[Claudio Seichelles]
[N.E.] O texto que se segue foi enviado por um amigo dos editores da Pittacos, que, por motivos que logo deverão ficar claros, pediu para não ser identificado. Trata-se de uma troca de mensagens ocorrida via Facebook. Os nomes – e possíveis referências que permitiriam a identificação dos envolvidos – foram trocados, para preservar a identidade de ambas as partes. Todo o resto é verdade.
De: Péricles Seichelles
Bom Dia, Claudio.
Gostaria de te pedir um favor, sei que não somos muito próximos, mas nosso sobrenome de alguma forma nos une. Tenho uma Filha chamada Antonella Seichelles, que é inclusive miss Pequenópolis 2011. Hoje pela manhã recebemos um telefonema que alegrou toda a família. Ela irá participar de uma seleção para concorrer no Cassino do Chacrinha a participar de uma Novela Global. Como somos de Pequenópolis e não conhecemos muitas pessoas no Rio de Janeiro, queria pedir uma grande ajuda a você. Gostaria de saber se você ou alguém que você conheça possa nos ajudar com a hospedagem dela. Ela deverá se apresentar dia 14 no Projac e voltará para casa dia 16/04. Fico no aguardo do teu contato e agradeço desde já a sua atenção.
Beijos,
Péricles
PS – Caso queiras saber quem é minha filha é só procurar pelo nome completo dela no facebook!
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De: Claudio Seichelles
Olá Péricles
Devo dizer que sua mensagem me pegou de surpresa. Não é o tipo de coisa que acontece todos os dias… Mas, bem, não sabia que havia Seichelles em Pequenópolis. Na verdade, este é o meu sobrenome do meio, herdado de meu avô materno.
Estou de mudanças para um apartamento novo, e está tudo em obra, por enquanto. Estou dormindo na casa da minha irmã até a obra acabar. Ou seja, infelizmente não tenho como hospedar sua filha aqui.
Creio que há duas opções: se o senhor quiser, posso procurar um hotel ou albergue que seja legal, sem ser caro. Em Copacabana e Botafogo, bairros da Zona Sul da cidade, há boas opções de conforto, mas sem pagar muito. Como alternativa, tenho um amigo que mora na Gávea, num ótimo apartamento – e há um sofá-cama na sala. Improvisado, sem dúvida, mas talvez baste.
Enfim, fique à vontade para decidir o que achar melhor. Caso Antonella precise de outras dicas aqui no Rio, pode me procurar também, sem problemas.
Espero haver ajudado.
Um abraço,
Claudio
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De: Claudio Seichelles
Prezado Péricles
Insatisfeito com minha resposta inicial, tomo a liberdade de lhe escrever novamente. Creio que o inusitado da situação exige uma reflexão mais aprofundada, e gostaria de dividi-la com o senhor. Desde já, peço desculpa por eventuais excessos estilísticos. Mas vamos lá.
Há maldade demais neste mundo. O mero reconhecimento desta verdade trivial levanta duas possibilidades que não temos como ignorar, se é que desejamos ser francos um com o outro.
Primeira: trata-se de um golpe. O trouxa aqui acredita que foi bafejado pela sorte, que a mera coincidência de um sobrenome basta para que lhe caia no colo, como num passe de mágica, uma Miss Xoxotuda das Galáxias. Abre as portas da casa apenas para dar de cara com uma loura-de-pentelho-preto seguida por dois homens armados que, nos próximos 40 minutos, deverão subtrair tudo o que couber no porta-malas do automóvel que os aguarda estacionado na rua. Não perderão, é claro, a oportunidade de me repreender duramente pela ingenuidade – o que aliás seria algo mais do que merecido, o senhor há de convir. Domingo seguinte, reportagem no Fantástico: “Golpe ‘Miss precisa de um lugar para ficar’ faz mais uma vítima. Nesta semana, a vítima foi o carioca Claudio Seichelles, de 38 anos, que teve o apartamento assaltado após atender a um apelo do pai de uma suposta Miss, enviado pelo Facebook…”
Segunda: trata-se de uma ingenuidade tão grande da sua parte, uma confiança tão cega no Homem (atente para a maiúscula), que beira o descolamento da realidade. Ou seja: o senhor realmente não faz a menor ideia do quão absurda é a sua intenção de conseguir um teto temporário para a sua filha numa cidade estrangeira apelando para um desconhecido completo, tendo por critério de seleção uma mera coincidência de letrinhas. Não estamos na Bélgica. E – perdoe a honestidade, mas é preciso empregar o adjetivo apropriado – sua filha é uma Xoxotuda das Galáxias. O senhor consegue imaginar o que acontece nas entranhas de um homem ainda em idade viril ao, por exemplo, topar com uma mulher linda e apetitosa como a sua filha, saindo do banho vestindo apenas um babydoll para em seguida abrir a geladeira e pegar um Toddynho?
Seja como for, não há meio-termo. Ou o senhor é um bandidão picareta (porém bastante criativo, devo admitir), ou é uma daquelas pessoas com o coração tão puro e bom que me fazem por um momento ter vontade de restaurar minha fé na humanidade.
Por algum motivo, senti sinceridade no seu texto, no seu tom de voz – e acreditei nele. Sim, acredito que o senhor seja uma pessoa boa e pura, o que talvez seja suficiente para fazer de mim um cara ingênuo. (Contudo, não a ponto de abrir a porta da minha casa para uma desconhecida, ainda que seja a Miss Xoxotuda das Galáxias.) Na verdade, creio que o senhor é uma pessoa tão pura que projeta nos outros a própria maneira de enxergar o mundo, ou de estar nele. Daí a confiança cega que deposita num desconhecido completo cujo único mérito é ter um dos sobrenomes igual ao seu. Mas então é a minha vez de lhe passar uma reprimenda, e dizer com todas as letras que, apesar da pureza da intenção, poucas vezes vi alguém ser tão irresponsável.
Há maldade demais neste mundo, meu caro Péricles. Não posso abrigar sua filha em minha casa, mas o senhor pode aceitar minha advertência, e incorporá-la à sua vida daqui pra frente.
Com um abraço sincero,
Claudio Seichelles