Michel Laub: Depois de Auschwitz

Sheila Kaplan

Adorno disse que não há mais como fazer poesia depois de Auschwitz. E agora, mais de 60 anos finda a guerra, ainda se pode escrever memórias do holocausto? A matemática sinaliza que estas já ficam para trás, com a morte dos últimos sobreviventes, quase todos, na melhor das hipóteses, octogenários. E, por outro lado, após centenas, se não milhares, de testemunhos, romances, ensaios, documentários, entrevistas, filmes, exposições etc, não resta dúvida que se chegou a certo esgotamento do tema. Sinal disso, mas, paradoxalmente, também de que ainda há fôlego para mais, é o filme de Quentin Tarantino, Bastardos Inglórios (2009), com uma abordagem totalmente heterodoxa, em que a narrativa trágica dá lugar a uma quase comédia.

O esgotamento – a séria desconfiança de que nada mais há a dizer sobre o assunto – é de onde parte o escritor e jornalista Michel Laub em seu romance Diário da queda (Companhia das Letras, 2011). Nascido em 1973 – o que o situa na terceira geração pós-guerra –, Laub brinca com os limites entre ficção e biografia, o que, aliás, o inscreve em uma linha bem demarcada da literatura contemporânea. O narrador é judeu, de profissão e idade próximas às do autor, coincidências que favorecem a confusão, embora pouco importe saber o que é ‘real’ e o que não é, nesse jogo deliberado.

Conhecer um pouco mais, além de algumas coisas que sabe, sobre o avô, sobre o pai e sobre ele mesmo é o que motiva o narrador do romance. Quem teria sido esse avô, judeu que chegou ao Brasil, número tatuado no braço, e “que não gostava de falar do passado”, mas para quem a lembrança desse mesmo passado, como cogita o neto, pode ser ainda pior do que o vivido? Para compreender esse avô, morto antes de seu nascimento, o narrador tem como principal pista os cadernos deixados por ele. Mas nestes, ao contrário do que se poderia esperar, não se encontram as terríveis recordações da guerra, como no relato magistral de Primo Levi e tantos outros, mas anotações obsessivas, um amontoado de verbetes a respeito de fatos prosaicos, por meio dos quais há a tentativa de construir um mundo em que inexiste qualquer possibilidade de Mal, um mundo ascético e artificial. Nesse mundo, leite, por exemplo, é definido como “alimento líquido (…) muito pouco suscetível ao desenvolvimento de bactérias”. O inenarrável surge aqui, literalmente, e as notas legadas pelo avô precisam ser lidas a contrapelo para que possam ter algum significado.

Mas a substituição desse silêncio eloquente por uma outra narrativa traz altos riscos. Um deles é o da repetição, que, ao contrário do seu propósito original de não deixar que a história se apague, pode levar efetivamente à atenuação do passado. Por que voltar, uma vez mais, a tema tão repisado, pergunta-se o narrador: “Se há uma coisa que o mundo não precisa é ouvir minhas considerações a respeito. O cinema já se encarregou disso. Os livros já se encarregaram disso. As testemunhas já narraram isso detalhe por detalhe, e há sessenta anos de reportagens e ensaios e análises, gerações de historiadores e filósofos e artistas que dedicaram suas vidas a acrescentar notas de pé de página a esse material…”

No entanto, ele volta. Não mais guiado pela necessidade de deixar um registro dessa história atroz, mas porque lhe parece não ser possível entender sua própria vida sem considerar esse passado. Ele não pode passar batido por aí, como talvez preferisse, porque essa história ainda se manifesta nas relações presentes.

A “queda” que aparece no título do romance é o que desencadeia a necessidade de confrontar-se com essa memória, que até aquele momento não lhe interessava. Queda metafórica que começa com um tombo real quando, no dia do Bar Mitzvah de um colega de turma da escola judaica, ao cumprirem a tradição de jogar o aniversariante para o alto 13 vezes, os meninos modificam o desfecho do ritual – não o amparam na queda e o garoto cai violentamente de costas no chão. Justamente ele, filho de um cobrador de ônibus, bolsista da escola judaica, um gói.

O que pensar dessa repetição modificada? Brincadeira de meninos que acaba indo longe demais? Maldade intrínseca do ser humano? Vítimas e algozes que se alternam na gangorra histórica? Rastros de sofrimento e culpa que nunca cessam? Muitas perguntas se encadeiam durante a leitura, mas o escritor não procura respondê-las.

O impacto dessa queda continuará repercutindo na vida do narrador até a natural atenuação pela passagem do tempo, mas emerge novamente quando, já adulto, beirando os 40, ele recebe a notícia da doença de seu pai. E essa doença, significativamente, é o Alzheimer. Significativamente porque a indagação sobre a memória – seus saltos, seus lapsos, seu excesso, a sombra de sua ausência, seu apagamento – atravessa todo o romance.

Que sentido há, pergunta o narrador, em evocar hoje memórias do holocausto? Em sua rememoração, ele se desculpa com o leitor por enumerar, uma vez mais, os horrores de Auschwitz – “tenho a impressão de que todos estão um pouco cansados disso”. Uma vez que essas lembranças já foram trazidas à cena exaustivamente, uma vez cumprido o “dever” de memória (em honra das vítimas e para que a história nunca mais se repita, segundo o mote das últimas décadas), o que resta contar? E, sobretudo, porque contar ainda?

Depois de percorrer os traumas vividos pelo avô, pelo pai e por ele mesmo, o narrador esbarra no apagamento absoluto da memória, provocado por um fato biológico incontornável, a doença de Alzheimer. Ele percebe, nesse périplo, que a transmissão da memória não se dá somente por meio de narrativas, mas também por outros meios, como, por exemplo, o silêncio e a violência. E, concluindo que a memória jamais deve servir de justificativa para qualquer gesto ou destino, volta-se ao filho que um dia terá e acredita que ele poderá começar do zero sem necessidade de carregar tanto peso.

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