Celebs na Ágora

Rose Ferreira

A primeira vez que eu experimentei a revelação de que era uma writer aconteceu não muito depois de me mudar para Londres. Uma writer!  Tomada de entusiasmo pela descoberta, ou melhor, pela aceitação da nova identidade com a ajuda da transmutação semântica e o ajuste psíquico de viver onde ler e escrever conta no dia-a-dia, eu quase cedi à tentação de postar no Facebook e, para não me tornar um Facebook writer, imediatamente fechei a conta por lá.

Foi ainda sob o efeito desse formidável evento que desci à Praça da Catedral de São Paulo, no coração da Capital Britânica, para visitar pela primeira vez o acampamento central do Occupy Londres, em busca de um tópico contemporâneo e, se possível, interessante para minha escrita.

Estava já anoitecendo quando adentrei o Camp e me meti na primeira barraca onde encontrei uma aglomeração. Achando por ali uma cadeira, que devido à escuridão eu não podia ver a extensão da sujeira, lá sentei e fiquei esperando algo acontecer. Verdade seja dita, eu não sabia bem o que fazer ou o que eu estava fazendo no meio de bêbados e gente de há muito necessitada de um banho e uma troca de roupa. Como nenhum Ocuppier ainda sabia quem eu era. Em breve começou a circular o rumor de que eu fosse espiã, ou coisa pior… jornalista. Um cachorro que também jazia no fundo da barraca me hostilizou abertamente quando tentei fazer-lhe uma festa. Mas eu não tive qualquer pressa de ir embora, até o desespero de frio me lançar direto no primeiro Sturbucks, uma rede de Cafés que, ao contrário dos Occupiers, não tem absolutamente nada contra o sistema financeiro ou sistema algum.

A essa altura eu tinha já uma opinião bem formada sobre o Occupy, prontinha para encontrar o editor de textos do meu laptop, quando, reaquecida, encontrei a cozinha do Camp. Tratava-se de uma grande barraca branca, abarrotada de provimentos doados, itens culinários, fogões a gás adaptados no chão, um balcão de madeira servindo de refeitório e um constante ir e vir de gente, desesperada de frio, procurando comida. Um prato de sopa quente e uma grande xicara de Chá Inglês me fizeram abrir mão de todas as minhas convicções sobre o movimento. Supremo barateamento, eu admito, mas a cozinha era também consideravelmente mais palatável que a barraca anterior, podendo se dizer organizada, com certo grau de limpeza e gente sóbria ao redor. De mais a mais, com os dois quadros do Camp eu tinha já alguma imagem do todo. Costurar-se-ia mais tarde alguma opinião e, pronto, minha veia literária consumada numa bela escrita.

Meu alterego de Cientista, todavia, me aconselhou voltar ao Camp a fim obter uma posição mais fundamentada e conveniente a uma escritora de Teoria Política, que, afinal, eu também era. Além disso, tinha a cozinha, a bela Catedral e boa oportunidade para umas fotos… Passei a frequentar o Camp. Mas, para o meu desgosto, nada da escrita vir à luz. Motivo? Eu não achava coragem de escrever a sátira que tinha pronta na mente. Não é que eu começasse a me apaixonar pelo meu objeto, eu continuava a achar o acampamento fisicamente repulsivo, teoricamente questionável e politicamente ineficiente; mas era difícil colocar tudo isso no mesmo saco. Cada dia no Camp era único: uma nova faceta da coisa ante meus olhos, novos elementos agregados à paisagem, menos clara a visão do todo. Em outras palavras, eu não alcançava, dentro do meu quadro cognitivo de politóloga, um conceito do Movimento. Além disso, eu continuava a apreciar os encontros na cozinha, onde o meu desespero por aquecimento sempre encontrava alento em algum prato quente e uma xicara de chá.

Na semana que se seguiu ao natal, um acontecimento lançou na minha mente uma centelha de entendimento da coisa: a leitura do conto “A Christmas Carol” de Charles Dickens por atores da BBC nas escadarias da Igreja, assistido por uma inacreditável audiência. Minha primeira reação ao deparar com aquela pequena multidão de expectadores foi indagar: de onde saiu essa gente? A quantidade de câmeras no local e a disputa por um bom ângulo para o foco não deixavam dúvidas: a era dos “Camaradas” tinha definitivamente ficado para trás. O tradicional discurso anti-status quo apelando à razão cedia lugar ao fantasioso romântico do conto Dickensiano, que ganhava cor na inflexão performática dos atores e emanava todo o sabor de um status de celebridade, ali detido não pelos intérpretes da BBC, mas pelo próprio ato de protestar.

Então era isso! Dormir em barracas sob as noites gélidas do inverno londrino não era nada comparado a viver sob a mira dos fotógrafos, a perseguição dos jornalistas, o assédio dos turistas, a curiosidade dos transeuntes, as luzes da fama. O movimento que começara com palavras de ordens rumo à Bolsa de Valores e fora recuado pela polícia até às escadarias da Igreja, ali encontrara não apenas uma boa praça de acampamento, mas a essência de si mesmo: ser uma intermitente exibição pública. Não que a ambição por notoriedade estivesse ausente de movimentos políticos e sociais em todos os tempos; mas trazê-la para frente da tela, para o centro do palco, tinha, sem dúvida, um quê de novidade. Jogar politicamente com uma fantasia que está na base da constituição de nossa psique moderna – o desejo de ser notado, notável e celebrizado – era uma faceta do Occupy que talvez valesse a minha pena. Se tal estratégia funciona ou não politicamente é cedo para afirmar, mas que a mensagem foi captada, isso foi: a Personalidade do Ano de 2011, escolhida pela Revista Times, foi ninguém mais nem menos que, o Protester! Começa a fazer sentido?

Em suma, não é dizer que aquelas barracas estropiando a vista da Catedral onde se celebrou o primeiro Casamento de Catarina de Aragão, primeira esposa do mais celebrado Monarca da Grã-Bretanha em todos os tempos, assim como o mais famoso dos casamentos reais da contemporaneidade, Charles de Wales e Lady Diana Spencer, fossem exatamente um espetáculo para os olhos (Já se disse antes de mim, e com maior autoridade, que somos modernos e democráticos exatamente por termos arruinado o mundo perfeito da nobreza). Mas o fato é que não são poucos os que ali passam para fotografar a imponente Igreja que não inclui algum Occupier no cenário. Entretanto, se ser transformado em atração turística não desagradou aos Occupiers, engana-se quem pensa que a era das assembleias é coisa do passado. O Camp tem grupos de trabalhos e meetings todos os dias. Aqui, onde a democracia direta com um curioso sistema de voto com as duas mãos é exercido, é fácil identificar os antigos Camaradas e a toda a intelligentsia em simbiose com o resto decidindo orçamento, propostas, diretivas, novos meetings, enfim dando vértebra à coisa. É a velha Europa Ilustrada cobrando seu lugar na modernidade. É justo. Afinal, nada como um par de horas deliberando e uma seção de voto no final para curar qualquer ressaca de paixões e arrastar a racionalidade de volta. Modernos, Ilustrados e Românticos… parece ser o que somos.

Londres, 19 de Janeiro de 2012.

 Leia mais sobre o Occupy London em: http://occupylsx.org/ ;   http://www.guardian.co.uk/uk/video/2011/oct/15/occupy-london-st-pauls-cathedral

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