Minha Vida em V(f)alência: impressões sobre uma Espanha em crise.

[Mayra Goulart] 

Nasci numa década de crise, em uma família de classe média, daquelas que dependem do trabalho ativo de todos os seus membros adultos. Lembro, então, nos idos da década de noventa, de como a perspectiva de perder o emprego e, simplesmente, não conseguir outro era assustadora para meus parentes, uma vez que significaria uma queda dramática no padrão de vida. Uma atmosfera de insegurança geral que eu percebia, sem, contudo, compreender.

Minha maioridade, entretanto, já se deu em um horizonte de relativa bonança, que se converteu, ao longo dos últimos anos, em um momento econômico favorável, sobretudo, para essa mesma classe média. Quase todos os meus familiares e conhecidos estão empregados. Todos estão consumindo, cada vez mais.

Em dezembro, desembarquei na cidade de Valencia, localizada ao sul da Espanha, com o propósito de aqui fazer parte do meu doutorado, tendo saído do Rio de Janeiro em um momento singular. Lojas, cinemas, restaurantes, bares cada vez mais cheios e mais caros, assim como, aluguéis e preços de imóveis. Apesar do desconforto, com os preços, o trânsito e com a superlotação de qualquer birosca, o clima era de visível otimismo, quase histeria.

Chegando a Valência, fui recebida por uma cidade simpática e acolhedora, porém, silenciosa e vazia. Aluguel muito mais barato. Lojas, restaurantes e bares muito mais baratos e, mesmo assim, desertos. A diferença era sensorialmente perceptível e, logo, identifiquei aquela mesma névoa de medo e melancolia que marcara minha infância.

Sabia por alto da situação espanhola. Crescimento acelerado entre 1994 e 2005, sustentado, principalmente pelo ciclo de especulação imobiliária e financeira. Ao longo dessa década de prosperidade, o setor imobiliário cresceu 60%, os imóveis se valorizaram 175% e cerca de cinco milhões de empregos foram criados. A Madrid, que visitei há quatro anos, era a Nova Iorque europeia, luxuosa, imponente, cosmopolita e orgulhosa.

Ao boom especulativo, desacompanhado de expansão industrial, seguiu-se a conhecida rotina: explosão do endividamento, inadimplência, restrição de crédito, queda no consumo e aumento no desemprego. Estima-se que a cada dia 350 famílias espanholas perdem sua casa por falta de pagamento. Desde o início da crise foram mais de 300 mil. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), mais de um em cada cinco espanhóis era classificado como pobre em julho de 2011, a previsão é que este índice supere os 22% este ano.  A Espanha com 21% da força de trabalho desempregada e 52% dos jovens fora do mercado, tem a maior taxa de desemprego da União Europeia, superando a já condenada Grécia (15%) e os primos pobres do leste como Bulgária (11,5%) e Romênia (7,3%).

Sabia, também, por alto, dos desdobramentos políticos da crise: recrudescimento da direita (vitória expressiva do Partido Popular nas eleições gerais e municipais), aumento da xenofobia, reações indignadas (e, até certo ponto, amorfas) por parte da sociedade civil e etc. O que eu não sabia era como esta situação afetava a dinâmica social, a rotina e, em especial, o humor do cidadão comum.

A região de Benimaclet, onde moro, é conhecida por ser um reduto de estudantes, a cada esquina, quase literalmente, tem algum bar. Ao chegar à cidade, fui informada tanto pelo taxista, quanto por meu senhorio, que os pubs viviam repletos de jovens. O cenário encontrado foi radicalmente distinto.

No início, acreditei que poderia ser devido às épocas festivas, quando os universitários visitam a casa da família, ou viajam em férias, o que explicaria o esvaziamento geral dos estabelecimentos. Porém, com o passar das festas a situação se manteve. Meu marido e eu nos tornamos, então, clientes preferenciais do comércio local, pois, somos quase os únicos a frequentar os bares e, diferentemente dos poucos que ainda o fazem, consumir algo.

A única exceção, todavia, são os dias de jogos, principalmente se o Valência estiver em campo. É tarefa ingrata arrumar uma cadeira para assistir a um jogo do time local. Sem reserva antecipada, a chance de ficar de fora é grande. O padrão de consumo, entretanto, não se altera, o que se vê são várias pessoas por mesa, com solitárias garrafas de cerveja e uns amendoins ao redor. Mesmo assim, esses foram os poucos momentos de efetiva descontração que presenciei.

A paixão futebolística é tanta, que os valencianos, boa parte deles desempregados, resguardam seu escasso dinheiro para ver seu time em campo. É normal o Mestalla, casa do Valência, atingir sua quase lotação em todos os jogos. Em um estádio com capacidade para 50.000 lugares, dificilmente se atingem números menores que 35.000. Os preços variam, os sócios pagam em torno de 10 a 15 euros por jogo e, os torcedores ocasionais, entre 30 e 50 euros. São valores altos se comparados com o custo de vida atual.

Infelizmente, a campanha do Valência nesta temporada parece ter seguido a da cidade em crise. Primeiro terminaram em terceira colocação, em um grupo teoricamente fraco da Champions League, principal competição europeia. Com isso, tiveram que se contentar em jogar a Liga Europa, o segundo escalão quando se trata de um campeonato de clubes europeus. Quando os torcedores haviam digerido a primeira eliminação e começavam a se empolgar, nova decepção. Os valencianos chegaram até as semifinais do torneio, mas caíram frente a um rival caseiro. Derrota em dois jogos para o Atlético de Madrid, que está atrás no campeonato local, e adeus a mais uma competição.

De modo geral, parece que esse realmente não é um bom momento para a Espanha. Desde o início da Champions League, os jornalistas esportivos já traçavam uma final teórica entre o Barcelona e o Real Madrid, afirmando que, caso não tivessem que se cruzar em algum chaveamento, “os dois melhores times do mundo” iriam decidir o torneio mais importante (desde 2000 não havia uma final espanhola, naquela temporada, o Real Madrid faturou o título batendo o Valência por 3 a 0).

Vieram as semifinais. De um lado Real Madrid x Bayern Munique e, do outro, Barcelona x Chelsea, barbada e certeza que a final se daria entre os dois gigantes espanhóis. Nem mesmo as derrotas fora de casa dos dois rivais fez a fé do país diminuir. Meus companheiros de bar seguiam entusiasmados. Afinal, como não ter certeza que os magos Messi e Cristiano Ronaldo iriam reverter os placares? Pois, foi justamente o contrário, os dois melhores jogadores da atualidade tiveram participação direta nos resultados, só que perdendo pênaltis e desclassificando suas equipes. Queiram ou não, a final não perdoou a crise, Chelsea e Bayern de Munique, vão disputar o posto de maior time europeu da temporada 2011/2012.

A conjuntura espanhola é tão dramática que nem o poderoso Barcelona parece resistir. Mesmo sendo considerado o maior clube do mundo, os catalães tiveram um ano para esquecer. Após dominar a Liga Espanhola por três temporadas consecutivas, os comandados de Josep Guardiola, viram seu maior rival, o Real Madrid, dar a volta por cima e garantir o título máximo espanhol.

Mas, indubitavelmente, a maior derrota dos culés, como são conhecidos os torcedores do Barça, se deu fora de campo. Pep Guardiola, orgulho nacional, criado nas divisões de base do clube e responsável pela conquista de inúmeros troféus como jogador e treinador (foram 13 títulos em 17 possíveis no comando da equipe), anunciou seu desligamento, após quatro admiráveis anos como técnico. Nas mãos do comandante, o time passou a jogar por música e foi comparado com outros grandes esquadrões, como a Seleção Brasileira de 70 e o Santos do Rei Pelé. Com números fantásticos, desde que Guardiola assumiu o clube, os catalães sempre tiveram mais posse de bola que os rivais.

Pep sai pela porta da frente. Seu movimento, contudo, é performático e adquire conotações simbólicas, tornando ainda mais asfixiante a névoa de incerteza e desengano que paira sobre a Espanha. Certamente, a saída do chefe não tem ligação direta com a crise, já que dinheiro não é problema para os “azulgranas”. O nexo entre os dois eventos é estabelecido pela emoção. É sensorial e não racional. O futebol, sobretudo suas grandes estrelas, Barcelona e Real Madrid, funcionam como bastião de um orgulho espanhol cada vez mais ferido. Ao deixar o Barcelona, Pep desola seus conterrâneos e agrava a ideia de um naufrágio inevitável para aqueles que não podem fazer o mesmo.

A imagem do capitão abandonando o barco é tão simbólica quanto a do rei que cai do cavalo (em abril, sua majestade Juan Carlos sofreu uma grave fratura no quadril em virtude de uma queda acidental, durante um safári, em Botsuana) e a das ex-colônias que aproveitam a debilidade da antiga metrópole para vingar-se. Dois dias depois da internação do monarca, Cristina Kirchner anuncia a nacionalização da petroleira YPF, filial da espanhola Repsol, sendo seguida pela decisão de Evo Morales, que, em 01 de maio, nacionalizou a filial boliviana da Rede Elétrica Espanhola (REE).

Não ficarei na Espanha para ver o desenrolar dos acontecimentos, mas o clima é de tensão e debandada geral. O último a sair que feche a porta.

3 comentários sobre “Minha Vida em V(f)alência: impressões sobre uma Espanha em crise.

  1. Mayra, gostei mt da sua visão sobre a Espanha, embora já sabia que vc iria ver isso qdo saiu daqui, só acho o teu início não ter sido verdadeiro em sua história. Pois, qdo vc nasceu, sua mãe já funcionária pública em Brasília c/ um salario bem acima da média da população, e depois seu pai foi médico do exército com um salário razoável, e emprego garantido por quase 10 anos. Então vc não vivenciou esta “crise”.

    Curtir

  2. Interessante, apesar da cronista se deter em dados acessíveis para qualquer bom leitor de jornais pela internet, e ainda teve essa maçante digressão sobre futebol que pouco serviu de metáfora. Parece que o conhecimento mesmo do dia a dia na Espanha em crise pela autora se dá somente pela frequência constante aos bares da região.

    Curtir

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s