[Disponível em http://www2.uol.com.br/millor/aberto/textos/005/index.htm]
[NE] A Revista Pittacos interrompe hoje sua programação normal para homenagear a sempre viva arte do mestre Millôr Fernandes e recomenda, recomenda não, exige de nossos leitores que visitem seu site oficial – http://www2.uol.com.br/millor/index.htm, onde o texto abaixo e tantos outros trabalhos desse artista multi-mídia estão disponíveis. Nunca é demais lembrar que Millôr Fernandes é, além de tudo isto, o melhor tradutor de Shakespeare para o português.
Não persigo a originalidade – ela existe ou não existe. Sou fascinado pela impossibilidade de ser original e tenho até uma especial experiência de “originalidade” (falta de). Em 1975 escrevi uma peça, representada em 77, que chamei de “E’…“, título altamente “original”, acredito mesmo que o mais curto existente (*). Repito; não busquei originalidade. Como a peça terminava com tremenda dúvida metafísica, É!…, a última palavra da peça, era um título óbvio.
Escrevi, pretensiosamente: “Vera vem ao proscênio e diz para o público, numa voz arrancada do fundo do coração, numa amargura em que há a extrema aceitação do destino humano – É!…” Fernanda Montenegro, com a longilínea competência que Deus lhe deu, apenas chegava à boca do palco, dizia a palavra praticamente sem nuance, e estávamos conversados.
Quando a peça era estreada aconteceu o assassinato da pantera Angela Dinis. O Globo (6.1.1977) publicou uma declaração de Kiki Caravaglia, a maior amiga de Angela, que falou com esta pouco antes de sua morte: “Aí perguntei o que estava havendo, que ela estava se separando dos amigos, se isolando. A única resposta dela foi: “É…”. Só isso”.
Minha originalidade começava a ser contestada. Dois anos depois levei um susto maior, lendo o livro do russo Vladimir Voinovich (em inglês The Life And Extraordinary Adventures Of Private Ivan Chonkin), uma sátira à burocracia russa. Logo nas primeiras páginas do livro, Voinovich conta a história do mujique Burly, alcoólatra, que se suicida – como meu personagem-chave. Este, meu personagem, deixa um bilhete com apenas uma palavra, É!. O russo também deixa apenas uma palavra, Ech!!! (que ninguém tinha a menor idéia do que significava). Espantado, verifiquei a data da edição do livro; na Inglaterra em l977, quando eu já tinha escrito a minha peça, na França em l975, quando eu escrevi a peça, e, em russo, em l969, muito antes deu ter escrito meu trabalho. Que coisa!
Tempos depois, em Friburgo, hospedado por meu amigo, o músico Paulo Sampaio, na casa do médico Lourenço Jorge, na hora de ir dormir, fui a uma estante num corredor e procurei um livro. Encontrei uma dezena de livros de Medeiros e Albuquerque, escritor famoso aí nos anos vinte, autor do Hino da República. Lá estava (e curioso que ninguém soubesse da existência desse livro ou ele teria, naturalmente, sido citado no noticiário ou críticas de minha peça) um livro, exatamente com meu título, É.
Escrevo esta nota porque, folheando ao acaso o Year Book da Britannica, encontro pequena biografia de Dustin Hoffman e vejo que ele, em 1967, trabalhou, off-broadway, numa peça chamada Eh. É…, como dizia o outro, não há nada de novo sob o sol. A não ser quando chove.
(*) O título, simplíssimo, perde até sua simplicidade quando analisado graficamente. A letra É graficamente suja pelo acento. Sendo exclamativa vem seguida por um ponto de exclamação. E, como pretende suspense, vem com reticências. No total uma tremenda poluição gráfica.
Obs: Anos mais tarde dei a uma peça minha um título ainda mais curto. Como a peça, de uns 20 minutos, se ressume a uma busca, não se sabe de quê, foi chamada de ?, Isso mesmo, só uma interrogação.