Rafael Souza
Era uma vez um menino que nasceu ateu e foi ateu até os sete anos de idade, mais ou menos, quando lhe disseram que deus existe e ele acreditou. Sua família era de católicos e ele se tornou igualmente católico. Sonhou em matar seu pai com uma machadinha e sentiu culpa. Depois de uma adolescência confusa e angustiante, o menino teve uma epifania e se converteu a Jesus. Foi salvo ainda na Igreja Católica, mas rapidamente bandeou para o protestantismo, onde a fé lhe fazia mais sentido. Rapidamente se uniu a um grupo fundamentalista cristão protestante e passou a ter um sonho pouco ambicioso: converter o mundo inteiro à sua religião. Deu o melhor de si por quase cinco anos, viajou a América do Sul pregando o evangelho, convertendo almas, salvando incrédulos, alimentando espiritualmente os crentes. Abandonou seus amigos do mundo. Em sua cidade, passou a incomodar vizinhos no domingo à tarde, batendo-lhes à porta, como fazem os mórmons e os testemunhas de jeová, além de outras religiões genéricas desta técnica.
O que faz um judeu ortodoxo cuspir em meninas judias, mas não ortodoxas, que andam na rua com roupas indecentes, mostrando partes do corpo? O que faz um muçulmano radical cortar o clitóris da sua filha criança? O que faz um fundamentalista cristão explodir uma bomba numa clínica de aborto americana, matando enfermeiras? O menino sabe. Todos são fundamentalistas, de uma forma ou de outra. Mas, que fundamento é este?
Uns acadêmicos da universidade de Chicago ficaram encafifados com os atentados terroristas de 11/9 nos EUA e desenvolveram um projeto para tentar entender, cientificamente, o fundamentalismo. O menino aprendeu com eles que o termo fundamentalismo vem do fim do século XIX e surgiu originalmente nos Estados Unidos, onde mais? Segundo os expertos, o termo se referia originalmente a um grupo de cristãos americanos que passaram por maus bocados no final do anos oitocentos e começo dos novecentos. Dois ‘cientistas’ europeus ousaram colocar o mundo deles de ponta cabeça. Freud veio com uma conversa de inconsciente e sexo, muito sexo, inclusive nas crianças, meu deus, nas crianças! Darwin disse que talvez a humanidade não tenha sido criada por Deus do jeito que está na bíblia. Os católicos nunca se preocuparam muito com a ciência: punham os hereges na fogueira. Os protestantes, não. Eram supostamente racionais. Mas, a ciência havia ido longe demais.
‘Voltemos aos fundamentos!’, clamaram. Quais fundamentos? Basicamente a fé na verdade revelada por Deus na bíblia. Após milhares de anos de entreveros com a humanidade – parte pequena dela diga-se de passagem, no Oriente Médio e na Europa – Deus decidiu publicar, assim como os acadêmicos hoje em dia. O texto escrito, compilado na Bíblia, para os fundamentalistas, deveria ser interpretado literalmente. Deus, para eles, não fala por símbolos, só sinais, unívocos.
O menino gostou desta ideia, e o seu mundo passou a fazer muito sentido. Deus criou o homem e a mulher, eles pecaram, merecem morrer, mas cristo morreu em seu lugar. Bastaria crer na obra redentora de Cristo para ser salvo. O mundo ficou simples e as ditas perguntas existenciais, respondidas: de onde viemos? Fomos criados por deus à sua imagem e semelhança há mais ou menos seis mil anos, dos quais Matusalém, sozinho, viveu um sexto. Para onde vamos? Para o céu, os que crerem, para o inferno os que não. Se tivermos sorte estaremos vivos quando Jesus voltar para por ordem na casa, e seremos por ele arrebatados para o céu físico (não confundir com o paraíso). Por que estamos aqui? Para cumprir o plano de deus de levar o máximo de pessoas para o céu. O menino gostou desta história e a comprou para si. O menino foi feliz assim por quase seis anos durante a sua graduação acadêmica, quando não frequentou nenhuma festa nem nenhuma menina, não bebeu, não fumou, não foi ao cinema, não ouviu música, não leu livros senão os da igreja.
Mas, o menino teve que virar adulto, e por esta Deus não esperava. Como era inteligente – estudou na USP, na UNICAMP e em Harvard – viu paradigmas e revoluções científicas. Arrumou emprego e tralha e tal. Basicamente tinha que ganhar o seu próprio dinheiro e manter relacionamentos duradouros, se não seria um menino louco e ninguém gosta de ser chamado de louco. E como menino-adulto se defrontou com Freud que escreveu um texto interessante, a Interpretação dos Sonhos onde o menino descobriu, para seu enorme gozo, que o sonho que teve quando criança, que matava seu pai, seu querido pai, com uma machadinha não deveria ser motivo de culpa, porque todo bom menino sonha a mesma coisa, desde Sófocles. Também leu Joseph Campbell e o seu Poder do Mito, a partir do qual o menino reviu suas crenças, reconheceu que o deus dele era apenas um entre milhões de deuses que seus irmãos humanos haviam criado, e que só existem neste planeta da via láctea, até onde se sabe. Aprendeu que não há fundamentos, senão aquele dentro de si e que Deus escreve torto por linhas retas, se bem que no original hebraico do velho testamento ele escrevia da direita para a esquerda, e que no novo testamento, tradução barata para o grego do aramaico, da esquerda para a direita. (Deus publicado já tinha problemas com a esquerda e a direita.)
Aos trinta anos, o menino deixou de acreditar neste Deus, bebendo vinho e espumante, a beira do Sena em Paris, com tudo pago por seu próprio esforço, com roteiro de viagem definido por si mesmo, sem ter que dobrar os joelhos.
Em Dostoievsky e o Parricídio Freud acertou na mosca ao listar as duas esferas na qual a relação pai x filho são um fator decisivo: na atitude em relação ao Estado e na crença em Deus. O menino que havia matado o pai, agora matou deus com duas garrafas vazias e um coração cheio. Restava matar o Estado. Como o menino era filho da classe média com peso na consciência, seus pais o colocaram numa escola de esquerda… comunista, vai. Ele queria justiça na Terra. Até deus naquela época queria libertação. E a libertação viria pelas mãos de expertos marxistas, pelo fim da exploração da mais valia, pela destruição da propriedade burguesa, pela ditadura do proletariado. O menino só não entendia direito o fim do comunismo proposto por Marx: após um breve período de ditadura dos trabalhadores, o estado teria que ser destruído, desfeito, e os seres humanos, livres, e tudo seria em comum, de cada um conforme sua habilidade, para cada um conforme sua necessidade. O bom e velho anarquismo! O menino cresceu na segunda metade do século XX e viu o estado barbarizar, à direita, à esquerda e ao centro. Ainda hoje, no século XXI, o menino ainda tem que ser tratado como um retardado pelo estado: não pode fumar sob o coberto, não pode dar bebida para as crianças – meu deus, as crianças! – não pode levar xampu com mais de 200ml no avião, tem que pagar impostos, tem que votar, tem que torcer pelo país na Copa, e se tiver guerra vai ter que lutar! A princípio, o menino ficou com raiva, mas depois se conformou: quer acabar com o estado não por rancor, porque está tudo errado, mas porque morre de curiosidade de saber com quais habilidade poderia contribuir para a humanidade, e quais as necessidades dele que caberia a ela satisfazer. Como seria um mundo sem passaporte, como seria entrar no banheiro das mulheres, como seria morar onde quisesse no mundo. Não tem fé no anarquismo, como tinha fé em deus e no comunismo. É anarquista por pura curiosidade.
O menino também leu Mário Quintana, na Porta Giratória: “Cuidado! Se alguém tem alguma crença – por absurda que for – nunca discutas com ele… Dize-me, com a mão no coração: -que lhe darias em troca? Nunca se deve tirar o brinquedo de uma criança”. O menino ri quando ouve de cientistas, tipo aquele que teve um delírio com Deus, discípulo de Comte, que a ciência veio para resolver os problemas da humanidade, com a sua razão e o seu método. A Academia hoje se aproxima da Igreja Católica do fim da idade Média, (i) com paradigmas substituindo dogmas. Quem quer revoluções na ciência? Só o Kuhn. Revolução na ciência só se tiver uma verba extra para os pesquisadores; se não, deixa tudo como está, pelo menos enquanto o cientista estiver vivo e suas teses, se tiver mais que uma, o que é raro, seguirem sendo corroboradas. Por trás da ciência hoje, o menino vê uma (ii) sociedade secreta, enclausurada em si mesma, aberta e acessível apenas aos iniciados, criptografada para os leigos. Também vê a (iii) autoridade. Quem citar em seu texto? Se um cientista respeitado, uma autoridade, o argumento se mantém. Nada de escrever na primeira pessoa, nada de subjetivismo. Toda religião só se sustenta a partir de uma postura de submissão. Neste sentido, os acadêmicos somos todos islâmicos, já que islã significa ‘submissão’. Submissão ao quê? Submissão à autoridade dos que detêm os atuais paradigmas. Submissão ao método. Submissão, em especial, aos desígnios das publicações especializadas.
Sem deus, o estado e a ciência, o menino se pergunta o que daria à humanidade em troca? E o menino se lembra da música que compôs e canta no ensaio da sua banda na sua garagem de menino, se lembra de quanto tempo ficou diante do autorretrato de Van Gogh em Amsterdam (lá pode chapar e ir ao museu), se lembra da dor nas pernas de tanto dançar ao som de um bom vinil, se lembra da projeção da caverna moderna no cinema mais próximo de sua casa, se lembra das horas de teatro toda semana, na sala de aula, ator que virou ao professar, se lembra da fotografia do casal se beijando com o fim da guerra, se lembra acima de tudo da literatura, de Mann, Joyce, Dostoievsky, Rosa, Pessoa, Assis. Fodam-se deus, o estado e a ciência, enquanto o menino estiver a fazer arte.