Uma Nação Partida: Violência Social e Polarização Política na Venezuela.

Mayra Goulart

No dia 17 de março, depois de mais de três semanas em Havana para a retirada de mais um tumor, Hugo Chávez retorna a Caracas com uma declaração que, embora rústica, merece consideração, pois revela de modo acurado a escalada de violência que vem atemorizando o país. Com seu estilo bufão e após cantar duas músicas, Chávez reafirma sua intenção de manter-se candidato à reeleição, uma vez que a vitória da oposição representaria uma guinada do país rumo ao caos. Em suas palavras: “Se algo a direita garante é a violência, o caos, porque nos odeiam, odeiam o povo“.

Dias antes, após um ato de campanha realizado em um bairro da zona oeste da capital, que contou com troca de tiros e dois manifestantes feridos, o candidato da oposição, Henrique Capriles, acusou o governo de promover a anarquia e a violência. Governador do estado de Miranda e representante de uma aliança de 20 agremiações, Capriles, também, se declarou vítima de ameaças por parte de Chávez, em alusão a declarações do presidente de que a agência nacional de inteligência venezuelana (Sebin) estaria investigando uma conspiração para assassinar o candidato oposicionista.

Ao escolherem o tema da violência, assumindo-se como alternativa da paz perante o ódio, os dois candidatos visam atender à principal demanda do eleitorado posto que, conforme pesquisa do Instituto de Investigação de Convivência e Seguridade Cidadã, 90% dos cidadãos do país apontam a insegurança como sendo sua principal preocupação.

Na Venezuela, a agressividade no enfrentamento entre governo e oposição, está sendo acompanhada de um crescimento hiperbólico nos índices de homicídio e criminalidade. Sob a forma da violência, a polarização política se enraíza no tecido social.

O país, que até o início dos anos 90 sequer entrava nos estudos sobre insegurança na região, em virtude de seus baixíssimos índices de criminalidade, é atualmente o Estado mais violento da América Latina. Com uma taxa anual de 67 assassinatos por 100 mil habitantes, a violência se tornou a terceira causa de morte no país. Esses crimes são em sua imensa maioria delitos comuns, latrocínio, vingança passional etc, não aparentando conexão explícita com a dinâmica política do país, para além da óbvia tríade da impunidade (sistema judiciário precário, polícia ineficiente e corrupção). Não obstante, uma breve excursão pelos índices anuais de violência pode ser reveladora das suas implícitas correlações com a história política recente.

Sendo assim, sobressai o ano de 1989, quando o número de homicídios por 100 mil habitantes atinge 13.5, demarcando uma súbita elevação de 50% com relação a longos anos de estabilidade. Esta elevação está associada a uma série de eventos que ficaram conhecidos como Caracazo, quando, em 27 de fevereiro, um grupo de trabalhadores iniciou uma série de manifestações, seguidas de saques, em protesto contra o aumento do preço dos transportes urbanos e o cancelamento do passe livre para estudantes. Este episódio, no qual chama atenção a brutalidade das forças de repressão do Estado venezuelano, resultou em mais de 500 mortes, já que a contagem oficial de 276 óbitos foi sucedida pela descoberta de inúmeras covas coletivas.

Deste modo, o ano de 1989 pode ser considerado um marco na história do país, anunciando a derrocada do sistema político-econômico e social, em vigor desde finais da década de 50. Laureado pela estabilidade de suas instituições “democráticas” e garantido pelos abundantes recursos provenientes da venda de petróleo, este modelo se manteve enquanto houve a possibilidade conciliar os lucros exorbitantes das elites com alguma distribuição de renda entre as classes populares. Diante de uma conjuntura mundial de redução nos preços das commoditties, o sistema entra em bancarrota.

Nesse tocante, é fundamental enfatizar o uso do termo distribuição e, não, redistribuição. Na diferença entre eles está a chave para o entendimento da sociedade venezuelana, ou melhor, para entendermos por que ela não existe no singular, mas no plural.

Não apenas no que diz respeito às condições econômico materiais (plano objetivo), mas, também, no tocante à percepção subjetiva acerca de suas identidades – responsável por forjar os vínculos simbólicos de pertencimento e solidariedade entre os indivíduos –, observa-se atualmente a existência de duas Venezuelas. Duas sociedades que foram progressivamente se afastando ao longo desses 50 anos.

Tal separação, explica-se pela opção em favor de uma estratégia na qual a distribuição de alguns benefícios para os trabalhadores, embora tenha garantido a estabilidade eleitoral dos governantes, não possibilitou qualquer tipo de aproximação econômica ou social entre pobres e ricos. Isto ocorre na medida em que, a dinâmica própria dos sistemas capitalistas, garante um crescimento exponencialmente maior da riqueza e do lucro, quando comparados com o afluxo de renda para as camadas menos favorecidas.

Esta opção permitiu que a elite venezuelana fosse progressivamente se insulando em uma luxuosa redoma, cosmopolita, educada, moderna e branca; porém, impermeável ao seu entorno ignorante, bronco e pardo.

Continuando o acompanhamento dos índices de violência, observamos uma outra guinada, cuja origem está no ano de 1992, quando se constata um aumento de 34% nas taxas de homicídio, que chegam a 16.3 mortos por 100 mil habitantes. Tal aumento foi, contudo, sucedido por um contínuo crescimento ao longo dos próximos anos: em 1993 a taxa chega a 20.3 e, em 1994, ela atinge os 22 homicídios anuais. Após um pequeno decréscimo, em 1995 e 1997, inicia-se uma rápida aceleração no crescimento nos índices de criminalidade. Em 1998, a taxa de homicídios chega a 19.43; em 1999, ela salta para 25.02; em 2000, ela atinge os 32.99 assassinatos por 100 mil habitantes.

O ano de 1992, marca, também, a entrada de Hugo Chávez na cena política do país. O jovem tenente-coronel, fundador do Movimento Bolivariano Revolucionário 200 (que posteriormente se transformará no Movimento V República), liderou uma fracassada tentativa de golpe de Estado, na qual cerca de 10% das Forças Armadas do país se insurgiram em favor da derrubada do então presidente Carlos Andrés Pérez. Apesar do insucesso, o atentado que resultou na morte de 14 militares e mais de 100 feridos, deu visibilidade à insatisfação da população quanto ao posicionamento adotado pela elite político-econômica.

Pérez, que havia governado o país entre 1974 e 1979, era membro do Acción Democrática (AD), partido que junto ao Comité de Organización Política Electoral Independiente (COPEI) e da Unión Republicana Democrática (URD), conformaram, em 1958, o chamado pacto de Punto Fijo, por meio do qual as três agremiações estabeleceram um sistema de partilha e alternância no poder, cuja sustentação popular era garantida pelos benefícios sociais concedidos pelo Estado rentista-distribuidor. Por este motivo, ao vencer as eleições de 1989, Pérez foi escolhido pelos cidadãos como o representante da continuidade de tal sistema. O que explica a situação de perplexidade e descalabro, instaurada quando o mandatário se compromete com o seu desmonte, através da implementação de um pacote de ajuste monetário e fiscal, acordado com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Nesse sentido, Chávez, que após o fracasso do golpe passou dois anos preso, assume a posição de representante dessa insatisfação e, em particular, dos interesses da parcela da população que, no caso da adoção de medidas de redução do tamanho do Estado, perderia os benefícios que por ele eram concedidos, tornando-se ainda mais vulnerável. Com um discurso centrado na participação popular e, sobretudo, na redistribuição de renda, Hugo Chávez é eleito por ampla maioria. E, assim, alçado à Presidência no significativo ano de 1999 ( quando os índices de violência aumentam quase 30%), ele assume o lugar simbólico e fático de representante dos oprimidos, dando visibilidade e voz aos até então invisíveis.

Mais do que isso, Chávez desempenha o papel de elemento catalisador, ativando a polarização entre pobres e ricos, que se mantinha latente do país, radicalizando-a e dando-lhe a forma de confronto político. Um confronto, que impede a emergência de interesses intermediários, divergentes ou plurais, posto que reduzido à equação (substancialista, simplificadora e homogeneizante) nós x eles. Pois, do mesmo modo que as camadas populares passaram se identificar com o “Comandante”; as elites econômicas passaram a ver nele o inimigo a ser combatido. A sociedade se divide em dois grupos antagônicos e a política nacional se reduz ao seu enfrentamento.

O recorte é claramente de classe e fica claro diante da análise da geografia eleitoral venezuelana. Desde a primeira vitória eleitoral de Hugo Chávez, o presidente e seus apoiadores têm margens de voto radicalmente distintas se contrastados os bairros de classes altas e médias com os predominantemente habitados por pobres. Nesse caso, as porcentagens são, muitas vezes, inversamente proporcionais.

A polarização política tem, portanto, profundas raízes sociais, dividindo municípios, escolas, igrejas, e avançando sobre todos os espaços de socialização, impedindo que eles funcionem como lugares de integração, compreensão das diferenças e criação de vínculos comuns. É ela que impede o diálogo, a solidariedade e a compreensão recíproca, instaurando um ambiente mais propício à hostilidade e à inimizade recíproca. É essa animosidade que determina a radicalização política do país, sendo responsável por configurar uma sociabilidade beligerante e, consequentemente, mais suscetível à violência.

O momento na Venezuela é de incerteza. Entre a doença de Chávez, a dificuldade de encontrar um sucessor, a união da oposição e seu crescimento nas últimas eleições regionais, é difícil saber se haverá mudança de rumos. O momento de alta nos preços do petróleo poderia permitir o retorno do modelo rentista-distributor. Este retrocesso, todavia, não parece corresponder à vontade dos venezuelanos, já que o presidente  conta com um índice de aprovação de 57%.

No entanto, para nós brasileiros, a história venezuelana é elucidativa, uma vez que chama atenção para as diferenças entre estratégias de distribuição de renda e um compromisso com a sua redistribuição. Porque, se a segunda opção aproxima e reduz a desigualdade entre as classes, ensejando uma dinâmica de integração social, a primeira apenas aumenta o fosso entre elas, permitindo o descolamento progressivo das elites econômicas e seu isolamento em redomas de luxo. No Brasil, a polarização entre ricos e pobres tem pautado os últimos processos eleitorais. Por enquanto, isto se deu de forma inconsciente, sem a irrupção de um antagonismo beligerante e agressivo entre as classes. Resta saber por quanto tempo.

4 comentários sobre “Uma Nação Partida: Violência Social e Polarização Política na Venezuela.

  1. Essa onda de violência na Venezuela vi com meus próprios olhos em Caracas. Mas, o que dizem por lá é que esta onda tem sido patrocinada pela oposição. Muita gente me disse isso por lá. A oposição é tão sem escrúpulos e tão doente que tem armado e financiado a violência (máfias, quadrilhas e policia metropolitana, q é oposição) para desestabilizar o governo. Surreal… como quase tudo na Venezuela.

    Há dois toques de recolher informalmente adotados pela população em Caracas. O primeiro às 20:00, qdo a cidade começa a esvaziar. o segundo às 22:00, qdo é um salve-se quem puder. É impressionante, só estando lá pra entender.

    Outra coisa que me impressionou muito é que a enorme maioria que gosta do Chávez (pobres, trabalhadores, estudantes) fala com tranquilidade, em paz, e comumente se emocionam, alguns chegam a chorar ao falar sobre o “amor pela revolução” e seu comandante, enquanto os que criticam o Chávez o fazem sempre com muita agressividade, muita, quase batem na gente. Aliás, muita gente me disse para não defender Chávez nos bairros ricos pois eu poderia apanhar. É o contrário da imagem que temos por aqui.

    Só não entendi porque a Mayra Goulart define logo no primeiro parágrafo o estilo de Chávez como “bufão”… Por que “bufão”? Por que moreno com cara de negro e índio? Por que fala a língua do povo? Por que se expressa com franqueza e sem frescura? Me desculpe mas “bufão” é o preconceito e a visão míope dos que acham que o mundo se restringe ao discurso intelectual branco das rodinhas de bacanas e gente bonita da zona sul, sempre ultra teórico e pouco engajado. “Bufona” é a burrice, a estupidez…

    Vá à Venezuela, assista alguns discursos de Chávez e me diga quem é “bufão” nessa história. Chávez, diferente do que se pensa por aqui, é um homem muito culto, que lê muito desde a juventude. Qual presidente brasileiro foi à televisão ensinar nossa história ao povo, discutir seus programas de governo ao vivo com a população? Assistindo Chávez na TV (moro na Amazônia, na fronteira com a Venezuela, trabalhando em um parque nacional), aprendi sobre Abreu e Lima, a história de Pernambuco… Chavez cita autores brasileiros na TV que o povo brasileiro não conhece, mas os venezuelanos sim. É comum vê-lo ctando trechos de livros e artigos de Celso Furtado, Leonardo Boff, Ignacio Ramonet, Noah Chomsky e vários outros. Isso é ser “bufão”? Abs.

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  2. “É comum vê-lo ctando trechos de livros e artigos de Celso Furtado, Leonardo Boff, Ignacio Ramonet, Noah Chomsky e vários outros.”

    Caro Antonio Lisboa, depois do seu comentario acima, voce ganhou o direito de adicionar o seu nome nesta lista de renomados “usefull idiots”.

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    • Esse é o Brasil. Vc posta um comentário generoso, oferecendo idéias, e a única coisa que recebe em troca é o deboche e ser chamado de idiota por um anônimo que tenta ridicularizar até o seu nome. Ser inteligente neste país não é dom, é carma…

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