[ Joshua Davis*]
O povo não vai às urnas. É hora de deixarmos amostras estatísticas da população decidirem nosso destino.
Há cerca de 2.500 anos os cidadãos de Atenas desenvolveram um conceito de democracia que ainda hoje é aclamado no mundo moderno. Entretanto, não era uma democracia na qual todo cidadão tinha direito ao voto. Aristóteles argumentou que tal prática levaria a uma oligarquia, na qual indivíduos poderosos influenciariam excessivamente as massas. Ao invés disso, os atenienses dependiam de uma simples máquina que escolhia aleatoriamente cidadãos para concorrer a cargos públicos. É uma ideia cujo tempo novamente chegou.
Duas iniciativas distintas de pesquisas – uma de uma criptógrafo pioneiro, outra de uma equipe da universidade de Standford – propuseram um retorno a esta forma pura, ateniense, de democracia. Ambas as propostas argumentam que, ao invés de esperar que todos votem, deveríamos aleatoriamente selecionar um subconjunto anônimo de eleitores entre aqueles que estão registrados para votar. [NT: Nos EUA, é preciso se registrar para poder ter direito ao voto.] Seus votos seriam então extrapolados para a população em geral. Pense nisso como uma eleição através de amostra estatisticamente válida. Com uma população de 313 milhões de pessoas, precisaríamos nos EUA de cerca de 100 mil votantes para obter uma margem de erro confiável.
Tal proposta pode causar horror. Mas o fato é que o “uma pessoa, um voto” está falido. Na última disputa presidencial, quase 40% da população apta a votar não compareceu às urnas (e foi o melhor índice de comparecimento desde 1964). Se selecionarmos menos pessoas para votar, podemos ter uma melhor representação do que o país quer.
Se o comparecimento dos eleitores é baixo, as questões com as quais eles se defrontam são cada vez mais complexas. Estados pedem que os cidadãos decidam sobre questões que vão de leis anti-drogas a complicadas regras orçamentárias. Em 2010, eleitores californianos foram chamados a decidir acerca de 14 propostas, além de escolher seus representantes em nível local, estadual e federal. Poucas pessoas têm tempo o suficiente para tomar decisões bem fundamentadas, então estas importantes questões são decididas com base em avaliações superficiais e comerciais de TV de 30 segundos. James Fishkin, diretor do Centro para Democracia Deliberativa de Standford, argumenta que nosso sistema não está fazendo jus ao seu potencial democrático: “O tempo para a deliberação é tão escasso que muitas pessoas escolhem seus representantes baseados no fato de gostarem ou não de seu corte de cabelo”.
Ao organizar deliberações em pequenos grupos como parte de processos decisórios legais em 18 países, incluindo Grécia e China, Fishkin inaugurou um novo caminho. Um grupo aleatoriamente escolhido, idealmente entre 200 e 300 cidadãos, passa um ou dois dias ouvindo experts de ambos os lados debaterem os méritos de uma iniciativa ou de um candidato. Logo depois o grupo vota e a decisão é implementada. A ideia não deveria ser tão chocante. Toda vez que tomamos um remédio que passou por testes clínicos, aceitamos tacitamente que a experiência com um grupo pequeno aplica-se à população como um todo. E confiamos em cidadãos aleatoriamente escolhidos para fazer parte de júris, nos quais irão tomar decisões de vida ou morte. Jurados têm todo o tempo de que necessitam para analisar os casos. Por que não deveríamos querer fazer o mesmo em importantes questões locais e nacionais?
David Chaum, criptógrafo e especialista em tecnologia eleitoral, desenvolveu um modelo próprio – batizado de “eleição por amostragem aleatória” –, que prioriza o anonimato do eleitor. Um eleitor aleatoriamente selecionado recebe um envelope pelo correio e é direcionado para o site da comissão eleitoral, no qual encontra debates entre candidatos e argumentos de ativistas. Este sistema daria tempo para os eleitores deliberarem em suas casas, sem serem publicamente identificados.
O modelo de Chaum dá aos eleitores a oportunidade de verificar na internet se o voto enviado por correio foi corretamente registrado. Em 2009 e 2011, uma tecnologia de reconhecimento ocular foi utilizada com sucesso para levar adiante eleições municipais totalmente participativas em Takoma Park, cidade de 16,715 habitantes no estado de Maryland. Dada a grande importância de cada voto em uma eleição numericamente pequena, o sistema de verificação de Chaum aumentaria o nível de accountability do processo eleitoral.
Eleições por amostragem de grupo oferecem também uma solução definitiva para o problema da reforma do financiamento de campanhas. Propagandas de TV são armas ineficazes para influenciar um grupo pequeno, aleatoriamente escolhido de pessoas. Panfletagem porta a porta, campanhas em vários estados e telemarketings irritantes provavelmente desapareceriam, acabando com a necessidade dos políticos de levantar milhões de dólares. Tentativas passadas de reforma no sistema de financiamento falharam. Eleições por amostragem de grupo resolveriam o problema pela raiz.
A proposta lida com uma questão fundamental: nossa democracia não está funcionando tão bem como deveria. Um enorme segmento da nossa população é pouco representado. As escolhas das pessoas que votam são pesadamente influenciadas por propagandas simplificadoras financiadas por milionários ou corporações com interesses próprios. Eleições por amostragem de grupo poderiam economizar centenas de milhões de dólares dos contribuintes a cada ano. Como são mais fáceis de serem administradas, poderiam ser feitas com mais freqüência, dando mais voz aos cidadãos no governo. Se queremos ser um país governado pelo povo, devemos retornar aos fundamentos da nossa democracia: deixemos um subgrupo aleatório de cidadãos tomar decisões ponderadas que melhor expressam a vontade nacional.
*Tradução Antonio Engelke. Original em Inglês “How Selecting Voters Randomly Can Lead to Better Elections”
Disponível em http://www.wired.com/opinion/2012/05/st_essay_voting/
Comentários sobre “Menos Eleitores, Melhores Eleições”
[Alessandra Maia e Antonio Engelke]**
Se eleições por amostragem randômica fossem apenas questão de precisão matemática, não haveria muito o que debater. Mas não é este o caso. A proposta, caso implementada, poderia introduzir alterações profundas no desenrolar do processo eleitoral, com implicações significativas para o funcionamento da democracia.
Sabemos que democracia não é somente um conjunto de regras de procedimentos para a formação de decisões coletivas em que está prevista ampla participação popular, mas também e sobretudo uma forma de vida, um ethos. Como tal, depende fundamentalmente da participação dos cidadãos em assuntos de interesse comum, de seu engajamento na vida política. Aqui o artigo de Joshua Davis comete um equívoco e esbarra num obstáculo. O equívoco: o sorteio em eleições atenienses não visava à diminuição da participação política. Era, ao contrário, um instrumento essencialmente democrático, pois a participação se dava pelo voto e pela possibilidade de que qualquer cidadão sorteado pudesse governar, o que evitava a elitização dos dirigentes políticos. O obstáculo: em eleições por amostragem randômica ninguém sabe de antemão quem será sorteado, mas todos sabem que as chances de ser sorteado são pequenas. Se apenas poucos serão chamados a decidir, e se a chance de ser um desses poucos são mínimas, então por que participar de fóruns de debates políticos, mobilizar amigos e parentes, ou se engajar em campanhas?
Davis diz que júris populares são prova de que já temos o hábito de confiar, com sucesso, em seleção por amostragens aleatórias. A analogia, no entanto, é falha. Pessoas escolhidas para tomar parte em júris cumprem com a obrigação durante alguns dias – e fim de conversa. Mas as escolhas que eleitores fazem vão repercutir diretamente sobre suas vidas no médio e longo prazo. O engajamento em questões de natureza política é, ao menos em termos ideais, um exercício permanente. Não sem razão, a forma através da qual eleições são conduzidas importa tanto quanto seus resultados. Reduzi-las a um ato privado, feito por alguns poucos indivíduos no isolamento reconfortante de seus próprios lares, é retirar boa parte daquilo que garante relevância ao processo eleitoral como um todo: o fato de mobilizar paixões e possibilitar o choque de opiniões, convidando ao engajamento. É participando de eleições que se presentifica e vivencia, ao longo da experiência democrática, a importância dos direitos políticos adquiridos e da liberdade. A amostragem aleatória diminuiria drasticamente a participação dos cidadãos em eleições. Como acreditar que isso ajudaria a sanar o problema da apatia política?
Ressaltando as supostas vantagens de sua proposta, Davis argumenta que o sistema de amostragem aleatória possibilitaria ao eleitor tomar uma decisão bem fundamentada, e que ajudaria a reduzir os custos das campanhas, hoje astronômicos. A dúvida, em ambos os casos, é se tais efeitos benéficos ocorreriam em escala significativa, ao menos a ponto de justificar sua implementação. Não temos a priori nenhuma razão para supor que a maior parte dos indivíduos selecionados para receber em casa a cédula de votação iria efetivamente se informar acerca dos candidatos com mais afinco e profundidade do que eleitores “normais”. Do mesmo modo, dizer que os custos de campanhas em eleições por amostragem aleatória seriam bastante reduzidos é dizer quase nada: o financiamento continuaria a vir principalmente das grandes corporações, de modo que o capital privado seguiria dando as cartas, talvez com algumas acomodações estratégicas.
É verdade que Aristóteles criticava a democracia ateniense, especialmente porque ela poderia tender a um tipo de governo que teria em vista apenas os interesses da plebe, mais numerosa. Apesar disso, são dele valiosas observações que trazem lado a lado critérios como o governo das leis, a alternância no poder e a participação política como a melhor garantia de liberdade para uma cidade que pretenda forjar cidadãos republicanos. Nesse sentido, o desafio inerente à democracia como forma de ordenamento político permanece. A busca por soluções deveria visar não a diminuir a participação política, mas sim animar as pessoas a debaterem assuntos que irão influenciar diretamente suas vidas. Trata-se de imaginar formas de transformar a política para que ela possa atuar de forma responsiva aos anseios da população.
** [N.A].Agradecemos a Bruno Borges pela troca de ideias sobre o tema.
Q se mostre – melhor desenhar – a idéia pra LILS pra ver o q ele pensa a respeito.
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Boas críticas aos custos das campanhas e… só.
Analogias – como apontam os primeiros a comentar – muito discutíveis! Inclusive a transposição ‘automática’ da democracia grega – tal como a entendemos hoje – para uma sociedade contemporânea. Pensando em países com desníveis escandalosos (econômicos, políticos, de cultura política, de cultura cultural, etc) – como penso ser nosso caso -, parece-me que a sugestão não representaria melhora, talvez o contrário.
Do mesmo modo como no sistema atual, o proposto pelo artigo não tem como garantir uma aplicação “correta” e não desvirtuada – ou seja, implica reconhecer que o sistema vigente não foi pensado para ser desvirtuado e existir no modo pervertido, explicitado pelos defeitos bem apontados.
Em síntese, detestaria ter que passar pela ‘experiência’ proposta pelo artigo e me sentiria usurpado no direito político talvez até rasteiro e bobo – que é o ato de votar, sendo que, visto friamente, cada pessoa é apenas um voto entre milhões.
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Acho que o principal mérito da “eleição amostral” decorre do fato de que a democracia como a conhecemos tem viés: nem todos os grupos têm igual probabilidade de votar. E o viés é, principalmente, pró-ricos, claro. Se sorteamos os eleitores, controlamos isso (desde que possamos obrigar os sorteados a se manifestarem, é claro).
Mas a principal fragilidade decorre do fato de que qualquer procedimento será estrategicamente apropriado pelos interessados. E aí, no modelo do tal Chaum, o crucial será o teor dos tais “debates entre candidatos e argumentos de ativistas” a que os eleitores (abduzidos do mundo real por sorteio) serão expostos. Quem controlar isso, controlará o processo. O único controle plausível contra os inevitáveis vieses dessa informação é a sua publicidade. Mas como garantir visibilidade pública para esse conteúdo, se somente cem mil gatos pingados terão de se manifestar? No caso do procedimento deliberativo do Fishkin, o problema é idêntico, só que ainda menos controlável – e portanto bem mais grave.
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