo da última década, quando o país experimentou um boom econômico amparado pela avidez externa pelas commodities (soja, carne, minérios) que constituem cerca de dois terços de suas exportações. Desemprego e pobreza caíram. O PIB, que havia se reduzido 20% na crise de 1998-2002, dobrou em dez anos. A renda per capita argentina é uma das mais altas da América Latina, em conjunto com Chile, México e Uruguai. Após a moratória da crise, a dívida externa foi renegociada com a espantosa redução de 70% de seu valor. Sob os Kirchner, as leis de anisita foram revogadas e o país voltou a prender militares, policiais e políticos responsáveis por violações de direitos humanos na década de 1970, retomando os processos judiciais que haviam sido iniciados com a redemocratização e interrompidos com as rebeliões de militares entre 1987 e 1990.

Mas o chamado “modelo K” tem diversos aspectos negativos. A inflação tem se mantido a níveis altos, estimados em torno de 25% ao ano, porque o governo manipula as estatísticas e falsifica dados – a cifra oficial é de um terço desse percentual. As desigualdades têm aumentado e a Argentina já se aproxima ao de países marcados por abismos sociais, como o Brasil. As contas públicas estão em má situação e o governo tenta compensar o déficit comercial com medidas protecionistas que o indispõem com seus principais parceiros diplomáticos. A renegociação da dívida e a instabilidade política do país afastaram os investidores estrangeiros e a Argentina tem recebido menos recursos não só do que o Brasil, mas até da Colômbia, Chile e Peru.  Politicamente, os anos Kirchner têm sido de conflitos virulentos do governo com a imprensa e com o agronegócio.

O modelo K trouxe de volta ao centro da agenda pública da Argentina diversas idéias e princípios da geração da juventude peronista da década de 1970, que havia levado para a esquerda o movimento político criado por Perón durante a Segunda Guerra Mundial. É uma visão extremamente crítica da elite do país – chamada até hoje pelos militantes e pelos presidentes Néstor e Cristina de “oligarquia”, termo que em geral aplicam também à mídia oposicionista, como o Grupo Clarín. Do ponto de vista da economia, os Kirchner promoveram papel mais destacado do Estado, nacionalizando setores como água, ferrovias, correios, aviação, fundos de pensão, petróleo e gás.

Ironicamente, Néstor e Cristina haviam apoiado as privatizações da década de 1990, executadas por seu colega de partido, Carlos Menem. Aliás, após muitas idas e vindas, Menem tornou-se aliado do casal. As nacionalizações do modelo K são controversas. Em alguns casos (água, aviação) elas reverteram privatizações malsucedidas. Em outros (fundos de pensão) foram um estrategema do governo para se apropriar de recursos necessários para amenizar os problemas das contas públicas. No que toca aos hidrocarbonetos, é apenas o capítulo mais recente de uma longa oscilação entre abordagens liberais e nacionalistas no que toca ao marco regulatório do setor, desde a fundação da YPF na década de 1920. A presidente agora busca apoio internacional para obter cerca de US$7 bilhões que precisa para tornar a estatal capaz de atender às demandas energéticas do país.

O Estado argentino nunca teve instituições desenvolvimentistas tão sólidas quanto as do Brasil, México ou Chile, e passou por um brutal processo de enfraquecimento e desmantelamento de seu aparato econômico desde a ditadura de 1976-1983. As nacionalizações promovidas pelo modelo K não colocaram no comando das empresas uma tecnocracia meritocrática e eficiente, mas simplesmente indicações partidárias, de maior ou menor talento, que com frequência atuam com pouca transparência.

Os Conflitos do “Peronismo de Coalizão”

Ao longo do século XX a Argentina foi um sistema político dominado por dois partidos – conservadores e radicais até a Segunda Guerra Mundial; radicais e peronistas após o conflito. Havia outras siglas – democratas cristãos, comunistas, socialistas etc – mas elas não eram significativas no Congresso. Isso mudou após a crise de 1998-2002, que fragmentou as lideranças tradicionais. Surgiram uma série de agremiações, como PRO e ARI,  os radicais se enfraqueceram e o resultado foi o fortalecimento dos peronistas e seu Partido Justicialista (PJ). Essa hegemonia foi usada para a implementação do modelo K e para a aprovação de legislação social das mais progressistas da América Latina em temas como casamento entre homossexuais, eutanásia (ambos legais na Argentina) e uma exemplar lei de estrangeiros, centrada na migração como direito humano.

O PJ é um amálgama de correntes internas e grupos regionais, dos quais o mais importante é o chamado “peronismo federal”, da província de Buenos Aires, área que concentra 40% de todos os eleitores da Argentina. Essas tendências podem inclusive apresentar candidatos independentes à presidência da República, mas uma vez resolvida a disputa, quase sempre se aglutinam ao redor do vencedor. Os Kirchner conseguiram se estabelecer, a duras penas, como os líderes e articuladores dos diversos setores do PJ, que funcionam de maneira análoga a partidos da base governista num esquema como o “presidencialismo de coalizão” do Brasil.

Com uma oposição partidária fragmentada e confusa, os conflitos mais sérios dos Kirchners não ocorreram entre o PJ e seus frágeis rivais, mas dentro do próprio governo. Entre os presidentes e seu ex-padrinho político em Buenos Aires, Eduardo Duhalde. Com peronistas ressentidos do papel de crescente liderança exercido pelo movimento juvenil La Cámpora, comandado pelo filho dos Kirchners. Com rusgas nos sindicatos, por cargos ou disputas salariais para repor a inflação. Com ex-aliados na imprensa, como o Grupo Clarín. Ou com setores econômicos, como o agronegócio, que conseguiram derrotar a proposta do governo de aumentar os impostos sobre as exportações do campo.

O recrudescimento dos conflitos após a reeleição da presidente Cristina em parte se explica exatamente pela luta dentro da coalizão do governo para distribuir os frutos da vitória. Em outra medida reflete a deterioração da situação econômica da Argentina pelo agravamento da crise internacional. Com o declínio da Europa e dos Estados Unidos, e a redução do crescimento nos BRICS, o país se vê em dificuldades crescentes, sem perspectivas de melhora no curto prazo.

É neste contexto que o governo baixou leis draconianas para restringir compra, venda e posse de dólares. O objetivo é deter a fuga de moeda forte do país, que tem acelerado e reduzido as reservas monetárias da Argentina, mas essa política é impopular por várias razões – lembra o infame “corralito” que precedeu o estouro da crise de 2001 e atinge o hábito de poupar em dólares para tentar se precaver da crônica instabilidade econômica. Essas são as bases dos novos panelaços contra Cristina Kirchner, os primeiros desde o auge do conlifto contra o agronegócio, em 2007.

A popularidade da presidente atingiu um auge de 64,1% após a nacionalização da YPF e despencou para 38.9% depois das contróversias com o dólar. O percentual ainda é bem superior aos 20% que ela teve quando os ruralistas bloquearam o abastecimento alimentício de Buenos Aires. A oposição continua fragmentada e confusa, sem saber como enfrentar o bloco peronista. Ironicamente, a liberdade para atuar sem contestação partidária significativa tem levado às piores crises do governo.

3 comentários sobre “Uma Economia Mais Difícil com uma Política Mais Complicada

  1. Pingback: Sul 21 » Argentina: uma economia mais difícil com uma política mais complicada

  2. O artigo é bastante elucidativo, a confusa política argentina é difícil de entender mesmo para alguém vindo do Brasil (como não lembrar de nosso ‘presidencialismo de coalisão’ ao ler sobre o peronismo).
    Mas fiquei intrigado quando diz que uma das marcas do governo dos Kirchner foi o aumento da desigualdade. Até onde eu sei a desigualdade Argentina veio crescendo e se aproximando da brasileira até a crise, depois, durando o governo K, teria recuado. Existem questionamentos quanto a esta estatística como existem quanto à inflação?

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