Coisas Eleitorais

[Lima Barreto]*

Epilogar sobre eleições? Para que? Eleição é isso mesmo. Diz o povo pela boca dos seus eleitores mais representativos. Os animais, conforme La Fontaine ou Esopo, tinham o costume de pedir a Deus os seus reis; os homens, em tempos passados, iam pedi-los aos bandidos, formando-se a realeza na descendência do escolhido cuja origem era tida como divina.

Ultimamente, porém, adoptaram a cerimonia eleitoral que não é totalmente nova.

É um modo como qualquer outro de obterem um senhor, porque os homens não podem passar sem um. Eles têm a ilusão de que, possuindo-o não serão roubados, assassinados, suas famílias e negócios serão protegidos, etc, etc Ninguém lhes diga que não ha necessidade disso; que é uma ilusão, e tê-los uma desgraça. Eles, quando tais coisas ouvem, bradam, vociferam, dizem o diabo; mas, amanhã, após a eleição, estão a lançar a culpa de todos os seus males nas costas do pobre rei que arranjaram anteontem.

Um dia desses, os nossos patrícios resolveram escolher um rei.

Havia duas pessoas que queriam ser: o Sr. Ruy Barbosa e o Sr. Epitácio Pessoa. Pelo que conversei, pelo que ouvi, pelo que me disseram pessoas insuspeitas, todo o Brasil queria o Sr. Ruy; mas quem saiu eleito foi o Sr. Epitácio Pessoa. Está aí uma prova, entre muitas outras, de que eleição é coisa misteriosa.

Não tenho o habito de desvendar mistérios, nem mesmo os das charadas que antigamente os jornais traziam; mas, um dia, examinarei esse das eleições, com auxilio de luzes astrais superiores que hei de adquirir por aí.

Uma coisa, por exemplo, logo nesse negocio de eleições do dia 13, pode ser já examinada. Para que o Brasil quer um novo rei? O que está é dos mais excelentes que eu tenho conhecido e pouca gente pôde negar que o Sr. Delphim Moreira não está a calhar. Ele governa maravilhosamente, porque passou por duras provas e cometeu graves pecados de governança no começo do seu transitório reinado. A “Religiosa” de Diderot afirma em qualquer lugar de suas confissões que só vem a dar freira virtuosa aquela que tem faltas a resgatar…

O Delfim Moreira, para lavar-se da culpa de ter sido, nos primeiros dias do seu império, uma sombra, caixeiro dos amigos de um moribundo, vem governando de fato, com uma vontade constante e macia, e — coisa singular! — de acordo com a Constituição e as leis.

O vozerio dos “metings” e o berreiro dos jornais se esqueceram dele e ele vai discretamente fazendo o que deve. Nenhum de nós sente a sua existência, “vê” o presidente; ele vai suavemente empurrando o carro do Estado.

Então, depois que se viu livre das barafundas protocolares do esotérico Hélio e ficou com o bonachão Maggi ao lado, é mesmo um pai que o povo tem no Catete.

A Constituição diz que ele deve escolher livremente os seus secretários e ministros; ele, que tinha aceitado alguns á força, quando pode, fez o que devia: pôs o Sr. João Ribeiro, no Tesouro.

Esse Sr. João Ribeiro deve ser seu amigo e é, no consenso de todos, entendido em coisas de fazer dinheiro com o dinheiro alheio.

Não ha pessoa melhor para gerir as finanças arrebentadas da pátria.

Ainda não sentimos os efeitos da sentença especial do antigo diretor de “uma casa de prego da roça”, como ele mesmo já se intitulou; mas havemos de senti-los em breve, quando a sua turra com os bacharéis, e burocratas do Tribunal de Contas estiver acabada e vitoriosa para o seu lado.

Outra coisa boa que o atual rei da Republica fez, foi nomear governador da cidade o Sr. Frontin. Sem negar outros méritos ao atual prefeito, s. ex. tem o primordial de ter nascido no Rio de Janeiro e conhecer a cidade e seus arredores.

O Dr. Rivadavia. por exemplo, que era boa pessoa e excelente administrador estimava muito a “urbs” carioca, mas não a conhecia. Construiu á custa de heranças inopinadamente recebidas, verdadeiras cidades no Engenho Novo. Podia tê-las edificado em Alegrete seu torrão natal; mas quis fazer aqui, e fez. Entretanto, quando se afastava da rua do Ouvidor queria que lhe mostrassem estâncias e charqueadas. Está ai.

Pelo facto de muitas autoridades locais desconhecerem assim o Rio de Janeiro, aconteceu um facto muito engraçado com o dr. Léon Roussouliéres. Este senhor, logo nos seus primeiros dias de delegado auxiliar, foi á rua do Ouvidor e assustou-se muito com aquele povaréu. Nunca tinha visto coisa igual em Belo Horizonte. Cioso de suas prerrogativas policiais e temeroso da segurança do amo e amigo Wenceslau Braz, envergou o botão na lapela e correu para o primeiro guarda-civil:

— Seu guarda, você não cumpre a sua obrigação!

— Como, doutor?

— Você não está vendo esse ajuntamento sedicioso.

— Que ajuntamento, doutor?

— Esse, ai, na rua…

— Isto é assim todos os dias, doutor.

O Sr. Roussouliéres convenceu-se e ficou dai em diante o mais carioca da gema e de cinema que até então se tinha conhecido.

A nomeação do carioca Frontin para a Prefeitura veio impedir que o seu numero aumentasse, com um caro aprendizado á custa dos cofres públicos; e, além de tudo isso, foi uma grande satisfação para o Club de Engenharia. Aquele clube é sociedade de homens práticos e sisudos, mas possui poetas e oradores para as grandes cerimonias e festividades. É de espantar que lá não houvesse surgido uma festa com sonetos e discursos, para comemorar o advento do Sr. Frontin. Há alguns anos, quando se efetuou a encampação dos “Melhoramentos”, a coisa foi assim festejada. Disseram-me, entretanto, que o bródio está para ter lugar no dia em que a Prefeitura puser dez mil trabalhadores seus às ordens do Sr. Kennedy de Lemos, destinados a valorizar as restingas e áreas do Leblon.

Não me lembro de mais algum de valor e significância; mas quem como o Sr. Delphim Moreira, afirmou a sua vontade com essas duas nomeações excepcionais, ha de ter tido mais atos de verdadeira autoridade. Procurem o “Diário Oficial”.

Eu que sou cidadão brasileiro e não desejo nenhum emprego, estou muito contente com o Dr. Delphim de Sant’ Anna do Sapucahy. Se pudesse, não deixava que ele saísse mais do Catete para voltar á sua cidade natal.

O povo, porém, não enxerga a felicidade próxima, e larga à carne pela sombra, apesar de dizer que antes um passarinho na mão do que dois voando…

É isto; não há quem queira obedecer a este sabidíssimo ditado; e, apesar de termos um bom rei como o Sr. Delphim, todos insistem em pedir um outro.

O Sr. Ruy seria excelente, mas para o ser, devia fazer o que o Sr. Moreira está fazendo: executar a Constituição. Sendo assim, tanto faz um, como outro; e o melhor é não experimentar uma mudança. ,

Não insisto neste ponto para não parecer que tenho alguma pretensão junto ao Sr. Delphim – e deixo a minha admiração por esse modesto estadista mineiro consignada nas linhas acima.

Entretanto, não posso despedir-me destas tiras sem observar que foi com agrado que vi o Sr. Dr. (quantas vezes?) Câmara eleito senador pelo Rio de Janeiro. Conheço o Dr. Câmara há muitos anos. Isto foi nos tempos em que eu era estudante e morava pela Lapa. O Sr. Câmara já era uma celebridade entre os estudantes, por estudar ou frequentar dois ou três cursos de doutor. Tinha vindo, creio eu, de Ouro Preto e já socava com aquelas suas pernas curtas, as calçadas a jeito de mão de pilão. As barbas já crescidas abundantes também.

Uma vez, na Biblioteca Nacional, naquele tempo na Lapa, quase defronte ao Passeio Publico, lia um livro que nada tinha a ver com o meu curso, quando entrou o atual Dr. Câmara. Fez um pedido, fez dois, fez três, fez quatro e esperou de pé. Daí a tempos, vieram os livros e, sobraçando-os, procurou o lugar que a sua senha marcava.

Lembrei-me de um livro de leitura de Hilário Ribeiro em que há um menino prodígio que estuda “latim”, “francês”, “mais inglês”, “já fala em ciência, raízes, potências”, etc. etc.

O atual Dr. Câmara sentou-se, folheou rapidamente os livros e, de repente, ergueu-se e foi até á mesa elevada do empregado da Biblioteca. Fez um pedido, fez dois, fez três… Houve uma duvida na leitura do boletim e eu pude ouvir, quando ele explicou o seu pedido, o seguinte titulo de um dos livros: “Théogonie de Móise”.

Vieram os livros e o Sr. Câmara desapareceu entre eles durante vinte minutos, ao fim dos quais, levantou-se, pediu a senha e foi-se embora. Tinha consultado mais de quinze volumes. Era assim o homem que hoje vai ser senador pela minha cidade natal. Conquanto senador seja cargo de altas responsabilidades, é melhor que ele tenha acabado na Rua do Areai do que houvesse escrito alguns estudos sobre religiões. Cada um para o que Deus o fez.

* [N.E] (1881-1922) – Lima Barreto – cronista e romancista carioca  autor de vários clássicos como:  “Triste Fim de Policarpo Quaresma” ; “O Homem que Sabia Javanês”; “Clara dos Anjos”; “Os Bruzundangas” e “Os Subterrâneos do Morro do Castelo”.

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